sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Sujeitos extáticos em Gadamer e Glenn Gould: um exercício em interpretação (quase) selvagem. (Parte 1)


"As Mãos de Glenn Gould". Foto de Paul Rockett, 1956

Por Cynthia Hamlin

De acordo com um ditado chinês, as coisas boas sempre vêm em pares. Frequentemente, tenho a impressão contrária, de que são as coisas ruins que vêm de bolo, mas o fato é que me acostumei a relacionar Gadamer a Glenn Gould. (Para uma série de 3 pequenos posts sobre a relação entre interpretação e verdade com base em Gadamer e Gould, clique aqui, aqui e aqui - mas já aviso de antemão que mudei de ideia sobre o que escrevi por lá!). As razões dessa associação pouco importam – talvez seja apenas uma manifestação particular daquilo que Merton e Barber (2004) chamaram de “serendipicidade” - mas creio que existem boas razões não só para insistir nela, mas para estabelecer um diálogo entre esses dois pensadores da arte da interpretação.  

Num universo hoje considerado hermético e elitista, o da música erudita, poucos alcançaram a projeção do pianista, compositor e intelectual canadense Glenn Gould (1932-1982), cuja popularidade foi diversas vezes comparada à de James Dean. Embora mais conhecido por suas interpretações musicais - particularmente pela forma inovadora como interpretava compositores como Bach, Beethoven e Mozart (de quem não gostava), pela escolha eclética de seu repertório e por suas transcrições para o piano de obras de Wagner, Bizet, Richard Strauss e Webern - Gould foi um escritor prolífico que acreditava que certas ideias “podiam ser melhor desenvolvidas no teclado de uma máquina de escrever do que no de um piano” (Page, 1984: xiv). Para Edward Said (ele próprio um pianista acompanhador talentoso), trata-se não apenas de um virtuoso de capacidade técnica comparável a Horowitz, Barenboim, Pollini e Argerich, mas de um intelectual que refletia intensamente sobre suas próprias práticas, o que possibilitaria incluí-lo em uma tradição crítica que se estende para além do domínio estrito da performance e da exibição em direção a um campo discursivo “característico de intelectuais que usam a linguagem apenas” (Said, 2000: 6).

Além dos inúmeros artigos e das mais de 80 gravações, o legado de Gould inclui uma série de programas de rádio e de televisão que, em seu conjunto, revelam aquilo que o filósofo Geoffrey Payzant (1992: x) denominou de “temas caracteristicamente gouldianos”: a solitude, o êxtase, o concerto como uma espécie de jogo (ou, mais apropriadamente, de esporte sangrento), a não reprodutibilidade das performances, a tecnologia e, eu acrescentaria, a relação entre arte e moral, assim como a importância da negatividade e da dimensão tátil ou corpórea em sua práxis. Talvez à exceção da solitude, todos esses temas estão presentes na hermenêutica de Gadamer que, como Gould, parte de uma crítica a um certo subjetivismo enfatizado pela tradição romântica que deu origem às abordagens interpretativas das ciências sociais. E embora existam muitas discordâncias em relação à forma como os dois lidam com esses temas, particularmente na linguagem empregada, uma tradução aproximada revela uma concordância fundamental: a de que a ação criativa está ligada ao êxtase, um “estar fora de si” que, ao promover um encontro com a alteridade e com a diferença, pode gerar uma mudança em termos de (auto)compreensão.

Para que se possa pensar nesse diálogo para além de uma contribuição em sociologia da música, ou mesmo da cultura, é importante lembrar que a hermenêutica filosófica consiste em uma perspectiva abrangente que se propõe a refletir sobre a forma restrita como a ciência moderna concebe noções como verdade, significado e racionalidade, revelando os limites que essa concepção coloca para a compreensão da existência humana. Trata-se, na verdade, de uma continuação do projeto de crítica da razão iniciado pelo idealismo e pelo romantismo alemão, ainda que pretenda ir além deles. De fato, ao criticar redução da hermenêutica a um método para a apreensão dos significados subjetivos que supostamente estariam na origem dos produtos culturais e dos eventos históricos, Gadamer nos oferece uma ontologia do ser social e uma teoria da compreensão humana que se estende para muito além da compreensão científica. Em termos gerais, sua hermenêutica consiste em uma teoria da “práxis da compreensão” (Gadamer, 2007: 71) cuja importância sociológica pode ser pensada em termos de seus desdobramentos para uma sociologia das práticas sociais, isto é, para aquele conjunto de teorias  que se ocupa de um tipo de conhecimento implícito, tácito ou inconsciente que está na base da organização simbólica da realidade social (Reckwitz, 2002; Vandenberghe, no prelo).

Partindo de uma ontologia heideggeriana, Gadamer concebe o ser humano como um tipo de ser cuja existência é um problema para si, ou seja, um tipo de ser que busca compreender sua própria existência e que, neste processo, se transforma constantemente. A fim de compreendermos as implicações disso, é necessário um pequeno esclarecimento sobre o próprio termo “compreensão” que, em alemão (Verstehen), é utilizado tanto no sentido de uma habilidade prática como de uma habilidade cognitiva. Alguém que compreende algo é alguém versado em alguma coisa, é capaz de reconhecê-la. Pode-se compreender um texto (ou seja, interpretá-lo, perceber conexões, extrair conclusões), o funcionamento de uma máquina (saber como operá-la) ou um ofício (saber desempenhá-lo) e todas essas formas de compreensão são, em última instância, uma forma de autocompreensão, isto é, um “projetar-se sobre suas possibilidades”, um saber como proceder (Gadamer, 2006: 250-51). Isso significa que existe uma fonte de conhecimento do que é ser humano que antecede o conhecimento científico, e o que Gadamer chama de “práxis da compreensão” não pode ser identificado a um método da ciência moderna, cuja noção de prática foi reduzida à de tecnologia e, de experiência, a experimento.

