domingo, 26 de maio de 2013

Cadernos do Sociofilo: entre a sociologia e a filosofia I


Em seu terceiro número, o Cadernos do Sociofilo, uma publicação do Laboratório do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), apresenta uma reflexão sobre as relações entre sociologia e filosofia. Abaixo, reproduzimos a introdução deste número,  de autoria de Frédéric Vandenberghe e Marcos Lacerda. A publicação completa pode ser acessada aqui

O núcleo de pesquisa Sociofilo nasceu em 2008 como um artefato de uma exigência burocrática. O nome, porém, escolhido em analogia com os Cafés Philo que se encontram na França e alhures, foi escolhido com hesitação. Somos sociólogos por vocação. De jeito nenhum queremos estimular a arrogância dos jovens teóricos. Nada pior do que um sociólogo que se acha filósofo! Se pudermos aprender alguma coisa da grande filosofia é a necessidade de praticar a “paciência do conceito”, esta aliança exemplar de rigor, humildade e especulação. Como os filósofos somos “obcecados textuais” (para reciclar uma frase justamente aplicada a Paul Ricoeur). Precisamente porque somos sociólogos por vocação e não filósofos por profissão, defendemos o direito de tratar das questões mais filosóficas dentro da sociologia mesmo. “Entre a sociologia e a filosofia”, tal é o título deste terceiro número dos Cadernos do Sociofilo, mas o que nos interessa, na verdade, é a filosofia dentro da sociologia e a sociologia dentro da filosofia. Precisamos não somente de uma lógica, uma ontologia e uma epistemologia sociológica, mas também de uma ética, uma estética, uma teologia, uma ideologia, uma política e uma pratica própria à sociologia. Da mesma maneira, pensamos que a maior parte da filosofia moral e política contemporânea carecem de uma teoria da sociedade, da intersubjetividade e da interação. No mínimo uma vez na vida e durante um tempo de reflexão intenso,como Descartes, o sociólogo tem que enfrentar as grandes questões filosóficas, metateóricas e metametodológicas que cercam a sociologia. De onde vem esta certeza que a sociedade existe realmente como realidade sui generis e que ela não é uma ficção, uma reificação que transforma um projeto cientifico em objeto auto-consistente? Como sabemos que não estamos sozinhos no mundo (solipsismo) e que podemos ter acesso à mente do outro? Qual é a relação entre o corpo e a mente, a linguagem e o pensamento, a pessoa e a identidade? Como podemos integrar os achados das ciências sociais numa visão complexa da totalidade? Será que a sociologia com sua visão implícita de uma sociedade justa e bem ordenada não é já uma filosofia moral e política que se ignora enquanto tal? Já que não há consenso entre os filósofos, será que na sociologia podemos evitar os debates entre materia- listas e idealistas, racionalistas e empiristas, realistas e nominalistas, universalistas e relativistas, liberais e comunitaristas?

Mesmo que não seja possível responder a estas questões metassociológicas numa pesquisa de campo ou com um questionário, estamos convencidos que a sociologia só pode ganhar se ela se autoriza a pensar sem complexos e sem diletantismo. O que queremos é uma teoria social que dialoga com a filosofia (como é o caso de Anthony Giddens, Randall Collins e Margaret Archer) e de uma filosofia que dialoga com a teoria social (como é o caso de Jürgen Habermas, Alasdair Macintyre e Paul Ricoeur) para tratar das questões fundamentais da disciplina que tem a ver, como a palavra indica, com os fundamentos da sociologia, com os pressupostos que sustentam as suas indagações. Já que há uma sociologia econômica, uma sócio-antropologia, uma sócio-linguistica e mesmo um sociologia clínica, por que recusar a existência de uma sociologia filosófica que investiga reflexivamente e conceitualmente as condições de possibilidade e os limites da sociologia? Se o filósofo ruim é aquele que raciocina no vazio, o bom sociólogo é aquele que pesquisa com consciência e que sabe dos limites da sua própria disciplina. Saber dos limites significa também se dar a liberdade de transgredi-los quando for necessário. Contra os franceses e os americanos que pensam a sociologia contra a filosofia, mas com os alemães, os italianos e os brasileiros recusamos a solução de continuidade entre o conceitual e o empírico, o ideal e o material, o transcendental e o experiencial. Com alguma ironia notamos a volta do recalcado francês na teoria social anglo-saxã e ainda mais nos chamados “estudos” (cultural studies, gender studies, etc.) que se inspiram abertamente na Frenchtheory para propor uma ontologia do presente. Na esteira de Georg Simmel, defendemos uma concepção aberta da sociologia que reconhece a legitimidade de uma sociologia filosófica. De fato, a sociologia é abordada por dois âmbitos filosóficos que transbordam a pesquisa empírica: O primeiro pertence à teoria do conhecimento da disciplina e “abrange as condições, os conceitos fundamentais, os pressupostos da pesquisa concreta que não podem ser apreendidos pela pesquisa, pois constituem sua base”; o segundo pertence à metafísica da pesquisa e “é dirigida as conclusões, conexões, problemas e conceitos que não tem lugar no contexto da experiência e do saber objetivo imediato”.[i] Extrapolando a fala de Simmel, poderíamos dizer que a sociologia não só trata do socius e da sociedade, mas que ela deve também tratar do logos e da razão. É graças a esta conexão com a razão que a sociologia se mantém aberta ao que a funda e ao que a transcende. Neste sentido, a tarefa de uma sociologia filosófica consiste, como diz Habermas, em vigiar e manter em aberto, dentro da ciência, o lugar da razão que não capitula diante da fragmentação acadêmica e mantém a preocupação com a totalidade.[ii]

Será que a sociologia pode ser pensada como um campo de conhecimento distinto tanto das ciências positivas de cunho empírico-descritivo quanto da filosofia “abstrata” de cunho transcendental-normativo? Como campo de conhecimento situado entre um pensamento indutivo e experimentalista, relativo e particular, ou na verdade tratar-se-ia de uma forma de pensamento com pretensão universalista, envolta em quadros dedutivos apriorísticos? Ou uma forma “intermediária”, indecisa, entre o conhecimento regulado empiricamente e as especulações de cunho metafísico? Serão estas as principais questões tratadas neste terceiro número dos Cadernos do Sóciofilo que é também o primeiro que trata da relação entre sociologia e filosofia. Teremos um segundo número em breve. Tínhamos apre- sentado nas outras duas edições, uma abordagem sobre o legado de Bourdieu para a sociologia contemporânea e a sugestão de uma nova dimensão do pensamento sociológico, atravessando os domínios micro e macro sociológico: a dimensão nano. A indagação sobre o legado de Bourdieu para a sociologia contemporânea em “Ainda somos bourdieuseanos” e as reflexões sobre um domínio além e aquém da micro (e, por extensão, da macro) sociologia no caderno sobre a “nanossociologia” conduziam nossas reflexões para o campo do pensamento mais “abstrato” e especulativo. Mas, ao mesmo tempo, nos exigia uma teoria geral da sociedade e a imersão em questões “concretas” da teoria sociológica, e mesmo em algumas das suas discussões mais contemporâneas, nos colocando, em certa medida, problemas e questões que iam muito além da polarização ação e estrutura, ou mesmo, se quisermos, uma sociologia empírica em contraposição a uma sociologia teórica. Neste novo número trataremos do tema espinhoso da relação entre a sociologia e a filosofia e começaremos justamente com um artigo que apresenta um modelo de análise sociológica e filosófica através da tríade metateoria, teoria social e teoria sociológica, escrito pelo sociólogo belga Frédéric Vandenberghe, intitulado Metateoria, teoria social e teoria sociológica.

