Luciano Oliveira
Uma amiga enviou-me faz algum tempo uma matéria
de jornal sobre o livro do professor Gusmão da UNB. Confessava que o que ele
dizia sobre Habermas a fez “rir um pouco” e adiantava a impressão de que, pelo
tom polêmico do autor, podia tratar-se de “mais um desses tipos em busca de
sucesso por meio de provocações exageradas”. A leitura da matéria despertou
minha atenção e rapidamente adquiri o livro – que li com atenção e prazer, mas
também com divergências importantes. Interessei-me pelo livro porque, como examinador
de dissertações e teses, identifiquei-me com algo que dizia Gusmão na matéria
citada: “É praticamente impossível defender um mestrado ou doutorado sem
apresentar questões teóricas, cobrança dispensável e funesta”. Achei “funesta”
um tanto exagerado, mas tendi a concordar em grande medida com o “dispensável”.
De fato, participando há anos de bancas, já partilhei idêntico sentimento. Exemplo:
um mestrando que examinei certa vez, aluno excelente e dedicado, tinha adotado
como seu “marco teórico” a (para mim) impenetrável análise do discurso francesa. Metade do trabalho era um capítulo
teórico para levar à conclusão, na outra metade, de que Getúlio Vargas tinha um
discurso... paternalista! Na ocasião ocorreu-me uma brincadeira que expus com
toda seriedade: mas como Hannah Arendt teria chegado à conclusão de que Hitler
tinha um discurso totalitário sem ter lido Pêcheux?...
O livro de Gusmão adota um tom provocativo bem
maior do que o meu. O que ele diz sobre autores como Habermas – que qualifica
de “entediante pastor de almas” (p. 111) – e Bourdieu – que define como “o
narodinick [sic] universitário” (p. 107) – beira o desrespeito. Tais diatribes
dão algum suporte à suspeita de minha amiga. Digo algum porque o livro de Gusmão longe está de ser apenas um
arrasa-quarteirão. Mas ele se compraz em bater com tal furor os usos e costumes
vigentes na academia brasileira que a suspeita de “provocações exageradas” de
certa forma se confirma. Isso dito, adianto que O Fetichismo do Conceito é um livro bem vindo pelas provocações
(desta vez sem aspas) que faz, devendo ser lido e meditado nos nossos
departamentos de ciências sociais com seus cacoetes exageradamente
“teoricistas” – para falar como o autor, com quem concordo neste particular.
Por “fetichismo do conceito” Gusmão entende a
atitude que leva a “ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos
conceituais” (p. 163). Um bom exemplo de como funciona o mecanismo aparece numa
crítica a Sérgio Buarque de Holanda, que em Raízes
do Brasil – considerado por Gusmão como “o mais frágil” dos seus livros –
adota a figura do “aventureiro” como um tipo-ideal
definidor do colonizador português no Brasil. Como é sabido, Sérgio estabelece
o que seria o seu ethos essencial: um
tipo humano cujo ideal é “colher o fruto sem plantar a árvore”. Gusmão reprocha
a Holanda ter adotado “a idéia geral de uma forma
mentis aventureira [...], empregada para explicar, em termos dedutivos, um
vasto e disparatado conjunto de fenômenos sociais” (p. 230). O autor parece-me
convincente nessa crítica, e transcrevo um dos momentos em que surpreende o
mecanismo em funcionamento:
“O Brasil não
conheceu, assegura Sérgio Buarque, uma ‘civilização tipicamente agrícola’, pois
os filhos de Portugal aqui chegados jamais manifestaram ‘esse zelo carinhoso
pela terra [...]’, assumindo antes uma atitude imediatista, perdulária e
imprevidente [...]. Uma evidência disso podia ser encontrada nos processos de
exploração do solo adotados pelos colonos” (p. 242).
É o caso das técnicas agrícolas empregadas pelos
recém-chegados, que substituíram o velho arado europeu pela “simples enxada” (p.
244), já usada pelos nativos e que os portugueses teriam se limitado
preguiçosamente a copiar. Ora, imediatamente após ter feito tais considerações,
Sérgio, entretanto, “constata que nas circunstâncias concretas nas quais se
situavam os colonos [...], as técnicas agrícolas adotadas, como, por exemplo, o uso predominante da enxada no lugar do
arado, acabavam se revelando perfeitamente adequadas” (p. 245) – itálicos
meus. O exemplo mostra como, submetido ao teste da validação empírica, o tipo-ideal do “aventureiro” mostra-se
inadequado para abarcar as várias e heterogêneas particularidades do real a que
supostamente se aplicaria. Em lugar desse mecanismo dedutivista, Gusmão propõe
o que chama de “investigações conteudísticas e ateóricas” (p. 21) – designação que,
pessoalmente, considero um tanto rebarbativa, e que tentarei adiante aclarar.
Como já realcei de passagem, não são poucas minhas
concordâncias com o autor. Aquilo que disse a propósito de Hannah Arendt e sua
sensata conclusão de que Hitler tinha uma proposta totalitária, mesmo sem a
autora de Origens do Totalitarismo
ter lido a análise do discurso
francesa, por exemplo, encaixa-se bem no que Gusmão diz a propósito do saber
produzido fora do establishment
acadêmico e bem antes de sua institucionalização:
“seria [...] um lamentável erro
imaginar que no passado, antes do advento [...] da Sociologia profissional,
observadores atentos e argutos da vida coletiva, valendo-se apenas de conceitos
do senso comum expressos na linguagem
corrente, não foram capazes de vislumbrar com a devida nitidez aqueles
fenômenos sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociológicos
formulados num jargão técnico” (p. 167) – itálicos meus.
O destaque que dei a “senso comum” deve-se ao fato de tal
conceito figurar com destaque no que diz Gusmão a respeito das investigações
“conteudísticas e ateóricas”, apesar de não lhe dispensar um tratamento
sistemático ou, em momento algum, problematizá-lo – como a meu ver deveria. A
tese mais arrojada do livro é curta e grossa: o conhecimento nas ciências
sociais não constitui uma ruptura com o “saber de senso comum”, como provam as
obras de autores como Flaubert e Dostoievski:
“grandes
observadores da condição humana que se expressaram apenas na linguagem natural
empregada nas rotinas da vida cotidiana, não realizaram, na verdade, tal
ruptura. Eles viam mais longe simplesmente porque eram mais lúcidos e mais
sábios que a maioria de nós. Apenas isso” (p. 39).
Sem esconder para que lado pende sua preferência, Gusmão procede
a uma distinção importante: de um lado, há o que ele chama de investigações “conteudísticas
e ateóricas”, como vimos, terreno frequentado por gente do naipe de Flaubert e
Dostoievski; de outro, as investigações caracterizadas como “apoiadas em teorias
gerais” (p. 21), apanágio dos nossos departamentos de ciências sociais – onde o
“fetichismo conceitual” campeia. Demarcam-se, assim, dois campos – ainda que,
na prática, eles não sejam estanques: as investigações “conteudísticas e
ateóricas” – produzindo o que Gusmão também chama sugestivamente de “paisagens”
– seriam mais próprias ao campo da História; e as investigações “apoiadas em
teorias”, por seu lado, seriam mais próprias às Ciências Sociais – basicamente
a Sociologia e a Antropologia, já que Gusmão não se refere à tradicional coirmã
das duas primeiras, a Ciência Política.
Gusmão é da opinião de que
as investigações do segundo tipo testemunham um inequívoco “fracasso”, chegando
a dizer que não contêm senão “enormes
trivialidades numa linguagem tão obscura quanto pedante” (p. 161). Para ele, as
ciências sociais, não possuindo um corpo de leis consensualmente aceitas pela
comunidade dos cientistas, como acontece com as “ciências normais” (Thomas
Kuhn), não produzem explicações qualitativamente distintas daquelas cuja “base
teórica” consiste tão somente nas melhores generalizações do conhecimento de
senso comum, como se encontra na literatura realista e na historiografia de
qualidade. Diz ele, “podemos encontrar estudos sociológicos ou antropológicos
nos quais as explicações causais oferecidas são essencialmente conteudísticas e ateóricas, embora seus
autores insistam na apresentação quase ritual de credenciais teóricas” (p. 21)
– itálicos meus. Aqui é preciso esclarecer que “ateóricas” não se confunde com
o “empirismo mais ingênuo”. Gusmão não nega que o conhecimento dos fenômenos
sociais deve ir além do “simples registro descritivo e superficial dos
fenômenos”, e está consciente da necessidade de hipóteses preliminares em
qualquer trabalho de investigação social: “Essas hipóteses é que determinam,
entre outras coisas, quais dados devem ser coligidos a um certo momento da
investigação” (p. 181, n. 95). Isso dito, ele é enfático, porém, ao afirmar que
“é perfeitamente possível sim, no
âmbito das investigações sociais, levantar problemas fecundos, sugerir
hipóteses plausíveis e estabelecer detalhados planos de observação, sem qualquer base teórica, se se
entendem por isso as contribuições particulares da moderna teoria social”
(p.34) – itálicos meus.