A noção gadameriana de práxis, em seu ideal perfeito, diz respeito ao uso consciente do know-how e do conhecimento humanos orientados para a ação. Seu significado consiste naquilo que desde o século XVIII se conhece como razão prática e a que Aristóteles, em sua ética, se referia como fronese: um tipo de conhecimento prático (em contraposição a teórico), dirigido à situação concreta que, diferentemente do que se conhece como “julgamento”, não busca simplesmente subsumir os casos individuais a categorias universais, mas também submetê-los a um controle moral a fim de que a coisa certa possa resultar. Em outros termos, a racionalidade que caracteriza a fronese não diz respeito à aplicação lógico-dedutiva de uma regra universal a um caso particular, é sempre relativa a um caso concreto, não pode ser ensinada (dado que o caso concreto não pode ser conhecido de antemão) e representa uma atitude moral segundo a qual se distingue entre ações próprias e impróprias de acordo com os valores de uma comunidade (Gadamer, 2006). Neste sentido, ela se contrapõe à racionalidade científica, estando mais próxima à ideia de sabedoria, que é também uma virtude moral e que sempre requer autodeliberação: algo que diz respeito “não apenas à descoberta inteligente e habilidosa dos meios para se alcançar determinadas tarefas, não apenas a uma consciência do que é prático, de como alcançar objetivos incidentais, mas também ao sentido de estabelecer os próprios objetivos e de se responsabilizar por eles” (Gadamer, 1996: 48). Teorizar sobre uma “práxis da compreensão” é, portanto, teorizar sobre o que acontece quando nós sabemos proceder corretamente em uma situação concreta, e a diferença entre essa disposição filosófica e o método científico pode ser melhor entendida quando se tem em mente o tipo de conflito, caracterizado por Max Weber, entre a ciência, que apenas pode estabelecer os meios mais adequados para atingirmos determinados fins, e nossa consciência dos valores, que é, de uma perspectiva científica, uma questão meramente subjetiva, de escolha pessoal.

Saber como proceder em uma situação concreta, compreendê-la, no sentido pleno da palavra (algo sempre incompleto), depende de um tipo de experiência que também não pode ser reduzida à experiência com a qual a ciência se ocupa e que pode ser definida como um estoque de conhecimento experimental apartado da experiência pessoal, que tem sempre um fim definido e cuja validade depende de sua confirmabilidade, portanto, de sua repetibilidade. Gadamer se utiliza de dois termos distintos para falar da experiência que constitui o conhecimento prático que a hermenêutica interpreta: Erlebnis (experiência vivida) e Erfahrung. O que ambas têm em comum é o fato de se referirem à participação ativa em uma situação concreta (sempre singular e, portanto, histórica, não repetível) e de só contarem como experiência quando integradas “na consciência prática de seres humanos ativos” (Gadamer, 1996: 2). Mas é em sua crítica ao idealismo especulativo de Dilthey que a posição de Gadamer em relação ao tipo de experiência que interessa à hermenêutica fica mais clara: o conceito de Erlebnis é claramente associado a um projeto epistemológico segundo o qual o significado diz respeito a uma faculdade ou atitude subjetiva que supostamente embasa a compreensão. Em lugar de focar o objeto experienciado, aquilo que nos é dado diretamente na experiência, o foco incide sobre a experiência conforme autorrefletida pela consciência de um sujeito que, pelo menos desde Descartes, é concebido em termos de uma mente autossuficiente que se relaciona com os objetos do mundo por meio de estados mentais internos que, de alguma forma, representam, mas não dependem desses objetos, garantindo assim que ela funcione como o elemento estável que fundamenta o método (Gadamer, 2000; Dreyfuss, 2004). Ao contrário dessa tradição, Gadamer está interessado na compreensão, e portanto na experiência, como algo que organiza a “subjetividade”, subvertendo suas expectativas - ou, numa linguagem fenomenológica mais adequada ao autor, na compreensão como um modo-de-ser do Dasein que o caracteriza como um ser-em-movimento que nunca é totalmente transparente para si e que, por essa razão, não pode funcionar como fundamento da ideia de certeza que caracteriza o método.

Em Verdade e Método, Gadamer (2006: 341) afirma que “por mais paradoxal que isso possa parecer, o conceito de experiência [Erfahrung] (...)é um dos mais obscuros que nós temos”. Tanto na ciência quanto na vida cotidiana, a experiência só ocorre em observações individuais (neste sentido, ela é sempre Erlebnis) e só é válida enquanto não é contradita por uma nova experiência. Isso aponta para uma abertura fundamental da experiência para novas experiências e essa necessidade de confirmação constante torna a experiência diferente sempre que não há confirmação. Sendo assim, a experiência humana, em seu aspecto geral (enquanto Erfahrung), é sempre um processo, e um processo essencialmente negativo na medida em que ela não pode ser simplesmente descrita em termos da geração contínua de universais típicos. Ao contrário, os universais só são gerados à medida que as generalizações falsas são continuamente refutadas pela experiência, de forma que o que era considerado como típico passa a não ser. É por isso que Gadamer distingue entre dois sentidos de experiência: aquelas que se conformam às nossas expectativas e as confirmam, e as novas experiências, aquelas que ocorrem e que, para ele, constituem as verdadeiras experiências: “apenas algo diferente e inesperado pode dar a alguém que tem experiência uma nova experiência” (Ibid: 348). Essas novas experiências, por seu turno, possibilitam que a consciência que experiencia algo reverta sua direção, voltando-se para si mesma e tornando-se consciente de sua experiência. Neste sentido, a experiência que está na base do conhecimento gera também um autoconhecimento. É isso que caracteriza a experiência hermenêutica, que pode ser então definida como um evento, como algo que nos endereça, promovendo um encontro com a diferença, a alteridade (outra pessoa, outra cultura, outro período histórico, outro horizonte) e, em última análise, com nós mesmos. 