O texto propõe um duplo movimento: de um lado “universalizar” a perspectiva sociológica, a pensando dentro do quadro da pretensão universalista filosófica; de outro lado, “relativizar” a filosofia, inserindo as suas reflexões e conceitos na dimensão concreta e relativa em que trabalha a sociologia. Neste sentido, não estaríamos nem naquela posição confortável que situa o pensamento filosófico numa condição “insituável”, tampouco estaríamos na posição – não menos confortável - que, sorrateiramente, faz da sociologia a autoridade do saber, na medida em que reduz o conhecimento às determinações sociais, ou sociológicas. Assim, “O movimento duplo de universalização (característico da sociologia filosofante) e de relativização (próprio da filosofia “sociologizante”) corresponde aos dois momentos complementares de uma crítica da razão sociológica que pretende enriquecer a sociologia com uma consciência aguda das suas condições de possibilidade, bem como de seus limites” (Cf. p.16). Tal situação liminar à filosofia sociológica ou à sociologia filosófica permite pensar o fundamento mesmo das ciências humanas e da condição humana na modernidade, sem com isso abandonar as pretensões objetivas da ciência e sistêmicas da razão. Foi por conta disso que obras como as de Karl Mannheim, Talcott Parsons, Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas permanecem ainda hoje relevantes e fundamentais para o campo do pensamento em geral, incluindo aqui a própria filosofia.

Para que seja possível fazer tal movimentação, entre o “universalismo” filosófico e o “relativismo” sociológico é preciso se ater a três movimentos analíticos distintos, divididos da seguinte maneira: a) metateoria; b) teoria social e c) teoria sociológica. No primeiro movimento o autor destaca os pressupostos transcendentais da sociologia e os associa à filosofia, dividindo-os em ontológicas, epistemológicas, metodológicas, normativas e antropológicas. A teoria social se situa entre a metateoria e a teoria sociológica, fazendo a relação entre os pressupostos transcendentais e a análise de uma sociedade realmente existente, através da escolha definida de uma posição metateórica e da tentativa de integrar esta posição a uma teoria geral da sociedade. Isso a permite abranger um amplo leque de questões, tais como “a unidade da sociologia e sua relação com as ciências humanas; o pluralismo de paradigmas e escolas; a natureza e as formas da ação, das instituições e da estrutura social; a relação entre indivíduo e sociedade, agência e estrutura, ordem e conflito; os problemas da sociedade, da globalização e do pós-colonialismo; pós-modernismo, desconstrução, identidade etc”(Cf. 26). Ainda que os temas sejam amplos, a dimensão histórica e as variações históricas são fundamentais para a teoria social e é em relação a estes aspectos que ela se aproxima da teoria sociológica. Como já o dissemos, ela faz uma espécie de mediação entre a metateoria e a teoria sociológica, pois as grandes generalizações da teoria social “são a dobradiça que conecta as abstrações da metateoria às análises sociológicas do passado e do presente”. Por fim, a teoria sociológica tem uma dimensão mais “datada” e está diretamente associada ao advento da “sociedade moderna”, ao surgimento da “modernidade ocidental”, à lógica mesmo do que chamávamos até pouco tempo de “os tempos modernos”. A teoria sociológica deriva dos fenômenos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais da “modernidade”, especialmente as revoluções científicas, industrial e política e, inclusive, podemos pensar numa situação na qual com o “fim” da modernidade, a própria sociologia estaria condenada também. A sociologia e o próprio “humano”, ou melhor dizendo, os pressupostos quase-transcendentais que informam (ou informavam?) a antropologia filosófica.

A tríade complexa sugerida por Vandenberghe se apresenta como uma vigorosa alternativa ao já algo enfadonho debate que reduz o escopo da sociologia à dicotomia “agência” e “estrutura”, ao mesmo tempo em que consegue superar de forma elegante e clara a polarização sociologia empírica e sociologia teórica e até mesmo sociologia e filosofia. No entanto, permanecemos com a polarização “universalismo” e “relativismo”, que chamaremos aqui de aspecto transcendental e as- pectos empíricos da sociologia. É neste âmbito que se situa a reflexão de Daniel Chernilo, sociólogo chileno trabalhando na Universidade de Loughborough no Reino Unido, no segundo artigo dessa revista, “Universalismo: Reflexões sobre os fundamentos filosóficos da sociologia”. Nele, Chernilo se propõe retomar a pretensão universalista e a herança filosófica da sociologia, investigando o passado da sociologia e sua relação com as noções de “crise”, “modernidade” e os “direitos naturais” e, ao mesmo tempo, responder a alguns dos desafios normativos e conceituais da sociologia e da sociedade contemporânea, especialmente temas como o “relativismo”, o “desconstrucionismo”, o “pós-modernismo” e as teorias da “globalização”. Assim, inicialmente, o autor mostra o vínculo entre a noção de crise, o surgimento da sociologia e o problema do universalismo. A retomada da pretensão universalista da sociologia é apresentada através de sua relação com a pretensão universalista da filosofia dos direitos naturais. Esta relação se dá como afinidade eletiva e seletiva. A afinidade eletiva se explica pelo fato de ambas compartilharem a pretensão universalista. A afinidade seletiva pelo fato de que a sociologia “destrancendentaliza” e historiciza as pretensões da filosofia. É neste sentido que podemos dizer que a nascente sociologia é todavia uma forma de filosofia política que não renuncia à pretensão universalista que está o centro de sua própria tradição. Mas já não é filosofia política, pois que é também a nascente ciência empírica do social. O surgimento da sociologia se associa assim com a promessa de romper com os pressupostos metafísicos do direito natural, mantendo o ímpeto e a pretensão universalista da filosofia moral que fundamenta os direitos naturais. A questão do universalismo, portanto, é crucial para o desenvolvimento do projeto sociológico.