Mais claro, impossível. Mas, finalmente, o que
seriam as investigações desse tipo – isto é, sem “base teórica”? Para Gusmão,
elas consistiriam numa “explicação causal empiricamente orientada da vida
social em toda sua riqueza e complexidade, algo que requer sempre inventários
exaustivos de variáveis contextuais e um uso qualificado do conhecimento do
geral” (p. 163). Vista de chofre, convenhamos que a definição não brilha pelo
excesso de clareza. Mas, para facilitar nossa tarefa, lembremos que Gusmão
elege como modelo desse tipo de investigação aquilo que é ordinariamente feito
pelos (bons) historiadores, a exemplo do que faz um Evaldo Cabral de Mello ao
estudar o Brasil holandês ou a insurreição pernambucana de 1817. Mas Gusmão comete
aqui, a meu ver, uma espécie de sofisma: os exemplos que dá de investigações
bem sucedidas são de autores como, no passado, Tocqueville e Joaquim Nabuco, e,
contemporaneamente, Braudel e Le Goff, mas também Evaldo Cabral de Mello. Ora,
todos eles são basicamente historiadores! Isso, é verdade, é coerente com a
tese por ele defendida de que é na História onde se encontram os melhores estudos
“conteudísticos e ateóricos” – aqueles que ele elege como o modelo por
excelência de investigações sobre o social. É na História, com efeito, que é
mais fácil – natural até – pintar “paisagens”. Só que na Antropologia e, mais
ainda, na Sociologia, bem menos! O sofisma, a meu ver, reside no fato de o
autor tomar o que seria a vocação de um dos campos, a História, para julgar os
feitos de um outro, o das Ciências Sociais.
Entendamo-nos. A divisão do conhecimento sobre
o social em escaninhos com nomes como História, Antropologia, Sociologia etc.
é, em grande medida, artificial, fruto bem mais de uma divisão social do
trabalho intelectual e seus respectivos interesses corporativos do que de uma
diferença ontológica entre esses domínios. Isso dito, e não me alongando muito,
existe algo chamado Sociologia, um campo institucional dotado de certas
particularidades metodológicas que incluem, num contraponto – o que não quer
dizer oposição – com as paisagens “pintadas” pelos historiadores e as
“etnografias” tecidas pelos antropólogos, a construção de dados agregados que
permitem ver camadas subterrâneas da realidade não facilmente acessíveis ao
olhar normalmente “desarmado” – o que quer na verdade dizer encharcado de pré-conceitos – do homem comum. Gusmão
reconhece que os autores da “moderna teoria social”, que ele tanto maltrata,
podem ser de grande valia nessa empresa de desvendamento do real – chegando,
num momento exemplar de honestidade, a incluir o próprio Bourdieu! Diz ele:
“Um
investigador bem informado [...], alertado por A. Schutz, P. Berger, A. Giddens
e P. Bourdieu [sic!], poderá investigar o saber tácito, não reflexivo nem
articulado num corpo sistemático de ideias, do qual se valem, na vida
cotidiana, os membros de uma determinada coletividade. [...] Marx abrirá os
seus olhos para as relações sociais de
produção vigentes, além de adverti-lo para a relevância do estudo dessas
relações numa compreensão da vida política e espiritual. [...] ...e por aí
afora.”
Mas Gusmão não se desarma. Imediatamente, ele se recompõe
e passa a reafirmar pela enésima vez sua antipatia pela “teoria”, afirmando que
“não temos aqui
qualquer passagem do conteudístico ao teórico, se se entende por isso a efetiva superação, assegurada pela posse de
novas ferramentas intelectuais, do inventário exaustivo das constelações
singulares e contingentes das variáveis relevantes para uma caracterização
e/ou explicação causal de uma dada paisagem social” (p. 79) – itálicos meus.
O sociólogo é levado a se perguntar: mas o “saber não
reflexivo” de Bourdieu e Cia, bem como as “relações sociais de produção” de
Marx não seriam justamente as “ferramentas intelectuais” que permitem a
“superação” do “inventário exaustivo das constelações singulares”, levando à
possibilidade de um conhecimento mais “teórico” da realidade? Gusmão diria que
não! Para ele,
“não seria difícil encontrar no
conhecimento social e psicológico de senso comum, em uso nas melhores investigações conteudísticas da vida coletiva,
um número considerável de luminosas generalizações
acerca dos seres humanos e suas interações mais duráveis” (p. 100).
Aqui, francamente, acho que ele está fazendo malabarismos
verbais: em que, finalmente, as “generalizações” a que se refere se
diferenciariam da “teoria” que os sociólogos prezam e ele tanto detesta? Falei
antes nas possibilidades heurísticas dos “dados agregados”, tão familiares à
Sociologia, a meu ver muito importantes para superar o “saber não reflexivo” em
que tanto se compraz o senso comum. Dou um exemplo inspirado por meus próprios
interesses de pesquisador. Faz parte do senso comum a afirmação de que os pobre
delinquem mais – “evidência” atestada pela enorme proporção de pobres nas
cadeias. Ora, um “olhar desarmado”, partindo do pressuposto de que quem comete
crimes vai preso, concluirá pela exatidão da afirmação. Mas se esse olhar se
dispuser a ler o que diz um Howard Becker sobre o que esse autor chama de
“etiquetamento” (questão: trata-se de uma “generalização” ou de uma
“teoria”?...), começará, sendo honesto, a duvidar seriamente do pressuposto,
pois tomará consciência de que os pobre, por sua fragilidade, estão mais
propensos a serem pegos pelas malhas da lei do que os bem nascidos – ou seja, a
serem mais “etiquetados”.
Aliás, tantos e repetidos enaltecimentos ao
“senso comum” levam a uma questão adicional: não estaria Gusmão caindo num
outro tipo de “fetichismo”? Afinal, o que vem a ser isso? Ocorre-me a
impressão de que ele usa o conceito no sentido inglês do termo (o “common
sense”), cujo significado vai reconhecidamente bem além daquele veiculado pela
mesma expressão, numa tradução literal, entre nós. Para ver isso, vamos aos
dicionários. Remetendo-me ao famoso Collins
(English Language Dictionary), deparo-me
com a seguinte definição para o verbete common
sense: “is a person´s natural ability to
make good judgements and to behave in a practical and sensible way”. No
sentido inverso, nosso Aurélio dá ao
verbete senso comum a definição
seguinte: “conjunto de opiniões e modos de sentir que, por serem postos pela
tradição aos indivíduos de uma determinada época, local ou grupo social, são geralmente aceitos de modo acrítico como
verdades” – itálicos meus. Minha impressão é a de que Gusmão está querendo
se referir antes a bom-senso do que a
senso comum, pelo menos em bom
vernáculo. Aliás, em um momento pelo menos – deve haver outros – o leitor
atento surpreenderá o uso do primeiro termo num trecho em que critica o que
seria a ingenuidade de um antropólogo que leve ao pé da letra o que lhe
informam os “nativos”, sem decodificar o que tais falas podem esconder de
autoengano, racionalização ou engodo puro e simples – e completa: “Na
realidade, apenas indivíduos particularmente tolos e estúpidos poderiam ignorar
tais possibilidades. Pessoas dotadas de um mínimo de inteligência e bom-senso não costumam, na vida
cotidiana, proceder assim” (p. 205) – itálico meu. Gusmão, mesmo consciente da
possibilidade de tais “leros-leros” mostra-se, estranhamente, muito condescendente
em relação ao senso comum que, como sabemos, acomoda-se muito bem com enganos e
racionalizações justificadoras...
