"As Mãos de Glenn Gould". Foto de Paul Rockett, 1956 |
Por Cynthia Hamlin
De acordo com um ditado chinês, as coisas
boas sempre vêm em pares. Frequentemente, tenho a impressão contrária, de que
são as coisas ruins que vêm de bolo, mas o fato é que me acostumei a relacionar
Gadamer a Glenn Gould. (Para uma série de 3 pequenos posts sobre a relação
entre interpretação e verdade com base em Gadamer e Gould, clique aqui, aqui e
aqui - mas já aviso de antemão que mudei de ideia sobre o que escrevi por lá!). As razões dessa associação pouco importam – talvez seja apenas uma
manifestação particular daquilo que Merton e Barber (2004) chamaram de
“serendipicidade” - mas creio que existem boas razões não só para insistir nela,
mas para estabelecer um diálogo entre esses dois pensadores da arte da
interpretação.
Num universo hoje considerado
hermético e elitista, o da música erudita, poucos alcançaram a projeção do
pianista, compositor e intelectual canadense Glenn Gould (1932-1982), cuja
popularidade foi diversas vezes comparada à de James Dean. Embora mais
conhecido por suas interpretações musicais - particularmente pela forma
inovadora como interpretava compositores como Bach, Beethoven e Mozart (de quem
não gostava), pela escolha eclética de seu repertório e por suas transcrições
para o piano de obras de Wagner, Bizet, Richard Strauss e Webern - Gould foi um
escritor prolífico que acreditava que certas ideias “podiam ser melhor
desenvolvidas no teclado de uma máquina de escrever do que no de um piano”
(Page, 1984: xiv). Para Edward Said (ele próprio um pianista acompanhador
talentoso), trata-se não apenas de um virtuoso de capacidade técnica comparável
a Horowitz, Barenboim, Pollini e Argerich, mas de um intelectual que refletia intensamente
sobre suas próprias práticas, o que possibilitaria incluí-lo em uma tradição crítica
que se estende para além do domínio estrito da performance e da exibição em
direção a um campo discursivo “característico de intelectuais que usam a
linguagem apenas” (Said, 2000: 6).
Além dos inúmeros artigos e das
mais de 80 gravações, o legado de Gould inclui uma série de programas de rádio
e de televisão que, em seu conjunto, revelam aquilo que o filósofo Geoffrey
Payzant (1992: x) denominou de “temas caracteristicamente gouldianos”: a
solitude, o êxtase, o concerto como uma espécie de jogo (ou, mais
apropriadamente, de esporte sangrento), a não reprodutibilidade das
performances, a tecnologia e, eu acrescentaria, a relação entre arte e moral, assim
como a importância da negatividade e da dimensão tátil ou corpórea em sua
práxis. Talvez à exceção da solitude, todos esses temas estão presentes na hermenêutica
de Gadamer que, como Gould, parte de uma crítica a um certo subjetivismo
enfatizado pela tradição romântica que deu origem às abordagens interpretativas
das ciências sociais. E embora existam muitas discordâncias em relação à forma
como os dois lidam com esses temas, particularmente na linguagem empregada, uma
tradução aproximada revela uma concordância fundamental: a de que a ação
criativa está ligada ao êxtase, um “estar fora de si” que, ao promover um encontro
com a alteridade e com a diferença, pode gerar uma mudança em termos de
(auto)compreensão.
Para que se possa pensar nesse
diálogo para além de uma contribuição em sociologia da música, ou mesmo da
cultura, é importante lembrar que a hermenêutica filosófica consiste em uma
perspectiva abrangente que se propõe a refletir sobre a forma restrita como a
ciência moderna concebe noções como verdade, significado e racionalidade,
revelando os limites que essa concepção coloca para a compreensão da existência
humana. Trata-se, na verdade, de uma continuação do projeto de crítica da razão
iniciado pelo idealismo e pelo romantismo alemão, ainda que pretenda ir além
deles. De fato, ao criticar redução da hermenêutica a um método para a
apreensão dos significados subjetivos que supostamente estariam na origem dos
produtos culturais e dos eventos históricos, Gadamer nos oferece uma ontologia
do ser social e uma teoria da compreensão humana que se estende para muito além
da compreensão científica. Em termos gerais, sua hermenêutica consiste em uma teoria
da “práxis da compreensão” (Gadamer, 2007: 71) cuja importância sociológica pode
ser pensada em termos de seus desdobramentos para uma sociologia das práticas
sociais, isto é, para aquele conjunto de teorias que se ocupa de um tipo de conhecimento
implícito, tácito ou inconsciente que está na base da organização simbólica da
realidade social (Reckwitz, 2002; Vandenberghe, no prelo).