Do mesmo modo que em Vandenberghe, Chernilo mostra o caráter ambivalente da sociologia, entre a dimensão empírico-descritiva e a dimensão transcendental-normativa. O nosso próximo autor irá insistir no caráter ambivalente, o apresentando na sua dimensão aporética, realçando assim os seus aspectos mais contestáveis. Intitulado “Discurso sociológico da modernidade”, o artigo de Marcos Lacerda pretende mostrar a relação originária da sociologia com a constituição de “sujeições antropológicas” diretamente associadas à emersão do discurso das “ciências humanas” e do homem como sujeito-objeto do conhecimento, o duplo empírico-transcendental analisado por Foucault em As palavras e as coisas (2002 [1966]). O autor procura fazer uma analogia entre a figura do homem como duplo empírico-transcendental e o conceito de sociedade forjado pelos sociólogos, mostrando como a “sociedade dos sociólogos” é, em verdade, a versão sociológica do homem como duplo empírico-transcendental, sendo a sociedade objeto e pressuposto da análise sociológica, assim como o homem duplo empírico-transcendental, objeto e pressuposto da episteme moderna das ciências humanas. O artigo está dividido em quatro partes: a) A sociologia como discurso, onde se discute o caminho metodológico, se propondo a pensar a sociologia não como ciência, filosofia moral ou campo de conhecimento, mas como “discurso”; b) O homem como duplo empírico-transcendental, no qual se apresenta a constituição dessa “imagem de pensamento”, através, sobretudo, das reflexões de Foucault em “As palavras e as coisas” c) Como é possível a sociedade?, parte do artigo em que o autor discute as diferentes formas como a sociologia forjou o conceito de sociedade, em suas dimensões ontológica, histórica, epistemológica, normativa, lógica e antropológica; e, por fim, d) O social como duplo empírico-transcendental, parte na qual o autor sintetiza o argumento da analogia entre a figura do homem como duplo empírico-transcendental e a definição sociológica de sociedade.

O último artigo destes Cadernos é o de Gabriel Peters, in- titulado “A via mundana para o sublime: preliminares a uma sociologia psicológica do talento e da genialidade”. Nele, Peters apresenta uma instigante análise sobre a questão do “gênio” em suas mais diferentes facetas (artes, esportes, ciências, práticas cotidianas etc.), admitindo de antemão a relativa equivalência de fatores biológicos, psíquicos e sócio-lógicos na sua constituição. Afinal de contas, haveria um fator causal que definiria o gênio como gênio? Seriam os fatores sociais, a coerção estrutural da sociedade, ou a dimensão simbólico-cultural? Conjunto de técnicas aprendidas, capacidade cognitiva inata, transcendência sobre-humana, aquisição de competências contingentes, relação ambiente (físico, social, cultural, político, econômico etc.) e ação/reação de genes etc.? Como se pode ver, há muitas possibilidades e o conjunto de reflexão sobre o tema em algum momento se ancorou em uma delas, ou mesmo construiu combinações e arranjos os mais variados entre elas. Em certa medida, o artigo de Peters se apresenta dessa maneira. Desfilando elegantemente entre uma miríade de autores, tais como Platão, Valéry, Ericson, Musil, Homero, Lahire, Bourdieu e muitos outros mais, o autor sugere como forma de pensar o problema a constituição de uma “sociologia psicológica” ancorada numa perspectiva “nanossociológica”, propondo uma alternativa en- tre abordagens hiper-coletivistas e hiper-individualistas, sem recorrer com isso a argumentos hiperconstrutivistas. Como o leitor poderá perceber, o tema do gênio nos coloca diante de uma escolha fundamental: estamos falando de uma condição “natural” ou “cultural”? “Genética” ou “social”? Peters procura superar o impasse, afirmando que “A aquisição de capacidades supõe capacidades (inatas) de aquisição, embora qualquer fronteira precisa entre inato e adquirido seja explodida diante do fato de que as influências ambientais sobre o modo de expressão do material genético operam desde cedo, antes mesmo do nascimento, assim como diante do caráter cumulativo e estratificado das habilidades aprendidas via socialização, construídas, por assim dizer, uma sobre as outras”(Cf. p.218). É neste sentido que o autor pode afirmar a relevância das abordagens biológicas do comportamento humano, pois “nossos organismos operam como base (ou causa formal, no sentido aristotélico) de quaisquer processos subjetivos e práticos que descrevamos em linguagem psicológica e sociológica” (idem), o que o permite, não só abandonar um “determinismo” biológico ou genético (algo já há tempos abandonado por biológicos e geneticistas), mas se distanciar do hiperconstrutivismossociocêntricos que, por vezes, se disfarçam com uma roupagem relativista, tentando esconder o sociologismo ou culturalismo que o fundamenta.

Poderíamos dizer que tanto Frédéric Vandenberghe quanto Daniel Chernilo apresentam alternativas vigorosas para algumas das questões contemporâneas com que se defronta a sociologia, buscando superar o relativismo desconfiado e niilista do“pós-modernismo”, forjando um novo caminho para o pen- samento sociológico. A sociologia, assim, seria algo como um revigoramento crítico do universalismo filosófico e não a sua negação relativista, culturalista ou historicista. Nos dois casos, nos parece, o movimento de retorno às pretensões universalistas da sociologia conduz não só a uma retomada e explicitação dos pressupostos transcendentais que informam o ofício do sociólogo, mostrando assim a sua relação de dependência com a tradição de pensamento filosófico, como também nos apresenta a sua relativa independência, na medida em que a sociologia teria trazido para o pensamento filosófico aspectos da realidade social, histórica, cultural e política capazes de fortalecer, conferindo mais densidade e complexidade ao universalismo filosófico. Já Lacerda e Peters parecem desconfiar desse universalismo sociológico. O primeiro claramente associa a noção de social a uma concepção de “homem” que só é “universal” enquanto acontecimento discursivo ou dispositivo estratégico hegemônico e o segundo apresentauma necessidade de se rever a perspectiva “sócio-cêntrica”, admitindo sem culpa a importância de fatores biológicos e até mesmo da gramática gerativa de Chomski na “formação do gênio”. Poderíamos, por fim, como tentativa de sintetizar – de um modo bem parcial e assumidamente incompleto, diga-se de passagem – as principais ideias dos artigos, dizer que os dois primeiros se apresentam como soluções vigorosas da crise de legitimidade da sociologia como campo de conhecimento, renovando a sua dimensão universalista, enquanto que os dois últimos artigos já não falam mais em termo de crise do paradigma sociológico e de uma possível superação, mas de mutação deste paradigma, sendo que Peters sugere tal mutação na forma do texto, na estrutura narrativa, no formato ensaístico do artigo (além das referências bibliográficas heterodoxas e da coragem e ousadia de certas afirmações), e Lacerda a apresenta como argumento central do seu artigo, associando a sociologia às “sujeições antropológicas” dos discursos filosóficos da modernidade, deixando implícita a necessidade de uma “libertação” dessas sujeições, quem sabe através de um discurso sociológico pós-humano e, consequentemente, pós-social e pós-sociedade.

Mas, se de fato podemos mostrar algumas das diferenças entre os artigos, não podemos deixar de dizer que há um consenso que os une, a saber, a convicção de que pensar a “origem” e o “sentido” da sociologia nos leva inevitavelmente a uma forma de pensamento altamente reflexivo e desde já distante do que costuma se entender por “ciência” e até mesmo por “sociologia”, o que nos permite desvencilhar de uma perspectiva mais fechada característica da “ciência que não pensa”, para lembrar a bela expressão de Heidegger. Em certa medida – e guardada as devidas proporções – é este o objetivo da terceira edição dos Cadernos do Sociofilo, dedicado a pensar as relações de diferença e complementaridade entre a sociologia e a filosofia.