É verdade que ele não se exime de endereçar algumas
exigências aos operadores do seu conceito tão querido. Assim, seus investigadores
ideais não poderão dispensar “inteligência, plausibilidade” (p. 39) e “boa documentação”
(102-103); o ideal, certo, é que sejam “filósofos, literários e artistas de
gênio” (p. 107); mas, sendo um “homem comum”, deverá ser “inteligente e bem
informado” (184), além de agir com “atenção e seriedade” (p. 333) – e por aí
vai! Reconheço que neste passo estou sendo irônico. Mas a ironia me é sugerida
pelo próprio Gusmão, que se põe, em determinado momento, ao que parece ser uma
brincadeira, para não dizer “provocação” – desta vez com aspas. Atracando-se
outra vez com Bourdieu, comete a seguinte graçola a respeito do conhecido
conceito de “poder simbólico”:
“já podemos
encontrar em Pascal, um filósofo do século XVII que, naturalmente, não leu
Bourdieu, um lúcido, claro e divertido registro da realidade do ‘poder simbólico’. É Pascal quem observa: ‘Isto é
admirável: não se quer que eu preste honras a um homem vestido de brocados e
seguido de sete ou oito lacaios. O quê! Ele me mandará dar umas correadas. Aquela roupa é uma força’” (p. 168).
O trecho ilustra à perfeição o princípio de que
frases pinçadas de qualquer autor são capazes de dizer praticamente tudo que
queremos que ele diga. Aliás, pensando no fato de que Pascal era um cristão,
ocorreu-me outra graçola: “Ora, nesse caso, por que não ir diretamente à
Bíblia?” Pois bem, fui. Fui e achei mais de uma definição do poder simbólico, acompanhada, aliás, do
seu desmascaramento. E não precisei ir muito longe. Já no primeiro dos
Evangelhos, quando Jesus censura os escribas e fariseus, está escrito: “não os
imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem. [...]
Praticam [...] todas as suas obras
com o fim de serem vistos dos homens; [...] alargam os seus filactérios e
alongam as suas franjas.” (Mt., 23; 3-6).
Voltemos ao sério. Como disse mais de uma vez,
o livro de Gusmão é importante pelas relevantes questões que levanta. Acho,
porém, que ele é excessivamente intolerante com as “bases teóricas” que
circulam nos departamentos de Ciências Sociais.
Talvez muitos anos de participação em bancas de teses, onde tais “bases”
figuram mais como mantras muitas vezes recitados – quando não “engolidos” – sem
convicção do que como autênticas bases
de onde se extraem ou se afinam hipóteses de pesquisa – com as quais, numa
palavra, se dialoga –, tenham provocado certa radicalização, expressa pela recusa
freqüentemente raivosa de autores importantes para o desvendamento de camadas
nem sempre evidentes do real, bem como uma discutível valorização do senso
comum. Confesso, de minha parte, partilhar algo do ar blasé que parece ser o seu o tempo todo. Adianto, aliás, que estou
longe de ser sempre um encantado com o conhecimento produzido pelas Ciências
Sociais e correlatas – que, entre outras asneiras, já produziram o “racismo
científico” do século XIX. Mas quem, afinal, desmontou com propriedade essa
teoria senão, em primeiro lugar, a própria ciência? Penso num exemplo célebre, o
ambíguo e controverso Gilberto Freyre – que Gusmão não cita uma única vez. Pernambucano
formado na nostalgia da casa-grande, Gilberto tinha, sem dúvida, uma
sensibilidade aristocrática. Mas a partir do célebre encontro com a obra de
Franz Boas, um dos fundadores da moderna antropologia, o “menino de engenho” que
no fundo nunca deixou inteiramente de ser descobriu que raça e cultura são coisas
diversas, e com isso inverteu o jogo do pensamento racialista brasileiro. Ou
seja, não foi com base no senso comum vigente no mundo em que nasceu que Freyre
escreveu Casa-Grande & Senzala. Tudo
isso nos levaria longe. Surge por exemplo uma questão interessante: a
antropologia anti-racista do século XX parece-nos epistemologicamente (para não
falar moralmente) mais perto da verdade
do que a antropologia racista do século XIX. Haveria então um progresso nas
Ciências Sociais análogo ao que há nas “ciências normais”? “Questão prenhe de
questões”, como diria Machado. Fica para outra vez.
45 comentários:
Isso de o autor "não dever" (acréscimo meu) tomar o que seria a vocação de um dos campos, a História, para julgar os feitos de um outro, dá pano pras mangas. Como leigo, tendo a achar que é justamente isso que enriquece, guardado o devido respeito ao "julgamento" alheio, o debate intelectual. Muito boas as tuas anotações, Luciano.
Mauro Mesquita
Loup-Loup Cibalena,
Sua resenha é muito importante, assim como o tema do livro resenhado. Mas, talvez apenas porque você escreve bem demais e o tempo anda tão curto que parece ter engulido o passado e o futuro, tendo a incorporar sua argumentação e pensar que a leitura do professor Gusmão é-me dispensável...
Minha indisposição vem principalmente desse quase desrespeito que você viu em relação a autores como Habermas e Bourdieu. E o engraçado é que, seguindo sua resenha, Gusmão parece utilizar justamente um raciocínio bourdivino sobre a relação entre teoria e prática sociológicas, cito: "Os intelectuais são preparados pela lógica de sua formação para tratar as obras herdadas do passado como uma cultura, isto é, como um tesouro que se contempla, se venera, que se celebra - e que por isso mesmo os valoriza -, em suma, como um capital destinado a ser exibido e a produzir dividendos simbólicos, ou simples gratificações narcisistas, e não como um capital produtivo que se investe na pesquisa" (Bourdieu,Coisas Ditas, p. 43).No mesmo capítulo, Bourdieu usa o termo "fetichismo com os autores"...E não sei em que outro lugar, li Bourdieu vituperar contra teorias e conceitos, num raciocínio que me levou a pensar que ele estava caindo num "fetichismo do empírico"...
Pois bem, acho também que fetichismos não são apenas teóricos; podem também ser empíricos, do senso comum (como você desconfia em Gusmão) e eu acrescentaria um outro (ainda seguindo sua resenha): fetichismo da literatura realista como conhecimento do social mais válido do que o científico-social (como se escritores, por mais divinos que sejam um Dostoievski ou um Flaubert, só porque não viveram constrangidos pela doxa acadêmica, fossem essencialmente livres da dupla hermenêutica, de que fala Giddens, em suas obras).
Quanto ao "fetichismo do conceito" em nossas dissertações e teses,não seria uma reatualização de nosso velho bacharelismo? Tem uma coisa aqui no Brasil que me faz rir (quando estou bem humorada): sofremos trabalhos acadêmicos em que o pouco ou muito de pesquisa empírica serve apenas como ilustração mal articulada de um referencial teórico venerável. Entretanto, quando um aluno "ousa" fazer uma dissertação ou tese teórica,ouvem-se muitos gritos de "isso não é sociologia!" ou "é preciso estar em fim de carreira para enfrentar um trabalho teórico". Penso que quando entendemos as teorias e os conceitos como instrumento imprescindível de diálogo com hipóteses, a pesquisa empírica exige mais maturidade do que uma exploração teórica sobre um ou mais autores. Mas nosso bacharelismo reatualizado mantém seu fundamento: escrever veneravelmente sobre um referencial teórico e dá um jeito de impor os dados empíricos como sua confirmação, deve-se; ousar uma reflexão teórica sobre referenciais teóricos, só para quem pode.
P.S. você foi liberado por Dr. Simão Bacamarte? Nannan também conseguiu escapar daquele positivista maluco?
Abraço
Ganhei há pouco tempo, de presente, o excelente livro Jerusalém Colonial, de Ronaldo Vainfas, e logo no primeiro parágrafo me surpreendi com a franqueza do historiador. Ele se refere a Gonsalves de Mello como sua grande fonte de inspiração e explica a razão de sua admiração: "Gonsalves de Mello ensina como fazer história documentada e interpretativa, sem perder tempo com teoria, mas articulando, com elegância, os vários domínios da história". Este depoimento me leva a pensar que para grande parte dos historiadores o livro de Gusmão pode soar trivial, ou puro "common sense" - não senso comum. Por outro lado, diferentemente dos historiadores, os sociólogos não têm muito claro qual o sentido de esforços de teorização. "Teoria sociológica" ou "teoria social" ( aprendi em algum momento qual a diferença mas já me esqueci) são áreas temáticas como quaisquer outras (sociologia do crime, sociologia da educação, sociologia da religião) ou são áreas especiais, que de alguma forma fornecem alguma contribuição para as outras? Os comentários do Luciano sugerem que esta é uma questão importante não contemplada no livro de Gusmão. Talvez num Prefácio a uma nova Edição, ou em um artigo à parte, Gusmão pudesse nos dizer em que sentido isto que ensinamos e aprendemos como "teoria sociológica contemporânea" tem contribuído para o desenvolvimento da sociologia de áreas temáticas específicas.