Partindo de uma ontologia heideggeriana,
Gadamer concebe o ser humano como um tipo de ser cuja existência é um problema
para si, ou seja, um tipo de ser que busca compreender sua própria existência e
que, neste processo, se transforma constantemente. A fim de compreendermos as
implicações disso, é necessário um pequeno esclarecimento sobre o próprio termo
“compreensão” que, em alemão (Verstehen),
é utilizado tanto no sentido de uma habilidade prática como de uma habilidade
cognitiva. Alguém que compreende algo é alguém versado em alguma coisa, é capaz
de reconhecê-la. Pode-se compreender um texto (ou seja, interpretá-lo, perceber
conexões, extrair conclusões), o funcionamento de uma máquina (saber como
operá-la) ou um ofício (saber desempenhá-lo) e todas essas formas de
compreensão são, em última instância, uma forma de autocompreensão, isto é, um
“projetar-se sobre suas possibilidades”, um saber como proceder (Gadamer, 2006:
250-51). Isso significa que existe uma fonte de conhecimento do que é ser
humano que antecede o conhecimento científico, e o que Gadamer chama de “práxis
da compreensão” não pode ser identificado a um método da ciência moderna, cuja
noção de prática foi reduzida à de tecnologia e, de experiência, a experimento.
A noção gadameriana de práxis, em
seu ideal perfeito, diz respeito ao uso consciente do know-how e do
conhecimento humanos orientados para a ação. Seu significado consiste naquilo
que desde o século XVIII se conhece como razão prática e a que Aristóteles, em
sua ética, se referia como fronese: um tipo de conhecimento prático (em
contraposição a teórico), dirigido à situação concreta que, diferentemente do
que se conhece como “julgamento”, não busca simplesmente subsumir os casos
individuais a categorias universais, mas também submetê-los a um controle moral
a fim de que a coisa certa possa resultar. Em outros termos, a racionalidade
que caracteriza a fronese não diz respeito à aplicação lógico-dedutiva de uma
regra universal a um caso particular, é sempre relativa a um caso concreto, não
pode ser ensinada (dado que o caso concreto não pode ser conhecido de antemão)
e representa uma atitude moral segundo a qual se distingue entre ações próprias
e impróprias de acordo com os valores de uma comunidade (Gadamer, 2006). Neste
sentido, ela se contrapõe à racionalidade científica, estando mais próxima à
ideia de sabedoria, que é também uma virtude moral e que sempre requer
autodeliberação: algo que diz respeito “não apenas à descoberta inteligente e
habilidosa dos meios para se alcançar determinadas tarefas, não apenas a uma
consciência do que é prático, de como alcançar objetivos incidentais, mas
também ao sentido de estabelecer os próprios objetivos e de se responsabilizar
por eles” (Gadamer, 1996: 48). Teorizar sobre uma “práxis da compreensão” é,
portanto, teorizar sobre o que acontece quando nós sabemos proceder
corretamente em uma situação concreta, e a diferença entre essa disposição
filosófica e o método científico pode ser melhor entendida quando se tem em
mente o tipo de conflito, caracterizado por Max Weber, entre a ciência, que
apenas pode estabelecer os meios mais adequados para atingirmos determinados
fins, e nossa consciência dos valores, que é, de uma perspectiva científica,
uma questão meramente subjetiva, de escolha pessoal.