[i] Simmel, G. (2006): Questões fundamentais da sociologia, p. 36 (Rio de Janeiro: Zahar).
[ii] Habermas, J. (1983):"A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete", in Consciência Moral e Agir Comunicativo, pp. 17-35 (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro).

terça-feira, 14 de maio de 2013

Sujeitos extáticos em Gadamer e Glenn Gould... (Parte 5 - final)



Por Cynthia Hamlin

Como já deve ter ficado claro, o que Gadamer tenta estabelecer com suas reflexões sobre estética é que a ciência não é a única forma de acesso à verdade. A experiência da obra de arte (assim como da história e da linguagem) ilustra uma forma distinta, e mais fundamental, de conhecimento do mundo e de nós mesmos. Como Kant, Gadamer considera que o conhecimento gerado pela obra de arte requer um tipo de julgamento reflexivo, mas um que não pode ser identificado nem com o conhecimento do mundo fenomênico, nem com a atividade da razão prática pura. Diferentemente de Kant, o conhecimento gerado pela experiência da arte não é algo meramente subjetivo ou privado – embora, como eu tenha argumentado, seja no próprio Kant que ele afirma encontrar os elementos que o possibilitam superar a ideia de “consciência estética” que está na base de seu subjetivismo. Num nível mais geral, Gadamer tenta demonstrar que a tradição crítica de Kant representa um legado segundo o qual as ciências sociais teriam duas alternativas: ou elas buscariam um conhecimento objetivo, e neste caso o modelo a ser seguido seria o das ciências naturais, ou abdicariam de qualquer pretensão ao conhecimento objetivo, resignando-se àquilo que sobra: o meramente subjetivo, os sentimentos privados (Bernstein, 1983: 125).

Entre o objetivismo das ciências naturais e o subjetivismo da estética kantiana e do romantismo que sustentam conceitos como o de Erlebnis ou de empatia defendidos por Dilthey, Gadamer não opta por nenhum dos dois. Ao recusar (parcialmente?) o esquema sujeito-objeto, Gadamer procura demonstrar que a forma como experienciamos e compreendemos o mundo pressupõe uma relação de envolvimento, ilustrada pela noção de jogo, que apenas derivadamente pode assumir a forma de algo objetivo sobre o qual refletimos e conhecemos por meio de conceitos.

Parte do problema, como mencionado anteriormente, é que conceber a compreensão como um evento no qual somos simplesmente “lançados”, para usar um conceito heideggeriano, pode implicar uma passividade maior do que Gadamer está disposto a atribuir ao intérprete. Colocando a questão em outros termos, a interpretação de Gadamer da relação heideggeriana entre “ser-no-mundo” (ou estar sempre sujeito a um mundo-da-vida particular) e “ter-um-mundo” (ou ser um sujeito potencialmente crítico e reflexivo acerca desse mundo) ocasionalmente coloca um peso maior no segundo elemento do que no primeiro. Talvez por essa razão - em que pese sua autodefinição intelectual em termos de uma crítica heideggeriana do idealismo alemão e de suas tradições românticas (Gadamer, 2007) - ao ler Verdade e Método, Heidegger tenha exclamado: “Isso não é mais Heidegger!” (apud Kusch, 1989: 229).

Se Gadamer atribui a Hegel ter antecipado essa “dialética” que é central ao seu pensamento e ao de Heidegger (Pippin, 2002), a forma como ele se apropria daquele autor sugere mais uma modificação de uma metafísica do sujeito do que propriamente sua eliminação. Talvez seja mais apropriado dizer que se trata de um deslocamento do sujeito, no sentido de uma superação da primazia da auto-consciência ou reflexividade, mas não de sua morte, no sentido de uma negação da possibilidade de um agente que pode se autodeterminar, ainda que dentro de certos limites: “a estrutura da reflexividade é fundamentalmente dada em toda consciência” (2006: 337), mas a consciência deve ser concebida de tal forma que a realidade “limite e exceda a onipotência da reflexão” (Ibid.: 338). Em outros termos, o que Gadamer quer enfatizar é o caráter histórica e linguisticamente limitado da consciência, o que ele faz ao integrar a noção de reflexividade com a de especulação em seu conceito de consciência historicamente afetada. A dificuldade de aceitação deste conceito por parte de Heidegger é evidente, e Gadamer reconhece isso em seu artigo Hegel e Heidegger (1976): A “virada” implicou não apenas o abandono de uma concepção transcendental do self e do Dasein como um ser para quem sua própria existência é um problema para si (na verdade, da própria hermenêutica da facticidade), mas também de termos como “história” e “historicidade” em favor de termos como “destino” (Geschick) e nosso “estarmos destinados” (Geschicklichkeit). Na visão de Gadamer (Ibid. 109), é como se Heidegger quisesse
minimizar o fato de que não se trata de possibilidades de existência humana que nós agarrássemos – de que não se trata de consciência histórica e de autoconsciência. Ao contrário, trata-se daquilo que é atribuído ao homem e por meio do qual ele é tão determinado que toda autodeterminação e autoconsciência permanece subordinada.
A ideia de especulação que Gadamer utiliza deriva da crítica de Hegel a Kant e não deve ser considerada em toda sua extensão. De fato, ele deixa claro que o grande mérito de Hegel foi ter superado o artificialismo da linguagem metafísica de sua época ao substituí-la pelos conceitos do pensamento cotidiano, “recuperando o espírito especulativo de sua língua nativa no movimento especulativo de sua filosofia, restaurando, assim, uma forma de filosofar que é a herança natural dos primeiros pensadores gregos”(Ibid: 31). O que ele toma de Hegel é, portanto, um dos temas centrais de seu próprio pensamento e que o liga fundamentalmente a Heidegger: o de que a interpretação dos textos filosóficos (de fato, qualquer interpretação) repousa na linguagem natural, que é a base dos conceitos e do próprio pensamento. Esse tema, que Charles Taylor (1975; 1989) identifica na base do “expressivismo” da tradição romântica e do próprio Hegel, seria o primeiro passo na superação da centralidade conferida ao sujeito desde Descartes, ainda que ela pressuponha um aprofundamento da ideia de interioridade do self.

A filosofia especulativa de Hegel pode ser entendida como uma alternativa à filosofia crítica kantiana, que teria reduzido a razão (Vernunft) ao entendimento (Verstand) quando, por meio de suas categorias do entendimento e do conceito de reflexividade, estabelece o ego transcendental como fonte e condição do conhecimento. Dado que, para Kant, as categorias do entendimento só poderiam ser legitimamente aplicadas aos objetos passíveis de experiência empírica (o mundo dos fenômenos), ele terminou estabelecendo uma distinção entre este e o mundo das coisas-em-si. As coisas-em-si só seriam acessíveis por meio da razão pura (a especulação), que sempre envolve contradições. Neste sentido, a especulação assume para Kant um sentido profundamente negativo, que só será superado quando autores como Fichte, Schelling, Scheleiermacher e o próprio Hegel reconhecem “a capacidade de a razão em transcender os limites de um tipo de pensamento que não consegue se elevar para além do limite do entendimento” (Gadamer, 1976: 5). Não foi, portanto, por acaso, que a estética assumiu uma dimensão tão importante para esses autores, deslocando a centralidade da epistemologia e, em particular, dos argumentos transcendentais (Taylor, 1995), isto é, daqueles argumentos que estabelecem as condições necessárias para o conhecimento dos fenômenos como forma de acesso à verdade.