A formação da ciência social começou se inspirando em modelos metodológicos da ciência dura que, como já é sabido, se sustenta nos princípios (frios) de objetividade e neutralidade. Afinal, são as coisas (matéria física) que esta ciência analisa e a partir daí cria e desenvolve teorias e pesquisas. A sociologia para se legitimar como ciência precisa, no universo acadêmico tradicional, se fundamentar em metodologias bem definidas. Mesmo a psicologia que lida com a relatividade de experiências vivenciais recorreu aos modelos de metodologias da ciência dura para enquadrar e explicar a psique humana. A sociologia (da vida), o conhecimento que se produz a partir da sociedade, talvez não precise mesmo de quadro fechado de conceitos e teorias. Fica sempre a sensação de que algum indivíduo e coletividades se encontram aprisionados em conceitos e teorias. Por outro lado, pelos moldes tradicionais do ensino da Sociologia, é necessária a consolidação de um arquivo de teorias, um legado de conceitos que pretendam universalizantes e generalistas que, mesmo com a circunstanciação do humano social, ofereça a possibilidade de cientistas sociais reforçarem determinada "verdade sociológica".
Tâmara: O Dr. Simão Bacamarte sofre do fetiche da ciência, mas é por vezes liberal com seus pacientes mais loucos. Por isso autorizou Lulu e Nanan a ler na biblioteca da Casa Verde o livro de Gusmão. O que não quero é me meter nessa encrenca de vocês. Fico na moita, lendo os comentários de vocês e fingindo ignorar até o mais poderoso fetiche que existe: o da mercadoria.
É sempre complicado comentar resenhas, particularmente se não lemos a obra resenhada. Mesmo assim, vou dar meu pitaco por aqui.
Lulu, a distinção que você estabelece entre senso-comum e bom-senso só faz sentido quando se reduz conhecimento ao conhecimento gerado pela ciência moderna. De acordo com a tradição humanista (e aqui falo especialmente de Vico), o senso comum refere-se ao conceito clássico de conhecimento prático ou “sabedoria” (phronesis). Vale uma citação do velho Gadamer (que tem uma seção inteirinha dedicada ao conceito de “sensus communis” em Verdade e Método):
“... o sensus communis não significa apenas aquela faculdade geral encontrada em todos os homens, mas o sentido que funda a comunidade. De acordo com Vico, o que dá à vontade humana sua direção não é a universalidade abstrata da razão, mas a universalidade concreta representada pela comunidade de um grupo, de um povo, de uma nação ou de toda a raça humana. Assim, o desenvolvimento desse senso comunal tem uma importância decisiva para a vida”.
O senso comum é, portanto, fundamental para as decisões morais e, dado que ele só pode ser adquirido ao se viver em comunidade, possibilita um contraponto importante a uma concepção de conhecimento (da ciência, a partir de Descartes) que não leva em conta o conhecimento prático. Neste sentido específico, ele pode e deve ser incorporado no processo de reflexão da própria ciência sobre os seus limites (e aí ele assume uma dimensão reflexiva, ainda que, de um ponto de vista estrito, se contraponha a um saber teórico ou reflexivo).
Parte do problema é que, se entendi bem sua caracterização do trabalho de Gusmão, ele (assim como você) avalia o senso comum a partir da noção de conhecimento científico, utilizando-o como “segunda opção” diante da ausência de “leis consensualmente aceitas pela comunidade dos cientistas” para construir hipóteses e explicações causais. Em resumo, o uso da ideia de senso comum como base *metodológica* para as ciências sociais me parece um contra-senso que só se sustenta diante daquilo que Bottomore chamou de “complexo de inferioridade” dos cientistas sociais.
A cremos em Gadamer, no entanto, ele está em boa companhia: os iluministas alemães que, ao despirem o conceito de senso comum de seu conteúdo moral e politico, esvaziaram-no de sua significância crítica e compreenderam-no como uma faculdade puramente teórica.
Se for isso mesmo, acho que eu prefiro um positivismo honesto.
Bisous!
Fernando e demais acompanhadores do Cazzo (inclusive os editores),
Tenho gostado demais do despertar de posts desse blog. E permito que você finja ignorar o fetiche da mercadoria, Fernando, sem nem contar ao Dr. Bacamarte que você é mais doido do que ele pensa - desde que você finja mas não o ignore. Porque a verdade é que todos esses posts têm me tirado do sono também. Tanto que dois artigos de um blog do Le Monde acordaram-me de vez e estou preparando um textinho (tomara que o fetichismo da produtividade acadêmica não me roube o tempo de conclui-lo). Quando terminar, mando lá pra Suiça sob os cuidados de Cynhtia - pra ser chique.
Bisous, chers collègues.
Tâmara: e depois você ainda se atreve a dizer que o louco sou eu. Bem, vou parar com essas brincadeiras para não desviar a atenção do fetiche que aqui mais importa: o da controvérsia científica. Vamos acompanhar o que Luciano, Cynthia, Renan Springer e outros têm ainda para discutir.
Cynthia, penso que a trilha que você abriu com seu comentário conduzirá a um diálogo de surdos. Vou tentar expor o argumento do Gusmão tal como o entendo, embora o Luciano já tenha feito um excelente trabalho nesse sentido. Eu vejo as coisas assim: um estudante de física, de biologia ou de química é socializado, desde a graduação, em todo um aparato conceitual, cujo significado dos termos utilizados não pode ser devidamente apreendido através da consulta a um bom dicionário, e sem esse aparato ele (ou ela) não é nada. Quando um físico fala em "eletricidade" ele está dizendo algo num plano bem distinto do que um não-físico entende por este mesmo termo e quando ele fala em "campo eletro-magnético", alguém que jamais estudou física sequer pode ter ideia do que se trata. O mesmo vale para um biólogo que estuda um fenômeno como, digamos, a "especiação alopátrica". Pois muito bem: tendemos a pensar que quando nossos alunos aprendem conceitos como "solidariedade orgânica", "anomia", "habitus", "sistemas sociais", e aí a lista pode se expandir indefinidamente, ele (ou ela) está se tornando particularmente bem equipado para abordar os fenômenos sociais, da mesma forma que um físico, químico, ou biólogo, ao aprender os conceitos que aprende, se torna particularmente bem equipado para tratar dos fenômenos naturais. Aí Gusmão vem dizer que não. Que é uma mistificação supor que a socialização em quadros teóricos particulares (seja os que foram propostos pelos clássicos, ou por Parsons, Giddens, Bourdieu, qualquer um) é uma precondição para uma abordagem particularmente privilegiada dos fenômenos sociais, seja ele qual for. Para os historiadores este argumento do Gusmão é puro common sense (valho-me da distinção lembrada pelo Luciano). Descobri, Luciano, que para os demógrafos também. Você menciona que os exemplos de Gusmão são todos de historiadores, acho que poderia ser de demógrafos também. Corri os olhos em um volume inteiro da Estudos Populacionais e em nenhum dos artigos ali presentes há a mobilização de quadros conceituais formulados pelo Autor "a" ou "b". Que importância tem então esses quadros conceituais, não raro chatérrimos, que aprendemos na graduação ou mesmo na pós? Acho que o Gusmão é um pouco econômico quando se trata de falar disso. Ele disse que Burke poderia ter escrito o livro dele sobre Luis XIV sem ler uma única linha dos autores que cita ali: Goffman, Habermas e não sei quem mais. Burke ficou furioso e retorquiu que se não tivesse lido esses autores não teria pensado as coisas do modo como pensou. Penso que isto poderia ter sido remediado se o Gusmão tivesse dito que Burke poderia ter poupado o leitor de reconstruir as leituras por meio das quais se viu capaz de construir seu argumento (o que inclui proveitosas literaturas de sociólogos, historiadores, literatos etc.), em vez de dizer que Burke não precisaria ter "lido" fulano ou beltrano. De qualquer forma, a lição que quero tirar do texto de Gusmão é: existe vida inteligente fora de Habermas, Giddens, Foucault, Bourdieu e, talvez, fora de Marx, Durkheim e Weber. A importância desses autores (refiro-me apenas aos três últimos) não está no fato de nos terem fornecidos quadros conceituais articulados que supostamente nos dão acesso a uma visão privilegiada dos fenômenos a que nos propomos estudar, mas pela erudição e brilhantismo excepcionais que transpiram das páginas de suas respectivas obras.
