Jonatas Ferreira e Breno Fontes
No dia 20 de junho, estávamos
lá, no centro do Rio de Janeiro, Esplanada dos Ministérios, na
Conde da Boa Vista, Avenida Paulista, e num grande número de
artérias vitais dos grandes centros urbanos do Brasil, confrontando
o que surgia nas ruas com o que noticiavam as grandes emissoras de
TV. Para quem não estava de alguma forma conectado ou conectada às
mídias sociais que povoam a Internet, as manifestações pareceram
como um raio em céu azul. Em alguma medida, todos compartilhamos
certa perplexidade, todavia. Os governos federal, estadual e
municipal, 60% dos domicílios que não têm acesso à Internet, ou
os 45% dos indivíduos que nunca acessaram a Internet em suas vidas
(ver
http://www.cetic.br/usuarios/tic/2012/),
e mesmo aqueles que foram às ruas, sensíveis portanto a esse tipo
de mídia, não tinham uma ideia muito exata do impacto que a
mobilização até então predominantemente virtual poderia ter na
vida social e política dessas grandes cidades e do país. Atônitos
também estavam e estão as grandes emissoras de TV brasileiras: um
famoso âncora de telejornalismo chegou a condenar o que se
convencionou chamar de 'vandalismo', mais especificamente, a
depredação e queima de um carro da TV Record: era preciso que os
manifestantes soubessem que as emissoras de TV têm um papel
fundamental na divulgação desses protestos. É verdade. De um modo
bastante contundente, era isso mesmo que estava em questão, ou seja,
uma forma alternativa de encontrar informação, de tornar visíveis
pautas políticas, de mobilizar. Nesse contexto, o que se
convencionou chamar 'vandalismo', por mais que o temamos, ainda
merece uma explicação. O que significa? Como se tornou possível?
Na Conde da Boa Vista, por outro lado, o ambiente era de uma alegria
cívica e tranquilidade comoventes. Os cartazes produzidos pelos
manifestantes, em sua pluralidade, no seu caráter francamente
artesanal, deram o tom desse clima que um militante carrancudo
avaliou alguns dias depois como sendo carnavalesco – muito embora
tenhamos que concluir que, força libidinal, energia de vida que
busca confrontar formas sociais caducas, o depoimento coletivo que
vimos deve ser relacionado intimamente a esse tipo de alegria. Nosso
amigo, Alex de Jesus, que também estava na manifestação ocorrida no Recife, cede-nos um vídeo
que fez. Registrou a própria participação na passeata, como vimos muita gente fazer – gente que quer se escutada e vista e que parece ter
encontrado uma forma de conseguir as duas coisas. No vídeo, podemos
ler alguns desses cartazes que transcrevemos: “Verás que um
filho teu não foge à luta”, “Desculpe o transtorno, estamos
mudando o Brasil!”, “Foda-se a Copa!”, “Saúde, Educação e
Respeito”, “Winter is coming”, “Japão, trocamos nossa
seleção por sua educação”, “Amor não tem cura”, “Não à
PEC-37”, “Saúde padrão FIFA”, “Vem, vamos embora que
esperar não é saber”, “E hoje mainha me bota pra dormir de
couro quente”, “Dilma, me chama de copa e investe em mim”, “Tem
tanta coisa errada no Brasil, que não cabe em um cartaz”,
“Armaria! PEC 37, nann”, “Impunidade? Diga não”, “Dez
centavos não compra nem um “Dudu””, “Ei, Dudu, pega os dez
centavos e enfia lá no SUS”, “#vemprarua”, “São demônios
os que destroem o poder bravio da humanidade”, “Um passo à
frente e você já não está no mesmo lugar”, “A gente quer ter
voz ativa, no nosso destino mandar”, “Governador, quer ser
presidente? Cuida primeiro da gente”, “Quantas escolas cabem em
um estádio?”, “De burro, eu só tenho a chibata”, “Abaixo o
ato médico”, “Brasil, 500 anos de desigualdade!”, “Homofobia
tem cura”, “O gigante acordou”, “Renan Calheiros, não
esquecemos de você”.
O que aconteceu, bem sabemos, é um fenômeno relativamente novo, inédito no Brasil. Novo, primeiro, com respeito à sua forma de
mobilização: o ativismo das ruas sendo convocado pelas mídias
sociais (Facebook, Twitter, entre outras). Esse tipo de evento
político, todavia, e os fatos que dele decorrem, vêm se repetindo
no mundo - a exemplo das manifestações da primavera árabe, nos
países do Noroeste da África; dos protestos em Portugal (“movimento
geração à rasca”); na Espanha (“indignados”); nos Estados
Unidos (“ocupe a Wall Street”). Em todos esses contextos é
possível perceber a perplexidade dos analistas. A dita sociedade da
informação estaria produzindo um tipo novo de ativismo, buscando
estabelecer uma relação politicamente virtuosa entre virtual e
atual? O que esperar dessas grandes mobilizações populares? É
possível que este fenômeno se transforme em uma agenda política
que possamos traduzir em categorias a partir das quais
tradicionamente pensamos o político? Pensar em uma ágora
eletrônica implica em ressignificar o conteúdo das nossas
instituições, em especial aquelas que operam o modelo de democracia
reperesentativa? Como transformar a articulação de demandas tão
plurais em uma agenda política também articulada e factivel?