No(s) próximo(s) post(s), falarei sobre a experiência da arte como uma forma privilegiada de experiência hermenêutica e do papel do êxtase neste processo, conforme pensado por Gadamer e por Gould. Sei lá quando. 




sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Um Bilhão que se Ergue!


Por Wedja Martins e Cynthia Hamlin

Em 1993, em reconhecimento ao fato de que as mulheres têm direito de viver uma vida livre de violência, a Organização das Nações Unidas lançou a Declaração da Eliminação da Violência Contra as Mulheres. A fim de contribuir para a implementação de políticas públicas eficazes, em 2003, a Assembleia Geral da ONU, em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e com a Comissão Econômica para a Europa, consensualmente adotou uma resolução solicitando um estudo em profundidade acerca de todas as formas e manifestações de violência contra as mulheres. As dificuldades de um estudo como esse são bem conhecidas de todos aqueles que trabalham com dados internacionais: procedimentos metodológicos distintos que dificultam comparações entre os dados coletados, ausência de dados confiáveis, inexistência de pesquisas sobre o tema, dentre outros. E parte da dificuldade advém do fato de que, até recentemente, a violência contra as mulheres era, por razões culturais, encarada como algo do âmbito privado e, não raro, sancionado pelos Estados (para se ter uma ideia, apenas em 2005 o Código Penal Brasileiro retirou o termo “mulher honesta” de suas definições de estupro e de atentado violento ao pudor, o que, na prática, dividia as mulheres entre as que eram e as que não eram “merecedoras” de proteção institucional).

Dificuldades metodológicas à parte, os dados disponíveis nos permitem afirmar com segurança que a violência contra as mulheres é um fenômeno global que, em sua perversa democratização, tem consequências no âmbito dos direitos humanos, nas dimensões econômicas, políticas e de saúde pública de todas as sociedades, o que não mais justifica a visão de que se trata de algo “apenas” da esfera privada.

Se a violência contra as mulheres é apenas a ponta do iceberg no que se refere às desigualdades de gênero (outras incluem acesso desigual a educação, saúde, previdência e assistência social, bens duráveis e uso do tempo; menores salários; menos poder político), todas elas formas têm em comum aquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu (2010) denominou de violência simbólica: uma violência que, ao contrário da violência física sofrida cotidianamente por mulheres do mundo inteiro, é quase invisível para as suas vítimas e para os seus algozes porque fundamentada em uma ordem simbólica compartilhada por todos e segundo a qual é direito natural de uns dominarem outros. Obviamente que isso não significa dizer que mulheres espancadas, estupradas, assassinadas, são vítimas de violência simbólica apenas, mas que a incorporação dessas relações de poder extremamente desiguais entre homens e mulheres têm um denominador comum na ordem simbólica que ajuda a naturalizá-las, explicando a monótona manifestação de violência física, sexual, psicológica e econômica a que as mulheres têm sido historicamente submetidas. Como afirma o relatório do Departamento de Questões Sociais e Econômicas das Nações Unidas (The World’s Women 2010: Trends and Statistics, p. 126):

A violência contra as mulheres ao longo de seu ciclo de vida é uma manifestação histórica das relações de poder entre mulheres e homens. Ela é perpetuada por meios de práticas tradicionais e costumeiras que atribuem às mulheres um status mais baixo na família, no ambiente de trabalho, na comunidade e na sociedade, e é exacerbada por pressões sociais. Estas incluem vergonha e, portanto, dificuldade em denunciar certos atos contra as mulheres; falta de acesso por parte delas a informação, auxílio ou proteção jurídica; um conjunto de leis que efetivamente proíba a violência contra as mulheres; esforços inadequados por parte das autoridades públicas no sentido de reforçar as leis existentes e promover seu conhecimento; ausência de meios educativos que possam endereçar as causas e consequências da violência.

De acordo com um release das Nações Unidas, em novembro de 2011, 70 por cento das mulheres do mundo inteiro, ou cerca de um bilhão de mulheres, vivencia alguma forma do que pode ser caracterizado de violência contra a mulher durante sua vida. A probabilidade de que uma mulher entre 15 e 44 anos seja estuprada ou vítima de violência sexual é maior do que suas chances de contrair câncer ou desenvolver um acidente vascular cerebral. Abaixo, alguns dados, todos do mesmo documento, que especificam melhor essas cifras:

A forma mais comum de violência física vivenciada por mulheres no mundo inteiro é a cometida por parceiros íntimos e cerca de metade das mulheres assassinadas globalmente são mortas por parceiros ou ex-parceiros:
· Na Austrália, Canadá e Israel, de 40 a 70% das vítimas de assassinato do sexo feminino foram mortas por seus companheiros.
· Nos EUA, um terço das mulheres assassinadas a cada ano foram mortas por seus parceiros íntimos.
· Na África do Sul, a cada seis horas uma mulher é morta por um parceiro íntimo.
· Na índia, no ano de 2007, 22 mulheres foram mortas por dia em assassinatos relacionados ao dote.