Mas é isso, Renan: a erudição e brilhantismo que pode ser encontrada de literatos, músicos, filósofos etc e que diz respeito particularmente às dimensões estéticas e morais de um grupo (i.e. sensus communis) podem e devem ser utilizadas em nossas interpretações do mundo social. O que discordo (na interpretação que fiz da leitura de Luciano) é que essas coisas sejam tratadas como meros substitutos diante da inexistência de leis gerais consensualmente aceitas (o que, incidentemente, denota uma concepção muito restrita de teoria).
Também me incomoda essa visão de que os conceitos sociológicos são dispensáveis em uma boa análise sociológica. Conceitos sociológicos são, minimamente, frutos de uma tradição específica (e por tradição quero dizer aqui uma maneira particular de colocar questões e, portanto, de "recortar" a realidade). Eles não têm apenas uma dimensão explicativa, mas também ontológica. Por mais fluidas que sejam as fronteiras entre uma teoria social e uma teoria sociológica, por um lado, e as ciências sociais e a literatura, por outro, fazer sociologia significa fazer parte dessa tradição, não importa o quão criticamente. Neste sentido, dizer que a importância dos clássicos limita-se à sua "erudição e brilhantismo" (como algo distinto dos esquemas conceituais que eles criaram) me parece um exagero.
Você também fez uma resenha do livro? Que tal deixar a gente postá-la por aqui também?
Bjs
Caríssimos Renan e Cynthia,
Raramente comento algum comentário provocado pelo que escrevo. Ardilosamente digo que não se deve comentar nada que se escreve a respeito de um texto nosso, porque se escreve um novo texto, o que por sua vez vai puxar outro comentário... que é também outro texto, e assim sem fim. E, algo retoricamente, concluo: o texto que se defenda sozinho! Há alguma verdade no que digo, mas confesso que há sobretudo uma inconfessável preguiça... Padeço, infelizmente, daquele mal que Machado (aliás um literato genial que Gusmão não cita...) pôs na pena do Conselheiro Ayres: tenho o “tédio à controvérsia”...
Mas lendo agora o que Renan escreveu, não resisti à tentação de dizer que aquele argumento que ele usa, que é aliás do próprio Burke, de que ele, Burke, não teria tido as ideias que teve se não tivesse lido os autores que Gusmão acha completamente dispensáveis, tinha me ocorrido também! Aliás, eu até me pergunto maldosamente se aquela “pegadinha” que ele, Gusmão, e um aluno dele prepararam para a Banca (pp. 197-198, nota 4, do livro “O Fetichismo...”), inserindo autores perfeitamente dispensáveis numa tese pronta e escrita sem referência a tais autores, não teria sido adredemente preparada... ou seja: será que quando o aluno escreveu o texto sem os autores, já não sabia que autores depois iria inserir?... (Desculpe, Gusmão, se estou sendo maldoso demais, mas não resisti à tentação!)
Veja, Renan: gostei muito do livro de Gusmão. Tanto que comecei a escrever um texto sobre o mesmo que não acabava mais. Já ia numas 20 páginas quando decidi proceder a um corte drástico para que o texto coubesse no espaço restrito de um blog. E pari as oito páginas (uma enormidade hoje em dia) que os amigos do Cazzo generosamente publicaram. Isso para dizer que muita coisa ficou de fora, inclusive essa questão de autores “dispensáveis”.
Isso dito, querida Cynthia, vou confessar algo que você certamente já sabe, porque conversamos de vez em quando sobre esses assuntos atinentes à produção de teses e dissertações: ainda que discordando de muita coisa do que Gusmão diz, minha sensibilidade sobre as famosas referências teóricas (espécie de serviço militar obrigatório num mestrado ou num doutorado) está mais próxima da dele do que da sua... Espero podermos continuar dialogando sobre esses graves assuntos vida afora!
Abração a todos, Luciano.
O Gusmão me prometeu que ia dar as caras e, enquanto ele não o faz, quero comentar somente uma passagem na qual, talvez, resida todo o problema. Cynthia diz: "Também me incomoda essa visão de que os conceitos sociológicos são dispensáveis em uma boa análise sociológica." É o caso de fazer o seguinte: eleger-se obras cujo caráter de "boa análise sociológica" esteja acima de discussão e discutir se elas prescindem ou não de "conceitos sociológicos". "A Grande Transformação", de Karl Polanyi, conta como uma "boa análise sociológica"? O "Antigo Regime e a Revolução" e "A Democracia na América" contam como "boas análises sociológicas"? Onde estão os "conceitos sociológicos" nessas obras? - a menos que elas não possam contar como "boa análise sociológica". De qualquer forma, acho que o Gusmão ficou devendo tomar um exemplo de texto considerado "boa análise sociológica", repleto de conceitos sociológicos, da autoria de um sociólogo propriamente dito (não de um historiador), e mostrar que os conceitos estão ali mais para atrapalhar do que para ajudar. Curiosamente o historiador Arnaldo Momigliamo fez isto em relação ao "Judaismo Antigo", de Weber. Ele (o Mommigliano) mostra que no "Judaísmo Antigo", quando "conceito sociológico" entra em cena é só para atrapalhar.
Cynthia, voltei porque me passou batido uma coisa que você disse e com a qual penso que discordo completamente. Você diz que os conceitos sociológicos são frutos de uma tradição específica. Ora, não são não. Eles são frutos da cabeça deste ou daquele Autor, tanto é que não há um conceito sociológico (refiro-me a conceitos pertinentes à área conhecida como "teoria sociológica") que não tenha "dono", é sempre a concepção de alguém. Quando conceitos são frutos de alguma tradição nós esquecemos suas origens - que biólogo sabe de onde vem o conceito de "especiação"? Que sociólogo NÃO sabe de que cabeça surgiu qualquer conceito "teórico" que ele usa?
No limite, penso que o argumento de Gusmão vai por aí mesmo:
"As qualidades intelectuais do indivíduo, e não fictícias 'bases teóricas', constituem (...) a verdadeira fonte das diferenças decisivas. Este o padrão nas investigações sociais de fato notáveis, confirmações vivas da tese de Eliot segundo a qual, no fim das contas, 'só existe um método: ser muito inteligente'."
Quase posso imaginá-lo dizendo que Cynthia comete ilações dedutivistas acerca dos poderes causais da tradição.
Feliz do Fernando que resolveu não meter sua colher nesse angu de caroço!
Mauro Mesquita
Renan,
Nem Tocqueville nem Polanyi são sociólogos. Obviamente isso não significa que não tenham análises interessantíssimas das sociedades que se propuseram a estudar, nem que não haja um quê de arbitrariedade nas fronteiras entre as diversas ciências humanas. Pessoalmente, eu acho que a única distinção que faz sentido é a partir das tradições das diversas disciplinas - e por tradição eu não entendo consenso, mas como disse anteriormente, um conjunto de problemas, de técnicas, um recorte particular da realidade que confere alguma unidade a uma área.
E por mais que concorde que uma boa formação humanística que inclua filosofia, literatura etc - assim como um certo cruzamento de fronteiras com a antropologia, a ciência política, a economia, a história etc - seja fundamental à prática sociológica, discordo profundamente que a sociologia possa ou deva ser reduzida à historiografia ou à etnografia. Particularmente se essa historiografia ou etnografia parte de "hipóteses" e "explicações causais" "conteudísticas e ateóricas" (o que quer que isso signifique) tiradas da literatura devido à falta de "generalizações em formas de leis" das teorias sociológicas. A própria linguagem escolhida para justificar essas investigações "ateóricas" já denuncia uma concepção de teoria bastante questionável.
Engraçado, mas chegou a me ocorrer que Gusmão estava defendendo um projeto de dissolução de fronteiras entre ciência, literatura e religião à la Rorty. Pensando melhor, cheguei à conclusão que sua posição é justamente a oposta, pois parte de uma fé um tanto... ingênua? (e em se tratando do Gusmão, não contenho um sorriso) naquilo que Kuhn chama de ciência normal. Falta-lhe a radicalidade de um Rorty, que, ainda que me pareça equivocado (em minha modesta opinião), trouxe algo de realmente novo para se pensar o conhecimento. Sem isso, o que sobra é um iconoclasmo que deixa tudo como está. Ou estava - até os anos de 1960.
E agora eu vou voltar para o meu Gadamer para justificar o meu salário.
Bjs!
PS. Lulu, você está na banca de uma orientanda minha na semana que vem, né? Juízo, viu????
Desculpe, Mauro, seu comentário estava preso na moderação e só o vi agora. Mas é isso: esse vale tudo não leva muito longe.