Saber como proceder em uma situação
concreta, compreendê-la, no sentido pleno da palavra (algo sempre incompleto),
depende de um tipo de experiência que também não pode ser reduzida à
experiência com a qual a ciência se ocupa e que pode ser definida como um
estoque de conhecimento experimental apartado da experiência pessoal, que tem
sempre um fim definido e cuja validade depende de sua confirmabilidade,
portanto, de sua repetibilidade. Gadamer se utiliza de dois termos distintos
para falar da experiência que constitui o conhecimento prático que a
hermenêutica interpreta: Erlebnis
(experiência vivida) e Erfahrung. O
que ambas têm em comum é o fato de se referirem à participação ativa em uma
situação concreta (sempre singular e, portanto, histórica, não repetível) e de
só contarem como experiência quando integradas “na consciência prática de seres
humanos ativos” (Gadamer, 1996: 2). Mas é em sua crítica ao idealismo
especulativo de Dilthey que a posição de Gadamer em relação ao tipo de
experiência que interessa à hermenêutica fica mais clara: o conceito de Erlebnis é claramente associado a um
projeto epistemológico segundo o qual o significado diz respeito a uma
faculdade ou atitude subjetiva que supostamente embasa a compreensão. Em lugar
de focar o objeto experienciado, aquilo que nos é dado diretamente na
experiência, o foco incide sobre a experiência conforme autorrefletida pela
consciência de um sujeito que, pelo menos desde Descartes, é concebido em
termos de uma mente
autossuficiente que se relaciona com os objetos do mundo por meio de estados
mentais internos que, de alguma forma, representam, mas não dependem desses
objetos, garantindo assim que ela funcione como o elemento estável que
fundamenta o método (Gadamer, 2000; Dreyfuss, 2004). Ao contrário dessa
tradição, Gadamer está interessado na compreensão, e portanto na experiência,
como algo que organiza a “subjetividade”, subvertendo suas expectativas - ou, numa
linguagem fenomenológica mais adequada ao autor, na compreensão como um
modo-de-ser do Dasein que o caracteriza como um ser-em-movimento que nunca é
totalmente transparente para si e que, por essa razão, não pode funcionar como
fundamento da ideia de certeza que caracteriza o método.
Em Verdade e Método, Gadamer (2006:
341) afirma que “por mais paradoxal que isso possa parecer, o conceito de
experiência [Erfahrung] (...)é um dos
mais obscuros que nós temos”. Tanto na ciência quanto na vida cotidiana, a experiência
só ocorre em observações individuais (neste sentido, ela é sempre Erlebnis) e só é válida enquanto não é
contradita por uma nova experiência. Isso aponta para uma abertura fundamental da
experiência para novas experiências e essa necessidade de confirmação constante
torna a experiência diferente sempre que não há confirmação. Sendo assim, a
experiência humana, em seu aspecto geral (enquanto Erfahrung), é sempre um processo, e um processo essencialmente
negativo na medida em que ela não pode ser simplesmente descrita em termos da
geração contínua de universais típicos. Ao contrário, os universais só são
gerados à medida que as generalizações falsas são continuamente refutadas pela
experiência, de forma que o que era considerado como típico passa a não ser. É
por isso que Gadamer distingue entre dois sentidos de experiência: aquelas que
se conformam às nossas expectativas e as confirmam, e as novas experiências,
aquelas que ocorrem e que, para ele, constituem as verdadeiras experiências:
“apenas algo diferente e inesperado pode dar a alguém que tem experiência uma
nova experiência” (Ibid: 348). Essas novas experiências, por seu turno,
possibilitam que a consciência que experiencia algo reverta sua direção,
voltando-se para si mesma e tornando-se consciente de sua experiência. Neste
sentido, a experiência que está na base do conhecimento gera também um
autoconhecimento. É isso que caracteriza a experiência hermenêutica, que pode
ser então definida como um evento, como algo que nos endereça, promovendo um
encontro com a diferença, a alteridade (outra pessoa, outra cultura, outro
período histórico, outro horizonte) e, em última análise, com nós mesmos.
No(s) próximo(s) post(s), falarei
sobre a experiência da arte como uma forma privilegiada de experiência
hermenêutica e do papel do êxtase neste processo, conforme pensado por Gadamer
e por Gould. Sei lá quando.