A violência sexual, em que pese a subnotificação dos casos, não é menos alarmante:

· O número de mulheres com mais de 15 anos que sofrem violência sexual por parte de não-parceiros varia entre menos de um porcento na Etiópia, a entre 10 e 12% no Peru, em Samoa e na Tanzânia.
· Na Suíça, 22.3 porcento das mulheres vivenciam violência sexual por não-parceiros em algum momento de suas vidas.
· No Canadá, um estudo entre adolescentes de 15 a 19 concluiu que 54% das mulheres experimentaram “coerção sexual” em uma relação de namoro.

No que se refere ao estupro como tática de guerra,

· Na República Democrática do Congo, aproximadamente 1.100 estupros são reportados a cada dia, uma média de 36 mulheres e meninas estupradas todos os dias. Acredita-se que mais de 200.00 mulheres tenham sofrido violência sexual desde o início do conflito armado.
· Entre 250.000 e 500.000 mulheres foram estupradas durante o genocídio em Ruanda, em 1994.
· A violência sexual foi uma característica na guerra civil na Libéria, que durou 14 anos.
· Durante o conflito na Bósnia, no início dos anos de 1990, entre 20.000 e 50.000 mulheres foram estupradas.

A violência durante e após a gravidez também tem sido particularmente documentada e o infanticídio feminino, a seleção do sexo no prenatal e a negligência sistemática de meninas são práticas comuns em partes da Ásia, África e do Oriente Médio. Outras formas de violência contra as mulheres, como a maior exposição ao vírus do HIV, também são conhecidas. De acordo com a mesma fonte, a dificuldade que muitas mulheres enfrentam para negociar o uso da camisinha é grandemente associada à alta incidência do HIV/Aids. Além disso, o sexo não desejado (ao qual mulheres jovens são especialmente vulneráveis) resulta em maiores riscos de abrasões e sangramentos associados à transmissão do vírus. Por fim, são bem documentadas formas de violência como a mutilação genital feminina (com estimativas que variam de 130 a 140 milhões de mulheres que sofreram diversas formas de MGF) e o assédio sexual e moral no mundo do trabalho:

· Estima-se que entre 40 e 50% das mulheres nos países da Comunidade Europeia experienciem avanços sexuais e contatos físicos não-desejados e outras formas de assédio sexual em seus ambientes de trabalho.
· Nos EUA, 83% das meninas entre 12 e 16 anos experimentam alguma forma de assédio sexual em escolas públicas.

No Brasil, alguns estudos e fontes mostram tendências semelhantes. Documentos como o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (p. 16) mencionam estudos segundo os quais “aproximadamente 24% das mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica. Quando estimuladas por meio da citação de diferentes formas de agressão, esse percentual sobe para 43%. Um terço afirma, ainda, já ter sofrido algum tipo de violência física, seja ameaça com armas de fogo, agressões ou estupro conjugal”.

E as estatísticas do horror podem se estender e se estender. Mas nosso objetivo aqui é outro: o que pretendemos ilustrar com esses dados (inclusive em sua fragilidade) é que, dada a ordem simbólica que ajuda a estruturar esses fenômenos, nada mais adequado do que aliar às políticas públicas diretamente voltadas à erradicação da violência contra as mulheres manifestações culturais e políticas que ajudem a desnaturalizá-la. O Um Bilhão que se Ergue, assim como a Marcha das Vadias - que dentre outras pautas reafirma a não aceitação da culpabilização da mulher nos casos em que são vítimas de violência sexual-, tem como objetivo usar a dança e outras expressões artísticas e corporais para convocar as nações a se erguerem e lutarem contra a opressão e violência perpetrada contras mulheres e meninas. 


Concebido pela organização V-Day, que tem à sua frente a ativista e teatróloga Eve Ensler, o Um Bilhão que se Ergue tem envolvido cerca de 13.000 atividades diferentes em cerca de 190 países. Em sua maioria, ocorreram no dia 14 de fevereiro, dia de São Valentino, padroeiro dos namorados em parte do mundo (a do vídeo aí de cima foi em Zurique, Suíça). Em Recife, devido às comemorações momescas, a organização local decidiu pelo dia 16 de fevereiro. 

E você, vai ficar aí parad@?



Um Bilhão que se Ergue - Recife
Onde: Marco Zero, Recife 

Quando: 16 de Fevereiro de 2013, às 19:00h.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Georg Simmel, Max Weber e o Trágico





Por Alyson Freire (Mestrando no Programa de Ciências Sociais – UFRN)

“Mas não é trágico que o homem seja levado pela divindade a experimentar o terrível, e sim que o terrível aconteça por meio do fazer humano” (SZONDI, 2004, p. 89).

“As épocas em que predominam crenças comparativamente estáveis não produzem tragédias de nenhuma intensidade, (...) O seu cenário histórico mais usual é o período que precede à substancial derrocada e transformação de uma importante cultura” (WILLIAMS, 2002, p. 79).


A Sociologia é um campo discursivo, formado não apenas por teorias, conceitos heurísticos e categorias científicas especializadas, mas igualmente por pressuposições gerais inarticuladas cujo caráter transcende o domínio dos valores e das regras estritamente vinculadas à prática científica. As generalizações teóricas e o conhecimento empírico sociológico existem, também, referidos a um horizonte de sentido prévio em relação aos quais os esquemas analíticos e proposições da Sociologia ganham significado, segundo determinadas concepções tácitas sobre a natureza da ação humana, da ordem social, da história, entre outras mais (ALEXANDER, 1986).