Cynthia, você está agredindo a experiência. Se alguém disser que o futebol brasileiro é incompatível com o esquema de 3 zagueiros o único argumento que eu teria é que o Brasil foi campeão do mundo jogando com 3 zagueiros. Se você diz que não concebe "boa análise sociológica" sem conceitos sociológicos o único argumento que tenho é o de que há excelentes análise sociológicas sem o uso de conceitos sociológicos (entendendo-se por isto conceitos formulados por um desses autores que ensinamos). Se a discussão que Tocqueville faz a respeito de como as instituições do antigo regime ruíram, foram substituídas por novas na França revolucionária, e gradativamente voltaram a assumir a feição que tinham antes não é uma "análise sociológica" de primeira linha não sei mais o que pode ser. A menos que se tenha uma concepção burocrática de sociologia (sociologia é aquilo que é produzido por quem tem o título de sociólogo; ou quem cumpriu o regime militar, para me valer da brincadeira do Luciano ), "O Antigo Regime e a Revolução" é uma obra prima de sociologia, ainda que vá além disto. Aliás, num hipotético ranking das 10 melhores obras sociológicas já escritas, desde que não se entenda "sociológicas" burocraticamente, a obra de Tocqueville certamente figuraria. E a de Polanyi também. Citar Tocqueville (ou Polanyi) como sociólogo malgré lui não é, como você sugere, reduzir a sociologia à historiografia ou etnografia. Sua segunda agressão à experiência está em dizer ser ingênua a crença na ciência normal. A única coisa que posso te dizer a respeito é que a ciência normal existe, inclusive nas ciências sociais. Gusmão errou ao supor que isto seria impossível nas ciências sociais. Você agrediu a experiência ao dizer que acreditar nela é uma ingenuidade Abra uma revista como "Studies in Scientific Studies of Religion". O que tem ali é uma ciência normal (chatérrima como toda ciência normal)no mais puro sentido kuhniano: artigos curtos, seções padronizadas (objetivo, método, discussão, conclusão), vários autores, enfim, ciência normal em estado puro. Sem falar nos "handbooks" da área, um traço característico da ciência normal. O Brasil pode jogar com três zagueiros sim, minha querida.
Renan,
Hummm... deixa ver se eu entendi: Tocqueville e Polanyi fazem sociologia sem sociologia. Ou será que são sociólogos, mas não são... "daqueles"? Ou será que fazem uma coisa chamada teoria social, em vez de teoria sociológica?
Mas o que me deixou realmente confusa foi essa estória dos três zagueiros... é de comer, isso? :)
Brincadeiras à parte, sejamos razoáveis, Renan: ainda que reconheçamos toda a fluidez das fronteiras entre as ciências sociais, a importância do que se convencionou chamar de "pensamento social" etc etc., isso não justifica jogar "aqueles" sociólogos na lata do lixo, nem achar que sua única contribuição vem da erudição (não sociológica!) presente em suas obras. Defender isso me parece gosto por um polemismo que não leva a lugar nenhum.
Sem falar que compromete o meu ganha-pão.
Bisous!
OK, Cynthia, se você insiste em construir espantalhos para bater neles, tudo bem. Num primeiro momento, ao dizer que reduzo a sociologia à historiografia ou a etnografia. Num segundo, ao dizer que quero jogar quem quer que seja no lixo. Penso que o Luciano levantou uma questão muito importante e tentei trazê-la para a discussão. A chamada teoria sociológica tem se mostrado útil para um sociólogo do crime, da religião, da educação, da ciência, estratificação ou desigualdade social etc? Se sim, em que sentido? Se não, isto é um problema para quem se dedica a produzir "teoria"? No caso do crime, o próprio Luciano respondeu: esta área nunca mais foi a mesma após o advento da teoria da rotulação. Concordo. Mas Becker nunca se propôs a fornecer um quadro articulado de conceitos, como o fizeram autores como Parsons, Giddens ou Bourdieu. A perspectiva dele já foi feita para um tema específico, o "comportamento desviante". Becker é mesmo um divisor de águas, mas sua contribuição não vem do interior de algum esforço mais geral de teorização. Você localiza a identidade disciplinar da sociologia na existência de tradições. Pois bem: acho possível falar na existência de "tradições" quando nos referimos a áreas específicas de estudo, notadamente em uma área como a de mobilidade social, na qual ninguém pode desconhecer, por exemplo, a obra de Blau. Essa obra inaugurou uma forma de conceber a mobilidade que simplesmente não pode ser ignorada por quem é da área. A grande contribuição de Blau está, entretanto, em ter introduzido a chamada "path analysis" - não tem nada a ver com "avanços teóricos" produzidos por quem se propõe a produzir quadros articulados de conceitos. Na sociologia da ciência, um divisor de águas aparece com a obra de David Bloor, mas, novamente, o que possibilitou essa inovação não foram avanços teóricos proporcionados por alguma "tradição sociológica" de pensamento, mas a influência, sobre Bloor, de autores como Kuhn e Wittgenstein. Eu pergunto a você: existe alguma área temática substantiva a respeito da qual se possa dizer que o desenvolvimento que se vê nela resulta inequivocamente de ela ter incorporado conceitos sociológicos formulados no interior de alguma "tradição de pensamento sociológico" amplamente reconhecida como tal? Dizer que não sou razoável ou que tenho um gosto por polemismo estéril(na verdade não sei se esta crítica foi endereçada a mim, ao Gusmão, ou a nós dois) não é um bom substituo para uma boa resposta para essa questão.
Caros, me chamo Igor Peres e sou mestrando em sociologia do IESP. Como passei, infelizmente, a acompanhar o blog só há pouquíssimo tempo, gostaria de parabenizar pela iniciativa e dizer que tenho aprendido muito com as discussões aqui levantadas.
Sem ignorar as discussões levantadas até aqui, e, particularmente, sem tampouco ignorar o rumo que tomou a partir do diálogo entre os professores Renan Springer e Cynthia Hamlin, gostaria de levantar uma questão que, desconfio, não foi mencionada ainda.
A questão é simples e a intenção é situar o debate num chão-histórico determinado, por assim dizer.
Tomando como premissa hipotética (pois não tenho número em mãos para checar)orientadora do raciocínio um cenário intelectual brasileiro que têm, em certo sentido,terceirizado a produção teórica aos centros e fomentado historicamente a empiria, o que significa o manifesto, digamos assim, anti-teórico do professor Gusmão?
Gente,
Eu não sou sensata, não vou seguir o bom conselho de Fernando e vou me meter nesse angu de caroço, como disse Mauro. Pois bem, minha experiência com sociologias específicas é diferente do que diz Renan. Num tempo em que quis estudar Sociologia dos Movimentos Sociais, percorri, evidentemente, a evolução das abordagens. Depois, resolvendo mudar de rumo, partindo para a Sociologia da Juventude (no que trabalho atualmente), tracei o mesmo percurso. E o mais significativo sociologicamente, é que nos dois domínios, a evoluão das abordagens segue a evolução das correntes teóricas da sociologia. Ou seja, gente, a teoria social ou sociológica (acho dispensável essa distinção britânica)incide, sim, e como!, sobre as abordagens das sociologias especializadas. Para o bem e para o mal. De meu ponto de vista, o problema é sempre o dos fetiches - qualquer que seja.
(Primeiro e último pitaco neste blog) Às vezes me pergunto sobre o sentido de discussões como esta. Afinal de contas, para que estudar, para que pesquisar, não é mesmo? Aliás: para que se preocupar com ciências sociais? Perguntemos na esquina, já que tudo é tão óbvio... "For dummies": não é esta a expressão? Que a eles seja dado o que lhes é próprio. E fim de papo. Só acho estranho discutir isto em um blog de teorização... pois, se não estou errado, tais discussões nada mais fazem do que chamar a atenção para uma literatura barata que não conseguiria se impor de outra forma. Lamentável! P.S: duas formas de obter destaque: fazer algo, ou tentar matar quem fez. Daqui a alguns anos a gente descobre qual dos lados mais contribuiu com as ciências sociais: Bourdieu, Habermas, etc., ou fulano sei lá do que!
Não sei se o tempo é tão bom juiz assim, anônimo. Além disso, pela maneira como os argumentos são tecidos, como os autores são solicitados, como reagimos (inclusive emocionalmente) às questões levantadas, acredito que tudo isso tenha um sentido, sim, não acha? Aliás, pode haver vários! Desculpe-me a franqueza e a imagem evocada na sequencia, mas incomoda minha alma de "inseto" qualquer tentativa de simplesmente "baratear" o assunto.