Para Hegel, a única forma de restituir à razão seu lugar seria o desenvolvimento de um sistema filosófico especulativo que, largamente inspirado pela filosofia dos gregos antigos, não sacrificasse aquela em favor da reflexão (raisonnement) e dos argumentos transcendentais. De acordo com Donald Verene (2007: 10), a distinção que Hegel efetua entre reflexão e especulação pode ser compreendida a partir das raízes latinas dessas duas palavras:
Reflexio (reflectere) significa “dobrar-se para trás”, “reverter-se ou virar-se”. Specio (specere) é “olhar dentro”, “espiar”. Na forma geral da proposição típica do pensamento reflexivo, o sujeito se move em direção ao predicado, que simplesmente reverte para o sujeito. Nenhuma mudança dialética ocorre. Na proposição especulativa, no movimento do sujeito em direção ao predicado, algo foi “visto” acerca da natureza do sujeito de tal forma que, quando esse retorna, mantendo o predicado in relação a si mesmo, não permanece mais o mesmo sujeito.
É esse tipo de especulação que está envolvido na citação que Gould faz da noção de êxtase de Stockhausen: “... escuta-se o self interior do som, o self interior do espectro harmônico, o self interior”. E é de self mesmo que se trata, já que, para Hegel, qualquer entidade que tenha uma identidade que persiste e que é criada por sua própria atividade é vida, espírito, ou sujeito (Siegel, 2005). A afinidade de Hegel com os filósofos antigos pode ser identificada na não separação entre as noções de vida e espírito que, segundo Gadamer (1996), significavam exatamente a mesma coisa em grego, sendo um de seus mais importantes atributos a ideia de automovimento ou autodeterminação. Neste sentido, o sujeito hegeliano não é simplesmente um “Eu” ou um ego (como, por exemplo, o sujeito cartesiano), mas a totalidade das relações que o constituem e que são mediadas por órgãos e processos, físicos e intelectuais, que fazem desse sujeito o que ele é (Siegel, 2005). O que confere unidade ao sujeito é a ideia de espírito absoluto, que pressupõe um isomorfismo entre o self e o mundo (e entre história e natureza), mas que não está dada desde sempre. O espírito absoluto seria uma espécie de potência, um universal que não diria respeito a uma condição originária do ser, mas uma totalidade resultante de um processo constante de desenvolvimento caracterizado por sua própria atividade: um movimento constante de mediação entre a consciência e seu objeto que ocorre por meio de movimentos sucessivos de auto-alienação e superação dialética dessa alienação. O fim deste processo estaria completo quando o espírito se torna objeto para si mesmo e se reconhece como este objeto, isto é, quando, ao superar a distinção entre sujeito e objeto, o sujeito se torna um sujeito “para si”.

De um ponto de vista da filosofia especulativa ou da razão dialética, a reflexão que caracteriza o entendimento não consegue lidar com dois elementos fundamentais: o princípio de inversão (da consciência) e a negatividade. No entendimento, há uma rígida separação entre sujeito e objeto, de forma que o primeiro percebe o segundo como parte de uma realidade que lhe é totalmente estranha ou alheia. Na razão dialética, a consciência entra no momento especulativo quando aquele que conhece começa a se reconhecer no objeto, gerando a consciência de que aquilo que o sujeito conhece acerca de si próprio não pode ser divorciado daquilo que ele conhece do objeto:
A reflexão, quando dirigida de volta para aquele que conhece, torna-se autorreflexão, e quando a autorreflexão é estendida de volta para a relação do self com o objeto, a especulação emerge como consciência. Em um sentido mais amplo, a especulação sempre esteve lá, sendo pressuposta pela reflexão. Uma vez que a consciência, em seu movimento em direção ao conhecimento, tenha o domínio do momento especulativo, ela pode experienciar todo conhecimento como uma forma de autoconhecimento (Verene, 2007: 11).
De acordo com Gadamer, isso seria particularmente bem ilustrado na dialética do senhor e do escravo e, em Verdade e Método, ele reafirma a intuição hegeliana de que “a vida da mente consiste precisamente em se reconhecer em outro ser” (Gadamer, 2006: 341). Mas ele não concorda que a dialética do reconhecimento possibilitaria uma autoconsciência absoluta (o que o afasta de uma filosofia da identidade em favor da ideia de que o “sujeito” é sempre um vir-a-ser). De fato, a ideia de uma totalidade como um sistema fechado, que possibilitaria uma concepção de sujeito completamente autotransparente, é um dos principais pontos de discordância de Gadamer em relação a Hegel e, neste sentido, a ideia de que consciência é fundamentalmente autoconsciência é interpretada por ele como um equívoco da tradição cartesiana da qual Hegel faria parte.