Nesse sentido, os repertórios simbólicos das Artes, das religiões e das filosofias, enfim, da cultura em geral fornecem um pano de fundo inarticulado de muitas das pressuposições fundamentais das teorias sociológicas sobre o mundo social e as condutas humanas.

Alvin Gouldner (1973), por exemplo, defende que a sociologia existe numa tensão entre uma concepção iluminista do moderno e uma concepção romântica do moderno. Num trabalho formidável e instigante sobre o florescimento dessa disciplina na Alemanha, França e Inglaterra, Wolf Lepenies (1996) não perdeu de vista esta ambivalência das origens intelectuais e culturais da sociologia, perseguindo o enredo de suas disputas e proximidades com as tradições artísticas e literárias nacionais e suas elites intelectuais.

Essas pressuposições tácitas integram o corpo de tradições de ideias e crenças que formaram e estruturam ainda hoje a imaginação conceitual da Sociologia e suas grandes linhas divisoras. São, com efeito, bem mais do que meras pré-condições históricas para o desenvolvimento desta ciência da ação e dos fenômenos sociais. Elas constituem dimensões inarticuladas do campo discursivo da Sociologia; “estruturas profundas”, como chama Alvin Gouldner (1973), as quais ainda não se tem dedicado à devida atenção no que diz respeito ao seu peso na configuração e alimentação dos esquemas cognitivos e metodológicos e das premissas normativas das diferentes formas de praticar sociologia e de pensar sociologicamente.

Essas dimensões latentes da Sociologia não se esgotam, todavia, no Classicismo racionalista e no Romantismo. Existem outras “estruturas profundas” inarticuladas, oriundas de tradições culturais e estilos de pensamento cujas fontes e repertórios de ideias e crenças não necessariamente coincidem ou derivam das destacadas por Gouldner em seu clássico artigo. Como, por exemplo, a visão trágica da existência que, do teatro grego até as filosofias neoromânticas da cultura passando pela dramaturgia renascentista e clássica, acompanha a cultura do Ocidente.

Neste artigo, proponho-me, de uma maneira despretensiosa e não-exaustiva, a apresentar e discutir em quais componentes do pensamento sociológico podemos identificar a atuação do trágico. Para isso, tomarei como exemplo alguns aportes teóricos de duas grandes figuras da Sociologia, a saber: Georg Simmel e Max Weber. Porém, ressalta-se, de saída, sem a ambição de esgotar todas as possibilidades e ocorrências em que se poderia verificar as afinidades eletivas dos conceitos e das análises desses autores com a sensibilidade trágica.

Tragédia e Trágico

Sem entrar nos detalhes das relevantes diferenças entre “tragédia” e “trágico”, entre a tragédia como gênero literário dos antigos e o trágico como filosofia dos modernos, entre arte trágica e teoria do trágico, basta-nos aqui, segundo nossos propósitos, acentuar que esses distintos elementos expressivos e argumentativos do campo do espírito encontram-se profundamente relacionados a uma tradição cultural, no caso da Grécia Antiga. E que, a despeito das especificidades e ênfases relativas, formam uma visão de mundo compartilhada, pois, seja no teatro grego, nas filosofias pré-socráticas e nas sistematizações teóricas dos românticos e nos aforismos nietzscheneanos, encontramos uma “estrutura profunda” relativamente comum, ou seja, pressuposições normativas e cosmológicas partilhadas, tais como a ideia de caos e de contingência do mundo, o agonismo da vida e a necessidade ética de enfrentamento do destino, a vulnerabilidade da liberdade e do conhecimento humano e os imperativos morais de uma ética heroica aristocrática, entre outros (LESKY, 2006).

Em linhas gerais, o trágico diz respeito a uma “concepção de mundo como sede da aniquilação absoluta de forças e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente” (LESKY, 2006, p. 38).

Como visão de mundo ou ontologia, o trágico designa um tipo peculiar de entendimento e sensibilidade acerca do lugar do homem e da ação humana face as inesgotáveis, imperscrutáveis e irremediáveis forças e poderes do universo e do destino, inclusive daquelas desencadeadas pelo finito engenho humano. Este entendimento e sensibilidade são traduzidos numa concepção da existência segundo a qual esta última é regida e selada pela experiência do paradoxo e da tensão entre intenções e forças irreconciliáveis em que a vida, o homem, a liberdade e o juízo humanos são expostos ao acaso, à contingência, ao inesperado.

É essa concepção do devir e do sentido do curso do mundo que pretendemos localizar nas interpretações da configuração da cultura moderna elaboradas por Simmel e Weber. Nosso propósito sobre o trágico consiste, com efeito, nesses conteúdos metafísicos e representações da existência, da condição humana e do curso do mundo que formam esta singular tradição cultural, e não os aspectos estéticos, históricos ou teóricos que vigoram e perpassam as formas artísticas e algumas filosofias da cultura do Ocidente.

Vejamos, então, como e onde este singular ponto de vista sobre a existência e a ação humana, o “ponto de vista trágico”, opera nos esquemas de análise das teorias sociológicas de Simmel e Weber, particularmente na interpretação dos autores acerca do desenvolvimento da cultura moderna.

Partiremos do pressuposto segundo o qual, tanto Simmel quanto Weber tomam a história e o processo de formação da cultura moderna como portadores e desencadeadores de paradoxos essenciais e distintivos. A nosso ver, o ponto de vista trágico repousa, precisamente, sobre este entendimento particular acerca da complexidade constitutiva da modernidade ocidental, isto é, sobre uma forma peculiar de abordar e compreender o desenvolvimento histórico e os processos sociais constitutivos da cultura moderna.