Mauro Mesquita
Cynthia,
Sugiro que siga o bom exemplo do Luciano e do Renan, e não o mal exemplo de alguns uspianos naquela matéria da Folha de São Paulo: leia o livro com atenção antes de procurar interpretá-lo em termos tão gerais e categóricos. Sem essa leitura prévia, você corre o risco de concluir, como de fato já ocorreu, coisas tão equivocadas quanto injustas. Tivesse feito isso, teria descoberto, por exemplo, que, num contraste vivo com Bourdieu em “As Regras da Arte”, trato Gadamer com seriedade e respeito. Na página 152 do meu livro, podemos ler: “há, sem dúvida, inteligência e sabedoria nesse intelectual humanista quando protesta contra uma filosofia cientificista, tão ingênua quanto arrogante, que busca reduzir todo conhecimento confiável ao saber científico”. Compare isso com o cientificismo, enrustido ou explícito, de alguns festejados teóricos sociais que insistem em inflacionar o conceito de ciência porque não conseguem abrir mão dele. Minhas diferenças em relação a Gadamer não excluem o respeito intelectual nem a explícita admissão de concordâncias fundamentais. Como pode ver, os seus comentários foram realmente infelizes. Se quiser comentar o meu livro depois de lê-lo, terei grande prazer em responder circunstanciadamente.Antes, não.
Abraço,
Gusmão
Gusmão,
Agradeço seu comentário. Como disse antes, estive comentando uma resenha, com todos os riscos que isso traz. Acredito, entretanto, que, a menos que a caracterização de Luciano Oliveira esteja completamente equivocada, sua referência '"séria e respeitosa" a Gadamer não invalida o ponto central do que venho dizendo aqui: apenas uma visão extremamente limitada de teoria justificaria o abandono do aparato conceitual das ciências sociais.
Mas encerro por aqui meus comentários: realmente, há limites sobre o que se pode dizer sobre uma resenha. A boa notícia é que você não vai precisar se dar o trabalho de responder circunstanciadamente.
Abraço
Luciano,
Li, também com atenção e prazer, as suas “Notas de Leitura” sobre o meu livro “O Fetichismo do Conceito”. Gostei bastante. Estou concluindo um texto de bom tamanho no qual procuro responder, de forma circunstanciada, aos seus comentários críticos. Devido à extensão dessa resposta, não sei se será possível apresentá-la neste blog. De qualquer modo, espero poder enviá-la nos próximos dias. Abraço,
Gusmão
Errata: onde se lê "mal exemplo", no primeiro comentário de Gusmão, leia-se "mau exemplo". De fato, Gusmão havia enviado um email onde dizia ter postado dois comentários, um com um erro de digitação e outro corrigido, e solicitando que eu publicasse apenas o segundo. Acabei postando o comentário errado, pelo que peço desculpas.
Cynthia, você poderia nos dizer qual é sua concepção de "teoria", isto é, quais são, segundo você, as condições que precisam ser satisfeitas para que possamos dizer "eis aqui uma teoria" - ? Penso que isto tornaria mais fácil a conversa, porque você seguidamente dá a entender que existem concepções melhores e piores a respeito do que devemos entender por "teoria", dá a entender que tem na manga do colete uma concepção melhor, mas nunca diz qual é essa concepção.
Renan,
Como disse no inicio de minha participacao aqui e como Gusmao apropriadamente apontou, nao faz sentido manter uma discussao sobre uma obra que eu nao li e que, por uma serie de razoes ligadas as minhas atividades do momento, nao tenho intencao de ler, ao menos no futuro proximo. Meu comentario inicial visava meramente pontuar a inadequacao da distincao entre senso comum e bom senso, o que acabou por me levar a mencionar meu desconforto em relacao a uma critica a teoria sociologica destituida de qualquer positividade (e ja que levantei essa lebre, termino minha participacao por aqui esclarecendo minha afirmacao). Isso porque ela se baseia em uma nocao de teoria que simplesmente nao corresponde a obra da grande maioria dos sociologos, i.e., teoria como "fetichismo do conceito" ou "ilacoes dedutivistas a partir de simples conteudos conceituais" que nao se distinguem do senso comum porque lhes falta um corpo de leis consensualmente aceito pela comunidade dos cientistas.
A caracterizacao acima constitui o que eu estabeleceria como uma definicao negativa de teoria: teoria nao eh um conjunto de leis a partir das quais se deduz um conjunto de proposicoes factuais relativas ao mundo empirico. A esta definicao negativa, junto outra, minimalista e prenhe de positividade(e que nao tenho intencao de desenvolver aqui, embora ela ja esteja presente em diversos posts que escrevi para este blog): a teoria social eh nada mais do que uma estoria causal sobre o mundo social que, longe de se opor a uma perspectiva interpretativa, a traz em seu proprio cerne na medida em que se propoe a investigar constantemente seus pressupostos metateoricos os mais variados (ontologicos, epistemologicos, axiologicos etc). Nisso a obra de um Bourdieu ou um Habermas sao exemplares.
O que distingue esta ultima da teoria sociologica, propriamente dita, eh um conjunto de questoes relacionadas a sociedade moderna, industrial, capitalista (como queira) que constituem uma tradicao de pensamento especifica.
Sendo assim, longe de defender uma sociologia "ateorica" (algo, alias, ja proposto por aquilo que se convencionou chamar de positivismo instrumental), acho que apenas por meio da teoria podemos nos tornar mais conscientes de nossos proprios limites e possibilidades. Abrir mao da teoria em funcao do mau uso que se possa ter feito dela eh, no meu entender, jogar fora o bebe com a agua suja do banho.
Abraco.
Bem, pelo que vejo o debate terminou, pelo menos no âmbito deste Blog.
Fico feliz com as notas de leitura que publiquei graças à generosidade do pessoal do Cazzo, pela discussão que levantou. Fico grato a Gusmão por sua atenção ao que escrevi, bem como ao debate Cynthia vs. Renan que se estendeu para além do que minhas perspectivas mais otimistas.
A bola está no campo.
Acho que o livro de Gusmão deveria levantar um debate sério sobre a presença de teorias sociológicas (ou outras - confesso ter dificuldades com esses escaninhos)nas nossas pós-graduações.
Desculpem meus amigos e colegas que ainda estão no batente: mas essa história de se ter por obrigação um "marco teórico" (obviamente, aquele do orientador...), não será uma coisa castradora de verdadeiras "imaginações sociológicas"?...
Ao mesmo tempo me pergunto: mas será razoável exigir de jovens que estão começando uma carreira, e portanto ainda tímidos frente ao "Saber", que eles tenham conhecimentos e altivez para pensarem com os autores que verdadeiramente amam?... Não necessariamente aqueles que o seu orientador ama?...
Nesse sentido, Gusmão: pode-se usar um metro como o seu, dotado de erudição, experiência e idade, para criticar o que esses jovens fazem?
Nesse sentido, a imposição de um "marco teórico" cumpriria a função de prepará-los para uma pesquisa que não seja uma mera descrição de fatos disparatados. Depois, os melhores, aqueles realmente vocacionados para o métier, descobrirão seu caminho.
Enfim, são questões que me ocorrem.
Grato a todas e todos (pois agora não é assim? - o feminino sempre na frente do masculino?...) pela participação no que espero seja um começo de debate sério.
Feliz 2013 a todos..., êpa!... a todas e todos.
Luciano
Eita!
Ando identificando o mesmo sintoma em dois de nossos meninos: Artur no Blog dos Perrusi,com um pendrive-vibrador exterminador de homens; agora Loup-Loup Cibalena, com esse não disfarçado mal estar por as mulheres virem na frente. Há algum psicanalista de plantão neste réveillon?
Mas, Cibalena!, la politesse mais tradicionalmente machista sempre recomendou citar primeiro as damas, abrir a porta do carro para elas, deixá-las entrar primeiro...Eu, por exemplo, nunca gostei disso: gosto sempre de andar atrás para poder observar os movimentos de quem vai na frente, sem ser observada por ele. E se um cara resolve abrir a porta de um carro para mim, corre o risco de levar um tapa na cara! Tirando isso, todos os meninos (e velhos também) são lindos, apaixonantes e necessários - ou quase.
Vamos acabar com esse complexo de castração! Eis minha palavra de ordem para 2013. Feliz ano novo para todo mundo também.