A consciência historicamente afetada, longe de centrar-se na ideia de autoconsciência, centra-se na ideia de experiência (Erfarhung) da alteridade: “a atividade histórica da mente não é nem autorreflexão, nem meramente a sublação dialética da autoalienação que ela sofre, mas uma experiência que experiencia a realidade e que é, ela própria real” (ibid.). E, assim, Gadamer reafirma a dialética do ser-no-mundo e do ter-um-mundo, evidenciando, ao mesmo tempo, que a afirmação de Heidegger segundo a qual Hegel seria “excessivamente grego” (Gadamer, 1976: 112), não era de todo correta:
Os gregos não estavam corretos quando viam que a autoconsciência era secundária em relação àquele fenômeno de se ter submetido e estar aberto ao mundo – o fenômeno que nós chamamos de consciência, conhecimento, abertura à experiência? [...] Naquele magnífico auto-esquecimento com o qual pensa sua própria faculdade de pensar, sua própria experiência do mundo [...] o pensamento grego traz em si a principal contribuição na delimitação das ilusões do autoconhecimento (Gadamer, 2002: 124).
 Se Hegel estava essencialmente correto em negar que o pensamento humano não se constitui a partir de uma mente originária, infinita e reflexiva, mas só consegue apreender a realidade a partir do desenvolvimento de seus pensamentos com base na experiência da alteridade, é na dialética de Platão que o pensamento especulativo melhor se revela como uma forma de autoconhecimento, embora como algo que nunca tem um fim. Assim como na dialética hegeliana, a dialética platônica repousa no fato de que não existem ideias isoladas e o propósito da dialética seria apontar para a sua unidade daquilo que aparece como simplesmente oposto ou contraditório: identidade pressupõe diferença (Gadamer, 1976: 80). Entretanto, longe de se constituir em um sistema formal ou um método, a dialética platônica baseia-se mais diretamente na ideia de linguagem, onde o próprio pensamento seria um diálogo da alma consigo mesma:
 Platão, acredito, estava essencialmente certo em chamar a essência do pensamento de um diálogo interior da alma consigo mesma. Esse diálogo, em dúvida e objeção, é um constante ir além de si mesmo e retornar a si mesmo, às próprias opiniões e pontos de vista. Se existe algo que caracteriza o pensamento humano é esse diálogo infinito com nós mesmos que nunca leva a algum lugar definitivamente e que nos diferencia daquele ideal de um espírito infinito para o qual tudo o que existe e toda a verdade se encontra aberta na visão de um único instante. É nessa experiência da linguagem – em nosso desenvolvimento no meio dessa conversação interior com nós mesmos, que é sempre simultaneamente a antecipação de uma conversação com outros e a introdução de outros nessa conversação – que o mundo começa a se abrir e a adquirir ordem em todos os domínios da experiência (Gadamer, 2006: 547).
 Assim, a diferença, que gera estranhamento, só pode ser reintegrada na consciência por meio de um diálogo onde exista uma verdadeira abertura para o outro, para o diferente. Neste sentido, a tradição, que se revela nos produtos humanos como as obras de arte, é essencialmente linguagem: ela nos diz algo, nos fala, como um Tu. Cabe a nós identificarmos a questão que a obra nos coloca, assim como a resposta que ela dá às nossas próprias questões. Essa dialética da pergunta e da resposta precede a dialética da interpretação e revela justamente o que nos define como seres humanos: nossa “posicionalidade excêntrica”, um termo que Gadamer (1996) toma de empréstimo da antropologia filosófica de Helmuth Plessner e à qual Heidegger se opunha frontalmente como complemento à sua ontologia (cf. Plessner, 2010):
O ser-humano, nós diríamos, é a única criatura para a quem sua posição, enquanto corpo, é simultaneamente dada de forma objetiva e circunstanciada. Ele se sente como uma coisa e dentro de uma coisa – uma coisa que, no entanto, se distingue de todas as outras, porque é ele mesmo essa coisa, porque ela obedece às suas intenções ou, pelo menos, porque ele as interroga. Nós somos levados por essa coisa, rodeados por ela, conduzidos à eficiência com ela e por ela, mas ela constitui, simultaneamente, uma resistência que nós nunca superamos totalmente. (Plessner, 1995:41)
 O que Gadamer parece querer recuperar ao se referir ao conceito de excentricidade de Plessner é um tipo de ser que, embora não se caracterize pela autotransparência, é capaz de se conhecer e de agir no mundo. E isso se deve justamente ao fato de que não somos seres “centrados”, mas capazes de trânsito e de relação, de passarmos do “interno” ao “externo” e vice-versa, ainda que dentro dos limites estabelecidos pela nossa tradição. Mas essa excentricidade só se revela em toda a sua extensão à medida em que nos entregamos inteiramente ao outro, numa espécie de autoesquecimento extático. O êxtase seria, assim, não apenas a nossa melhor porta de entrada para o círculo hermenêutico, mas uma forma de nos sentirmos em casa no mundo. Neste sentido, o “sujeito extático” seria tanto a condição quanto o resultado da verdadeira compreensão.

  
Referências

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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Sujeitos Extáticos em Gadamer e Glenn Gould... (Parte 4)




Por Cynthia Hamlin

O afastamento de Gould das salas de concerto - um universo que ele considerava competitivo e alienante - tem um quê de paradoxal se considerarmos que grande parte de sua critica ao concerto romântico se referia a um processo de diferenciação e atomização que, em última análise, estava associado à ideia de isolamento. É a partir desse paradoxo que pretendo dar conta do conceito de “consciência historicamente afetada” e apontar em que sentido a experiência (Erfarhung) da obra de arte é também uma forma de autoconhecimento. Lembremos que o que está em questão aqui é a possibilidade de se conceber o autoconhecimento ou a autointerpretação (que é o que nos caracteriza como seres humanos) em termos distintos daqueles fundamentados na separação sujeito/objeto.

Se é verdade que Gould atribuía uma importância central à ideia de solitude - e seu documentário A Ideia do Norte, onde o Norte representa justamente um lugar de isolamento necessário à criação, é evidência disso - não é certo que, para ele, a substituição das salas de concerto pelas gravações em estúdio apontasse para um maior isolamento, seja do intérprete, seja do público: ao contrário, a tecnologia possibilitaria “corrigir” algumas das distorções geradas pelo concerto moderno ao fundir novamente compositor, intérprete e audiência, numa espécie de experiência musical pré-renascentista.

Seu ponto de partida é que o concerto não é o eixo a partir do qual o mundo da música gira; afinal de contas, de um ponto de vista histórico, esta é uma experiência bastante recente que, para ele, estaria com os dias contados. Gould prevê que, com o desenvolvimento das tecnologias de gravação e de reprodução, “o hábito de dar e de frequentar concertos, tanto como uma instituição social quanto como o principal símbolo do mercantilismo musical, estará tão dormente no século XXI quanto, com alguma sorte, o Vulcão [do arquipélago] de Tristan da Cunha; e, por causa de sua extinção, a música será capaz de promover uma experiência mais convincente do que tem sido possível no momento.” (Gould, 1984: 332).

Algumas das concepções de Gould sobre o aspecto benevolente da tecnologia são bastante ingênuas - particularmente ao supor que a alienação promovida pelo mercado da produção de concertos seria superada no mercado fonográfico. Mas suas reflexões sobre o tipo de práxis envolvida em formas alternativas de representação (no sentido gadameriano do termo) colocam algumas questões interessantes para se pensar sobre o tipo de unidade envolvido na interpretação e corroboram, em larga medida, as reflexões de Gadamer sobre o jogo e sobre o caráter prático e aplicado da interpretação hermenêutica.