Simmel e o trágico como autocontradição e ambivalência

“O significado da tragédia se deixa conceber mais facilmente no paradoxo” (HOLDERLIN, 1994, p. 63).

O “ponto de vista” trágico na teoria social de Simmel manifesta-se na maneira como este autor compreende os efeitos dos fenômenos estruturantes da cultura e sociabilidade modernas. A modernidade, em Simmel, é modelada por forças sociais, formas significativas e conteúdos contraditórios e ambivalentes entre si, que foram engendradas e provenientes de um mesmo e único processo social. A análise das principais teses dos ensaios em que Simmel examina as tendências socio-históricas e os impulsos vitais da forma de vida moderna revelam, a nosso ver, que a autocontradição e o autoantagonismo - como marcas inerentes dos fenômenos e processos estruturantes da modernidade, tais como o dinheiro, a divisão do trabalho, a cisão radical entre cultura objetiva e cultura subjetiva - formam o selo batido da cultura moderna.

A tese que aqui sustentamos consiste na ideia de que a reflexão sociológica de Simmel assume uma espécie de princípio de autocontradição inerente aos processos e forças do mundo. Tal ideia não nos parece de todo arbitrária, pois, o próprio autor numa assertiva sobre a trágica contradição da condição do mundo afirmou que a existência é, “en ultima instancia una autocontradicción (...)” (SIMMEL, 1986, p. 52).

Jessé de Souza comentando a crítica do mundo moderno elaborado por Simmel, também apreende esta visão trágica da autocontradição que, nas análises do autor de A Filosofia do Dinheiro, está afivelada no seio das próprias coisas e processos do real. Em conformidade a definição de trágico que destacamos acima, diz Souza sobre o trágico em Simmel:
Ao contrário de indicar um destino triste ou desconsolador em sentido genérico, o destino trágico, na significação que nos interessa, aponta para o fato peculiar de que as forças destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas deste mesmo ser (SOUZA, 2005, p. 10).
No ensaio O dinheiro na cultura moderna (SIMMEL, 2005), o sociólogo alemão é contundente e direto com respeito à contradição da época moderna em relação e em oposição à época medieval. O advento e institucionalização da economia monetária ao destruir os constrangimentos orgânicos e comunais típicos do medievo e da propriedade feudal “possibilitou a autonomia da personalidade e deu a ela maior liberdade de movimentos interna e externa incomensurável” (id. Ibdem, p. 23). No entanto, este mesmo fenômeno produziu, em compensação, “um caráter objetivado incomensurável aos conteúdos práticos da vida” (id. Ibdem, p. 23).

O dinheiro é, de acordo com Simmel, o agente fundamental desta “grande transformação” na relação entre personalidade e comunidade, entre indivíduo e os produtos do seu trabalho, entre os indivíduos e suas as formas de associação. É sobre o dinheiro que podemos identificar em Simmel a operação de uma visão trágica como perspectiva explicativa e avaliativa. No dinheiro vige uma espécie de autocontradição fundamental, trágica, pois ele “confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa” (id. Ibdem, p. 24).

A autocontradição fundamental do dinheiro consiste em seu papel ambivalente na constituição da liberdade e objetivação modernas. A economia monetária gera, de uma só vez, constrangimentos positivos e negativos sobre a personalidade. Isto quer dizer que, na medida em que liberta esta última, expandido em suas possibilidades de desenvolvimento, vontade e associação, o dinheiro a aprisiona em relações sociais e atividades objetivadas e reificadas que dispensam a totalidade subjetiva da pessoa.

Esta mesma contradição incidente sobre a personalidade ou individualidade pode ser identificada no argumento de Simmel em sua análise dos efeitos da divisão do trabalho sobre a cultura e sobre a relação do indivíduo com os produtos de seu engenho e de sua subjetividade. Na visão de Simmel, os desdobramentos extraordinários da especialização da divisão do trabalho no âmbito da produção dos artefatos da vida em sociedade não acompanham exatamente em seu benefício os desdobramentos sobre a cultura subjetiva, quer dizer, os conteúdos significativos da existência e das capacidades dos indivíduos.

É certo que a divisão do trabalho proporcionou um desenvolvimento, um cultivo sem paralelo das coisas “que envolvem e preenchem objetivamente nossa vida (...), mas a cultura dos indivíduos, pelo menos nas classes altas, de maneira alguma progrediu, em muitos casos até regrediu” (SIMMEL, 2005ª, p. 44).

Assim como no caso do dinheiro, vigora na divisão do trabalho e no avanço da técnica uma autocontradição essencial, geradora da discrepância entre a cultura tornada objetiva e a subjetiva, isto é, entre a capacidade e os produtos da exteriorização humana e a capacidade individual e subjetiva de dotar tais produtos de sentido apropriando-se significativamente deles. Nas palavras do autor: “O acervo da cultura objetiva é aumentado diariamente e de todos os lados, enquanto o espírito individual somente pode estender as formas e conteúdos de sua constituição em uma aceleração contida, seguindo apenas de longe a cultura objetiva” (id. Ibdem, p. 45).

Não é gratuito, portanto, que Simmel intitule este descompasso entre intensificação da objetivação da cultura e a capacidade de apropriação/relacionamento significativo da subjetividade humana, de “tragédia da cultura”. Tragédia, aliás, que se acirra por realizar nos indivíduos, em suas estruturas mentais, o sentimento de que as criações e as construções humanas, que se sofisticam e se renovam cada vez mais, de que elas, em última instância, não coincidem como frutos da criatividade, cooperação e das energias humanas, mas como coisas que se autonomizaram e em face das quais aqueles não se reconhecem nem podem fazer frente em termos de qualidades e potencialidades.