Cynthia,
Infelizmente, você insiste em opinar da forma mais categórica possível, apesar das ressalvas, sobre um livro que não leu: na sua última resposta ao Renan, em vez de se limitar a explicar o que entende por teoria, volta a fazer críticas despropositadas ao meu trabalho: não, eu não estou identificando toda teoria social com ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos conceituais, revelando, assim, uma visão limitada de teoria. Não, eu não estou propondo nenhuma sociologia empirista radical, nem endosso nenhum “positivismo instrumental”. Essa última censura soa particularmente infundada. Com efeito, em “O fetichismo do conceito”, o leitor encontrará nada menos do que onze passagens nas quais as dificuldades do empirismo positivista são clara e explicitamente sublinhadas! Para facilitar, informo as páginas: 32, 33, 34, 179, 213, 214, 251, 252, 255, 256, 180. Sugiro que leia pelo menos algumas. O Luciano, que leu o livro inteiro, não viu ali o menor vestígio de positivismo. Como você assegurou que o ponto central de seus comentários críticos refere-se à presença de uma concepção extremamente limitada de teoria, historicamente associada ao cientificismo, e outras pessoas que também não leram o livro fizeram a mesma crítica, gostaria de esclarecer o seguinte: é precisamente por convergir com autores como Gadamer, Paul Veyne, Berlin, entre outros, na crítica a um cientificismo ingênuo e arrogante que teima em reduzir todo conhecimento do geral de cunho empírico ao saber científico, é por rejeitar a simplista tipologia segundo a qual o conhecimento em assuntos humanos, de modo similar ao que ocorre no conhecimento da natureza, pode ser enquadrável sob os rótulos sumários de “ciência”, “pré-ciência” e “pseudociência”, é por insistir na realidade de um saber acerca dos seres humanos e suas relações duráveis irredutível a essa tipologia cientificista, é por tudo isso que acolho uma concepção de teoria bastante ampla, tão ampla que é capaz de contemplar não só as generalizações empíricas dos teóricos sociais como também as melhores generalizações já disponíveis nas obras da pequena família dos grandes observadores da condição humana. Na realidade, longe de estreitar, eu sugiro, ao contrário, um alargamento considerável da chamada base teórica da moderna investigação social.Num texto brilhante sobre o meu trabalho, que deverá ser publicado brevemente, Gabriel Peters esclarece muito bem esse ponto. Em “O Fetichismo do Conceito”, essa concepção ampliada do conhecimento teórico confiável é clara e explicitamente defendida. De fato, ali podemos ler: “Se, abrindo mão da ideia de imaginárias rupturas com a sabedoria de senso comum, entendermos, sensata e realisticamente, por ‘base teórica’ da investigação social apenas uma boa coleção – das mais distintas procedências – de conclusões gerais inteligentes, plausíveis e bem documentadas acerca dos seres humanos e suas relações duráveis, então, cabe reconhecer, as generalizações de Stendhal e Weber citadas podem sim funcionar perfeitamente como tal. Nada mais compreensível: da melhor sociologia podemos afirmar, com razão, a mesmíssima coisa que Rorty disse da reflexão filosófica: ‘Filosofia não é o nome de um gênero natural, mas apenas o nome de um dos compartimentos nos quais a cultura humanística está dividida para fins administrativos e bibliográficos’” (p. 102-105). Não temos aqui, convenhamos, nenhuma concepção estreita de teoria, muito pelo contrário. Contudo, exatamente por rejeitar o cientificismo, enrustido ou explícito, daqueles que insistem, atormentados por dúvidas e inseguranças intelectuais, em inflacionar o conceito de ciência com o objetivo de assegurar respeitabilidade intelectual para suas pesquisas, tornando assim esse conceito imprestável na descrição de uma forma específica do conhecimento humano, eu sugiro que deixemos de rotular toda boa generalização em assuntos humanos, empregada nas pesquisas sociais empiricamente orientadas, de “teoria científica”, pois isso só tem levado a erros e confusões. Se quiser saber quais, bem, leia o livro.
Gusmão,
Obrigada pelos esclarecimentos. Agora ficou claro e eu posso concluir com mais segurança: apenas uma concepção extremamente limitada de teoria possibilitaria a defesa de uma sociologia "ateórica"... Bom saber que você não defende isso.
Abçs
Cynthia, não resisto a um último comentário: para mim uma frase como "somente uma visão extremamente limitada de teoria justifica defender uma sociologia ateórica" tem exatamente o mesmno valor que a frase "somente uma visão elástica de teoria justifica defender uma ssociologia teórica". Por que uma visão elástica é preferível a uma restrita? Seu comentário parece ser um convite a uma troca de acusações na qual um lado chamaria o outro de "limitado" e o outro retrucaria "auto-complacente".
Caro Renan, acho que a tua colocação (a de que as frases envolvendo os termos teoria e sociologia se equivalem) não foi muito feliz, ao menos do ponto de vista lógico. Ou seja, A implica B não equivale a não-A implica não-B. Logo...
Mauro Mesquita
Renan,
O que eu chamei de visão limitada da teoria refere-se a uma concepção limitada a uma filosofia da ciência positivista e cientificista. Essa visão já foi questionada por inúmeros autores, inclusive no sentido de fornecer uma descrição adequada da atividade teórica das ciências naturais (e não apenas sociais). Neste sentido, defender uma sociologia "ateórica" nos moldes propostos pressupõe justamente aquilo que se procura negar (i.e., uma concepção de teoria restrita ao positivismo).
Contradições à parte, faço minha a preocupação do Igor (que ninguém se deu ao trabalho de responder) em relação às consequências de um manifesto anti-teórico em um país como o Brasil.
Caro Mauro, desculpe-me mas simplesmente não entendi o seu comentário. SE você diz de uma lado: "você tem uma visão restrita do conceito 'x'", você autoriza o outro a dizer "e daí?, é você que tem uma visão elástica demais desse mesmo conceito. Por que uma visão elástica é preferível à visão restrita"? Que "erro lógico" há nisto? Aí vem a Cynthia e responde que a visão restrita é a "positivista", já "descartada por muitos autores" enquanto a outra, a que ela defende, é a ..., bem, a outra é uma que ... considera a interpretação "em seu cerne"..., Bourdieu e Habermas usam exemplarmente ... ela já explicou em outros lugares do blog... Enfim, continuo no escuro.
Por que uma visão é preferível a outra? Ora, Renan, porque talvez ela dê conta de aspectos não facilmente acomodados pela visão alternativa. Contudo, sou obrigado a concordar contigo: ainda assim não posso te desautorizar a dizer "e daí?".
Quanto à questão do Igor, Cynthia, vc n acha q já arrumou confusão demais, n? Deixa pra outro post, vai...
Mauro Mesquita
Renan,
Você poderia, por favor, postar novamente seu último comentário? Apaguei-o sem querer, desculpe.
Quem fez a besteira fui eu, Jonatas
Luciano,
Como prometido, escrevi um texto respondendo circunstanciadamente às suas inteligentes e espirituosas “Notas de Leitura”. Infelizmente, suspeito que acabou ficando longo demais para um blog: 15 páginas, sendo que nas últimas três discuto o significado do termo “teoria”, uma questão não tratada de forma explícita em meu livro. Gostaria de disponibilizá-lo para todos os interessados. Talvez pudéssemos dividi-lo em partes, ou algo parecido. Aguardo sugestões.
Abraço
Gusmão
Caro Gusmão,
Será um prazer postar o seu texto no Cazzo. Talvez tenhamos de dividi-lo, como você diz. De qualquer modo, seria bom ter algo seu aqui no nosso blog, visto que o seu livro provocou uma discussão tão acalorada. É só mandar pra gente. Temos um texto de Cynthia na agulha e o seu seria o próximo. Abraço, Jonatas
Mauro, não estou muito bem lembrado do que disse e foi apagado. Mas você disse "talvez uma visão mais abrangente de teoria contemple aspectos que a outra não contemple". O que eu disse foi: diga-me que aspectos são esses. Estou no escuro a respeito deles. Talvez você possa me esclarecer a respeito disto.
Oi, Gusmão!
Independentemente de ser publicado no Cazzo, gostaria muito de receber seu texto. Por que não me envia por via eletrônica?
Eis meu e-mail:
jlgo5283@gmail.com
Luciano Oliveira
Gusmão, ao fazer sua crítica ao livro de Duglas Teixeira Monteiro (Os errantes do novo século), por exemplo, aponta que as interpretações teóricas ali encontradas não estão baseadas na elucidação conteudística e testável dos "propósitos reais dos indivíduos ou grupos reais investigados". Tal passagem, Renan, permite-nos pensar que uma teoria que leve em conta tais propósitos é preferível a outra que não o leve.
Agora, sinceramente, que tal aguardarmos o que vem por aí da lavra do próprio Gusmão?
Mauro.
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