O entusiasmo de Gould pela a tecnologia deriva de uma experiência com um aspirador de pó que, segundo ele, mudou sua relação com a música. De acordo com um de seus relatos sobre o episódio, aos 13 ou 14 anos de idade, ele estava estudando a Fuga em Dó maior, K 394, de Mozart, quando a faxineira ligou o aspirador de pó junto ao piano. Na época, os dois estavam tendo uma briga, de forma que Gould preferiu não lhe atribuir esta pequena vitória e continuou tocando. Em suas palavras:
O resultado foi que, nas passagens mais altas, essa música luminosamente diatônica onde Mozart deliberadamente imita a técnica de Sebastian Bach foi envolvida por um halo de vibrato, num efeito semelhante a quando cantamos na banheira com os dois ouvidos cheios d’água e depois balançamos a cabeça vigorosamente. E nas passagens mais baixas eu não conseguia ouvir som algum. Eu podia sentir, claro – eu podia sentir a relação táctil com o teclado, que é repleta de seus próprios tipos de associações acústicas, e eu podia imaginar o que estava fazendo, mas não podia realmente ouvir. Mas o mais esquisito é que, de repente, tudo aquilo soava melhor do que tinha soado sem o aspirador de pó ... [O] que eu aprendi por meio desse encontro acidental entre Mozart e o aspirador de pó é que o ouvido interno da imaginação é um estimulante muito mais poderoso do que qualquer quantidade de observação externa. (Gould, 1984: 6-7).
A experiência a que Gould se refere sugere que o que o aspirador de pó promoveu foi a supressão (parcial) da atenção a um sentido, a audição, em favor de uma dimensão táctil ou de uma héxis corporal. Neste caso específico, é preciso considerar que existem diferenças marcantes entre a música de Bach e a de Mozart. Bach é particularmente conhecido por suas habilidades contrapontísticas. Contraponto é a técnica musical de superpor duas ou mais melodias. O que ocorre é que geralmente uma das melodias assume o caráter de principal e a outra o de acompanhamento, o que provoca um desequilíbrio no papel de cada uma das vozes. A solução para superar esse desequilíbrio é fazer com que o tema ou melodia principal passe de uma voz para a outra, alternadamente, de modo que ambas as vozes adquiram igual importância. Essa é a técnica fugal. O nome fuga vem justamente da ideia de que o tema está fugindo de uma voz e passando para a outra. A música de Mozart, ao contrário da de Bach, se estrutura em acordes, reforçando a distinção entre o tema e o acompanhamento. Daí a dificuldade de adaptação de Mozart à fuga e a avaliação que Gould faz da Fuga em Dó Maior: “trata-se de um maravilhoso estudo acadêmico sobre como escrever uma fuga que obedece a todas as regras mas que nunca decola inteiramente” (Gould apud Payzant, 1992: 35). Sendo assim, faz sentido que, ao minimizar a influência do elemento melódico, Gould - que se destacou justamente pela “clareza” que imprimia às diversas vozes que dialogam em uma fuga – tenha conseguido um “envolvimento” com a obra que possibilitou a revelação da estrutura da fuga: “Ela decolou"(Ibid.).

[Abaixo, uma animação de "Então Você Quer Escrever uma Fuga?", de autoria de Gould. A gravação apareceu pela primeira vez em um disco, acompanhado por um artigo, como brinde na edição de abril de 1964 da HiFi/Stereo Review. A interpretação foi do Juilliard String Quartet e quatro vocalistas, sob a regência de Vladimir Glschomann].


Embora Gould tenha razão em sugerir que a “observação externa” pode impedir o envolvimento com a obra - e consequentemente sua representação - o que parece estar em jogo é aqui não é um suposto “ouvido interno da imaginação”, mas aquilo que Michael Polanyi chama de “conhecimento pessoal” e que se caracteriza como uma habilidade prática. Esse conhecimento pessoal, assim como a fronese aristotélica, pressupõe a aplicação de certas premissas que, nos termos de Polanyi (2005: 185), nós “ignoramos focalmente” (i.e., não constituem o foco de nossa atenção), mas que conhecemos subsidiaria ou tacitamente como parte de nosso domínio de uma determinada habilidade prática. [Incidentemente, em suas Reflexões Autobiográficas, Gadamer (2007: 34) se refere à sua concepção de experiência como equivalente ao conhecimento pessoal de Polanyi].

Seja como for, o fato é que a tecnologia é acidental a esse processo. Em princípio, qualquer elemento que tivesse possibilitado uma ruptura no foco de atenção, tornando-a mais difusa, poderia ter gerado isso. Mas há outras razões para se considerar suas reflexões sobre a relação entre música e tecnologia. Talvez a mais importante diga respeito à era das gravações como possibilitando um tipo de experiência musical distinto e, segundo Gould, mais integrador. Em O Futuro da Gravação, originalmente publicado na revista High Fidelity, em 1966, Gould defende que a indústria fonográfica (o que ele se refere como “gravação”) já havia começado a alterar de maneira significativa nossa experiência da música, revelando o que Gadamer (2006) se refere como “consciência historicamente afetada”, isto é, não só o fato de que nossa consciência é um efeito da história, mas também que o presente necessariamente influencia nossa interpretação do passado:
Em primeiro lugar, os ouvintes de hoje passaram a associar a performance musical com sons que possuem características que há duas gerações não eram nem disponíveis à profissão, nem desejados pelo público – características como clareza analítica, imediaticidade e uma quase que proximidade tátil. Nas últimas décadas, a performance musical também deixou de ser uma ocasião, algo que demandava uma desculpa e um traje a rigor e que promovia ... uma devoção quase religiosa: a música se tornou uma influência difusa em nossas vidas e, à medida que nossa dependência dela aumentou, nossa reverência declinou em certo sentido. Há apenas duas gerações, as pessoas que frequentavam concertos preferiam que a sua experiência ocasional da música fosse imbuída de um esplendor acústico, de uma reverberação cavernosa, se possível... Os termos mais íntimos de nossa experiência com as gravações têm, desde então, sugerido uma acústica com uma presença imparcial e direta, uma presença com a qual podemos conviver em nossas casas e em termos bastante casuais. (Gould, 1984: 333).
Esse novo tipo de experiência que, a partir da tecnologia, teria gerado um novo tipo de consciência musical, possibilitaria ainda a emergência do que ele chamava de “Novo Ouvinte”. O Novo Ouvinte de Gould se caracterizaria por uma participação efetiva na apresentação da obra por meio de decisões que eram de sua responsabilidade. Existe aqui um paralelo interessante com a crítica de Gadamer à modernidade que, com seu preconceito contra o preconceito (i.e., sua redução da razão à técnica), teria eximido os cidadãos comuns de tomarem decisões e de se responsabilizarem por elas. Vejamos em mais detalhes o argumento de Gould.

Em seu Vamos Banir o Aplauso, Gould (1984) argumentava que, nos concertos, a participação da audiência, ou melhor, sua manifestação sob a forma de aplausos, distrai o intérprete, promove sua vaidade e tendências exibicionistas, além de conferir a ela uma falsa impressão de participação. Com o desenvolvimento do sistema de alta fidelidade, por outro lado, o ouvinte participaria na apresentação da obra quando ajusta os graves, os agudos, o equilíbrio e o tempo da execução. Gould chegou mesmo a propor a venda do que chamou de “kit-conceito do papel do ouvinte”: um conjunto de gravações de interpretações distintas de uma mesma obra que, a partir de um sistema de edição caseiro, poderiam ser mixadas de uma forma inteiramente nova, de acordo com suas preferências.