Weber e o trágico como paradoxo das ações

Talvez, Max Weber seja entre os clássicos o mais trágico dos autores da Sociologia. O ponto de vista trágico percorre boa parte de sua obra e interpretação acerca do desenvolvimento histórico da modernidade ocidental. A presença da visão trágica se deixa ver, também, na atitude ética de enfrentamento exigida pelo mundo moderno, um mundo desprovido de fundamentos últimos, sublimes e transcendentes. É no confronto entre ética da responsabilidade e ética da convicção, onde cada qual “tem de decidir qual é para ele o Deus e o qual o demônio” que orienta e controla os “cordões da sua vida” que podemos compreender o quanto Weber abraça, inclusive para si, o espírito trágico (WEBER, 1984, p. 175; 183).

Os paradoxos éticos da responsabilidade e da convicção que pesam e lutam dentro do peito do homem moderno são uma perfeita tradução do trágico transposta dos palcos gregos para dentro da vida cotidiana moderna influenciada pelas diferentes e autônomas ordens da vida que orientam as condutas e posicionamentos valorativos humanos, pois; “o trágico traduz uma consciência dilacerada, o sentimento das contradições que dividem o homem contra si mesmo (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1999, p. 02).

Entre as diversas entradas para apreender o trágico na sociologia weberiana, enfatizaremos o problema da ação, mais precisamente, o tema das consequências não-intencionais da ação – um dos grandes motes de sua teoria e obra. O trágico da existência humana, em Weber, pode ser encontrado no peculiar e sofisticado tratamento que este sociólogo dispensa a ação social, entendida como dotada de sentido e subjetivamente visada (WEBER, 1993, p. 131).

Elucidar, cientificamente, o dilema da relação entre as intenções dos agentes e o sentido histórico de suas ações constitui, como sabemos, um dos propósitos mais caros da empresa teórica e metodológica de Max Weber. Para o autor da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o mundo é moldado por nossas intenções, mas não da forma como esperamos originalmente. Toda ação possui efeitos imprevistos que ultrapassam a capacidade de cálculo do sujeito e o escopo de seus propósitos.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é um exemplo contundente do tratamento deste dilema na busca de uma explicação da conexão de sentido entre as concepções religiosas do protestantismo ascético e a gênese de alguns dos elementos constitutivos decisivos do capitalismo moderno e sua cultura – o ethos da empresa racional burguesa de acumulação e de busca do lucro, a organização racional do trabalho, a profissão como dever, como dedicação de si (WEBER, 2004).

Em nenhum momento Weber sugere que a Reforma produziu o capitalismo ou o seu “espírito”, isto é, seu fundamento ético de conduta e comportamento em que se apoia sua significação cultural. Os crentes ascéticos e fiéis protestantes, e menos ainda Lutero ou Calvino, não tinham a intenção de modificar as condutas e instituições econômicas e remover os entraves - colocados pelo tradicionalismo - que pesavam sobre estas. A intenção dos reformadores e seus adeptos era clara e convictamente religiosa: buscar a salvação e o testemunho da graça divina neste mundo mas de olho no outro mundo (WEBER, 2004 p. 74; 81).

Assim, o “espírito do capitalismo” é, na verdade, o efeito não-previsto e não-proposital das ideias e dos comportamentos puritanos da ascese cristã. No entanto, o ponto de vista trágico em Weber e que anima seu clássico ensaio não se encerra no aleatório das ações, que faz das intenções e motivações dos homens um “joguete do destino”.

Quando o “espírito do capitalismo” livra-se dos apoios metafísicos do protestantismo, e passa a se sustentar e a mover-se sobre os seus próprios pés, de forma secular e mecanizada, os motivos, atitudes e concepções ético-religiosas dos ascetas reformados, convertem-se na “jaula de ferro” dos indivíduos modernos. Com amargor e ironia, afiança Weber: “Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço” (WEBER, 2004, p. 165).

Como um cosmos significativo, o capitalismo moderno transvalorou o manto ascético do protestantismo, de sorte que os fundamentos espirituais sublimes da ação e do viver, antes religiosos, morais e éticos foram suplantados por fundamentos econômicos, técnicos, mecânicos e racionais que, se, por um lado, orientam sobre como conduzir a vida, por outro, emudecem acerca do sentido último e significativo do porquê conduzir-se deste modo.

Desta maneira, a busca pela afirmação da glória de Deus, a devoção aos princípios éticos e mandamentos divinos, a confiança na providência, a satisfação orgulhosa e convicta do servir a Deus cedem o passo, no coração e nas mentes dos homens modernos, ao cálculo e utilidade das ações, a eficiência econômica, a satisfação e maximização dos interesses econômicos, a servidão e culto ao dinheiro e a ambição quase esportiva do lucro.

O trágico na análise de Weber consiste, seguramente, como nos revela as últimas páginas do seu clássico ensaio, em como, de modo imprevisto e indesejado, a ética protestante contribuiu, significativamente, para precipitar uma ética do trabalho que agrilhoou a cultura moderna nesta pesada crosta de aço; num tipo de vida em que o homem existe tão somente para seu trabalho ou negócio, para o dinheiro e o lucro, quando, na verdade, deveria ser o contrário conforme preconizava os propósitos iniciais.

A gênese do espírito do capitalismo moderno, apoiada no desenvolvimento cultural que lhe precipita historicamente, tal qual narrada por Weber bem pode ser entendida como a expressão dramática do trágico; pois o que nos ensina as tragédias senão as artimanhas, as ironias e a indiferença do destino, das forças e poderes mundanos e extramundanos em relação aos nossos propósitos e motivações?

Como as tragédias, as relações entre o homem, a ação e o mundo formam parte da questão primordial contra a qual Weber jamais deixou de se confrontar para atingir suas teses, posicionamentos éticos e generalizações teóricas. Para descrever o seu próprio pensamento, o sociólogo de Heidelberg bem poderia ter escrito as palavras abaixo, que estes estudiosos franceses dedicaram, sabiamente, às tragédias gregas:
A ação humana é, pois, uma espécie de desafio ao futuro, ao destino e a si mesma, finalmente um desafio aos deuses que ao que se espera, estarão ao seu lado. Neste jogo, do qual não é senhor, o homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas próprias decisões. Para ele, os deuses são incompreensíveis (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1999, p. 21).
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domingo, 3 de fevereiro de 2013

O Mercado do Crack e seus paradoxos (ou a desumanização a varejo) (Parte I)

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José Luiz Ratton

Professor e Pesquisador do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco

O crack é uma forma fumável da cocaína que produz efeitos intensos, curtos e quase instantâneos em quem o utiliza e que possui elevadíssima natureza aditiva. Sua venda é realizada em quantidades bastante fracionadas e possibilita lucros relativamente altos para os diferentes tipos de “traficantes”, o que funciona estruturalmente como um estímulo para o que pode ser chamado de “empreendedorismo” neste mercado. Em outras palavras, as condições logísticas para o comércio varejista desta substância não são difíceis, aumentando potencialmente a chance de mais indivíduos participarem do mercado de crack como vendedores ilegais.

A literatura internacional indica e as evidências empíricas da pesquisa brasileira sobre o tema confirmam que o crack é uma inovação tecnológica no mercado de cocaína que produziu diferentes impactos: expandiu-se, atingindo um amplo público consumidor nos estratos sociais mais baixos e interiorizou-se, tornando-se uma droga ilícita largamente comercializada não apenas nos grandes centros urbanos, mas também nas pequenas e médias cidades.

O grande número de indivíduos envolvidos na venda de crack e os elevados níveis de endividamento observados neste mercado – tanto entre usuários e traficantes, quanto entre pequenos e médios traficantes - são elementos explicativos fundamentais para a compreensão dos altos patamares de conflitualidade presentes no mercado do crack. Alguns pesquisadores que investigam o tema no país sugerem a existência de associação entre a expansão do mercado desta droga e o aumento dos crimes contra a vida, o que ainda está por ser demonstrado. Não está claro se a elevação das taxas de homicídio em vários estados brasileiros (no Sul, no Centro-Oeste, no Nordeste e no Norte) nos últimos anos, está relacionada de alguma forma com a introdução e a expansão do crack nestes estados. Na mesma linha, outra pergunta importante e que ainda não tem resposta conclusiva é se a permanência e a resiliência de altos patamares de violência nos mesmos territórios dentro de várias das grandes cidades brasileiras - inclusive naquelas que observaram redução das mortes violentas nas últimas décadas – pode ser explicada parcialmente pelas dinâmicas conflitivas do mercado do crack, que intensificaram e consolidaram processos sociais violentos ali instalados previamente.

Parece razoável afirmar que, a despeito dos exageros retóricos de parte dos meios de comunicação, o Brasil vive, desde o final da década de 1990 (em São Paulo um pouco antes) uma expansão epidêmica do crack. O aumento expressivo do número de apreensões desta droga pelas polícias brasileiras e o aumento do número de internações relacionadas ao consumo abusivo da substância são indicadores de que estamos (ou estávamos) diante de um processo epidêmico. Um aspecto importante presente em quaisquer das “epidemias de drogas”, inclusive a do crack, é que elas apresentam dinâmicas evolutivas, etapas e ciclos – que obviamente têm condicionantes políticos, econômicos, culturais e psicológicos – que devem ser compreendidos na sua singularidade, se quisermos produzir algum tipo de efeito adequado sobre elas, no plano das políticas públicas. O reconhecimento de que diferentes mercados de drogas passam por processos de desenvolvimento que envolvem a expansão aguda, estabilização e declínio pode nos ajudar a entender de forma pragmática o que de melhor pode ser feito em cada um destes estágios. Neste sentido, a literatura sobre o tema nos Estados Unidos indica que a estabilização e decadência do mercado do crack naquele país deveu-se mais a mecanismos internos de controle do próprio mercado do que a ruidosas e ineficientes políticas de guerra às drogas.

As considerações acima não devem conduzir ao imobilismo político. O que se quer ressaltar é que a compreensão das complexidades do mercado do crack é condição necessária para a construção de políticas mais efetivas neste campo. Assim, tanto estratégias coercitivas, centradas no aumento dos custos da distribuição, como preventivas, dirigidas para a minimização dos danos sociais e para a construção de mecanismos específicos e focalizados de assistência e proteção para usuários e dependentes mais vulneráveis, no plano do consumo, devem levar em consideração os diferentes estágios de estruturação do mercado do crack.


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal Estado de São Paulo no dia 27 de janeiro de 2013. Agora, gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

Carta Potiguar

Mais um link legal para a nossa lista: o Carta Potiguar, um blog que veicula notícias e artigos de opinião escritos por colaboradores de diversas áreas, sempre com um viés crítico e reflexivo.

Obrigada pela dica, Alyson Freire!

Cynthia