Claro que esse Novo Ouvinte de Gould nunca emergiu, pelo menos não de maneira generalizada. E parte da razão parece ser dada pelo próprio Gould quando afirmou, em uma entrevista a um produtor da Columbia Records, em 1968, que “o ouvinte não sabe o que quer” (Gould apud Payzant, 1992: 45), no sentido de que ele não tem nenhuma expectativa particular em relação à forma como uma determinada obra pode ou deve ser executada (em termos gadamerianos, faltar-lhe-ia uma antecipação da estrutura que caracteriza o círculo hermenêutico). No que poderia ter sido uma passagem sobre os sistemas peritos em As Consequências da Modernidade de Anthony Giddens, Gould compara o ouvinte médio ao condutor de automóveis médio, que sabe que está dirigindo um carro que o levará ao seu destino, mas que depende de seu mecânico para que o carro funcione adequadamente. E isso é justamente o ponto:
O ouvinte comum, não importa o quão complicado, poderoso e caro seja seu equipamento de som, não se tornou, por conta disso, parte do continuum [compositor, performer, ouvinte]. O ouvinte informado pode ser comparado a um técnico treinado e experiente que faz test-drives de carros. Ele tem consciência, num grau de detalhamento considerável, das opções abertas em diversos estágios da composição e da performance, assim de como a estrutura de um dado fragmento se relaciona à estrutura de outros. O ouvinte comum não sabe sequer que uma peça de música é construída, quanto mais como ela é construída. Não é que simplesmente lhe falte a habilidade para jogar o mesmo jogo dos compositores e dos performers; sua limitação é que ele não tem ideia das regras do jogo ou dos critérios de habilidade envolvidos. Ele é um espectador que sabe quando os times estão jogando ou não, se o jogo é lento ou rápido, excitante ou maçante, intricado ou simples... Ele não conhece muito mais do que isso. (Payzant, 1992: 31).
A caracterização que Gould faz do Novo Ouvinte parece decorrer de uma certa confusão entre interpretação e controle técnico, uma confusão que, para Gadamer, é típica da consciência moderna. Se, por um lado, ele pode ter razão ao enfatizar que um aparelho como um microfone, por exemplo, pode ajudar o ouvinte a se envolver com a obra à medida em que ele consegue identificar sua estrutura ou extrair da obra um determinado elemento histórica e culturalmente valorizado, por outro, o aumento de reflexividade que ele atribui ao Novo Ouvinte por causa das demandas que a tecnologia lhe coloca não parece se sustentar. O que Gould ignora ao prever sua emergência é que, quanto mais a esfera do conhecimento aplicado se torna racionalizada, “mais falha se torna a combinação entre julgamento e experiência prática” (Gadamer, 1996: 17).

Em que pesem as críticas de Gadamer à redução do conhecimento à tecnologia, o problema não seria o uso da tecnologia em si, afinal de contas, seu conceito de não-diferenciação estética refere-se justamente a uma não distinção entre a forma como uma obra é a presentada e sua identidade (Gadamer, 2006). O problema seria pressupor, como Gould parece fazer, que o uso da tecnologia seria a panaceia para todos os males da modernidade. O problema é justamente o oposto: ao subsumir a razão prática à razão instrumental que caracteriza a técnica, o que se tem é uma redução na participação à medida que a compreensão se torna crescentemente reduzida e fragmentada.

Apesar disso, é preciso não perder de vista que a preocupação de Gould dizia respeito ao fato de que o cenário musical contemporâneo vinha se transformando em um esporte de combate (confesso, foi licença poética: a expressão que ele usa é “musique sportive et combative” - mas não dava para perder a piada). E isso vinha se manifestando de diversas formas: na estrutura do concerto moderno, na proliferação de concursos nacionais e internacionais entre jovens talentos, assim como na ênfase que os conservatórios de música da América do Norte vinham dando à competição pública entre os alunos. A gravação seria assim uma espécie de “ação à distância” onde a competitividade e a mediocridade gerada pelo consenso pela uniformidade dos repertórios e dos estilos interpretativos dariam lugar à criatividade à originalidade, ainda que incluíssem a competência que era “medida” naquelas competições:
Seria tolo argumentar contra um grau de competência sem o qual nossa vida musical seria mais pobre. Enquanto é inteiramente apropriado falar de eletricistas e encanadores competentes, mas perigoso ... esperar que eles sejam extáticos, a noção de êxtase como a única busca legítima do artista já pressupõe a competência... O risco da ideia de competitividade é que, com sua ênfase no consenso, ela extrai aquele núcleo mediano, indisputável, prontamente certificável de competência, deixando seus ávidos e imprudentes postulantes debilitados para sempre, vítimas de uma lobotomia espiritual (Gould, 1984: 254-55).
Mas se a gravação, e o uso da tecnologia em geral, não é necessariamente a solução mais adequada para restituir ao universo musical condições mais propícias ao êxtase, as reflexões de Gould sobre essa questão ilustram dois pontos importantes. A primeira é que ela aponta para a compreensão a partir de uma fusão de presente e passado que abre novas possibilidades para o futuro: se, por um lado, Gould buscava uma espécie de retorno a uma situação pré-renascentista na qual a diferenciação e a especialização excessivas não impedissem o envolvimento com a obra, o uso da tecnologia e a ênfase nos elementos contemporaneamente valorizados pelas gerações mais novas de ouvintes (seus horizontes) geraria algo inteiramente original, ainda que no interior de uma mesma tradição. O que Gould propõe, portanto, é nada mais do que uma fusão de horizontes sem a qual a compreensão da obra não é possível. Neste sentido, compreender é, como o é para Gadamer, sempre compreender diferentemente.

Em segundo lugar, se compreender significa operar no interior de uma tradição, a diferença deve ser identificada no próprio seio da tradição. Não temos como nos colocar “fora” ou “acima” dela. O que Gould chama de competência diz respeito ao conhecimento (prático e teórico) estabelecido por uma tradição e, sem ela, não é possível imprimir credibilidade ao trabalho do artista ou mesmo reconhecê-lo como tal. Por outro lado, esse conhecimento sempre corre o risco de se tornar inflexível (um risco que Gould atribuía especial, ainda que não exclusivamente, àqueles que atuavam fora da atividade de ensino), impedindo assim o questionamento constante da tradição que caracterizaria ao trabalho artístico. A dificuldade, portanto é “manter em equilíbrio as questões práticas do pensamento sistematizado [os conceitos musicais] e as oportunidades especulativas do instinto criativo” que “ampliam nossa visão de mundo” (Gould, 1984: 6). Essa dificuldade só pode ser superada ao se incorporar a importância da negatividade na prática musical.

A negatividade assume uma dimensão central no pensamento de Gould, que a define como nossa “capacidade de nos descrevermos em termos daquelas coisas que são antitéticas à nossa experiência” (Ibid.: 3) (ou seja, em termos de experiência como Erfarhung). Isso porque a experiência da negatividade é algo que nos coloca em risco ao revelar o que Gould se refere como a fragilidade e o caráter tentativo de nossos sistemas de pensamento, demandando autoexame e mudança. Embora ele frequentemente caracterize esse autoexame e mudança em termos de uma autocontemplação introspectiva e solitária - o que é antitético à ideia de compreensão como um efeito da história - outras vezes ele é caracterizado em termos de uma concepção quase hegeliana de especulação, como na citação que Gould toma de empréstimo ao compositor alemão Karlheinz Stockhausen em seu programa de TV A Era do Êxtase:


"O tempo é suspenso, escuta-se o self interior [inner self] do som, o self interior do espectro harmônico, o self interior. As flutuações mais sutis, pequenas ondulações. Todos os sentidos alertas e calmos. Na beleza dos sentidos brilha a beleza do eterno”.

É esse encontro com a alteridade que caracteriza o pensamento especulativo que, tanto para Gould quanto para Gadamer, é condição do autoconhecimento. Retomarei a ideia de pensamento especulativo no próximo (e último!) post a fim estabelecer as relações entre êxtase, negatividade e autocompreensão no pensamento de Gadamer.