De fato, as novas tecnologias de informação e comunicação
constituem-se tecnicamente a partir de uma potência de
horizontalidade na interação entre os indivíduos até então
desconhecida. A Internet está para as organizações sociais em
rede, assim como a televisão e o rádio corresponderam tecnicamente
ao modelo político do fordismo, no qual predominava recepção em
massa e emissão centralizada. Se, no contexto das novas tecnologias
de informação e comunicação, afirmamos que a relação entre
emissão e recepção é bem mais simétrica do que o foram as mídias
típicas do fordismo, de modo algum afirmamos que essa simetria seja
perfeita, e que portanto a topografia que caracteriza o ciberespaço
seja pefeitamente plana. A arquitetura da rede, contrariamente ao que
inicialmente se pensava, não se estrutura a partir da possibilidade
de acesso aleatório aos nós. Todos não são iguais, o ditado “os
ricos ficam sempre mais ricos” reflete o fato de que, neste
labirinto de conexões, é possível encontrar Hubs, atores
centrais, que controlam e organizam o fluxo de informações. Não de
uma forma tão centralizada quanto as antigas mídias, mas de forma
alguma reproduzindo a utopia de perfeita simetria ou horizontalidade
entre os participantes. Fato também que merece destaque é o
fenômeno da exclusão digital – ou do autoritarismo digital, como
preferem Ferreira, Pinto e Motta (ver, por exemplo, “Resistindo ao
Niilismo pelas Novas Tecnologias: experiências de mídias livres”.
In Marcos Costa Lima; Thales Novaes de Andrade. (Org.) Desafios da
Inclusão Digital: teoria, educação e políticas públicas. São
Paulo: Hucitec Editora, 2012). A internet também não espalha seus
benefícios entre todos. Idade, classe social, gênero, etnia,
divisões importantes nas sociedades contemporâneas, reproduzem-se
no mundo virtual. Isso significa que também temos que ser cautelosos
em relação à potência reformadora de uma ágora virtual:
democracia não é uma mera conquista técnica, mas um chamado
político.
Porém, o mais importante neste labirinto virtual são os que
chamamos de mídias sociais, espaços cibernéticos onde é possível
a interação social direta. Nos diversos fóruns onde a
interação é praticada (Facebook, Twitter, blogs, entre outros) são
reproduzidos igualmente laços, fortes e fracos, permitindo, com uma
potência nunca vista, espelhar, mas também por em xeque, as
sociabilidades cotidianas. Esta capacidade de a rede ampliar
processos comunicativos implica consequências até hoje não
totalmente compreendidas. Como sempre, qualquer tipo de inovação
técnica e politica, sejamos claros, não ocorre num vazio político
e a síntese que podemos obter entre forças de conservação e
forças de transformação é sempre imprevisível.
Do ponto de vista ainda técnico, parece-nos equivocado pensar as
dinâmicas sociais associadas às novas tecnologias de informação e
comunicação como ocorrendo de forma completamente
desterritorializadas – Nicholas Negroponte ajudou a disseminar este
mito em seu hoje quase esquecido Being Digital. As mídias
sociais ancoradas na Internet, embora apresentem também elementos
desterritorializadores, alimentam-se de redes territorializadas.
Isso significa que atender ou propor uma convocação é algo que
ocorre normalmente em grupos que se apoiam em comunicações face a
face. A teoria das redes aqui nos auxilia a entender que a
mobilização das manifestações que começaram em junho de 2013 não
ocorrem num vazio territorial, nem ocorrem a partir da articulação
de indivíduos atomizados e conectados em igualdade política pela
rede. Sem por em questão a especificidade dos eventos nos quais
estamos envolvidos, este é um fato relativamente conhecido,
registrado em outras ocasiões pelos teóricos das redes. A march
of Dimes, uma grande mobilização popular que aconteceu nos
Estados Unidos na década de 1950, é um exemplo conveniente. O
objetivo era arrecadar dinheiro para financiar a pesquisa de uma
vacina contra a poliomielite. E o momento de ápice aconteceu quando
uma multidão de pessoas, vindas de todas as partes da América do
Norte, se reuniu em Washington. Parte importante da campanha foi
veiculada por rádio, respeitável veículo na época. Mas as
pessoas se organizavam a partir de suas redes ancoradas
territorialmente: amigos do bairro, membros de congregação
religiosa, entre outros ingredientes de sua trama reticular. Era,
então, possível, vislumbrar naquela multidão de pessoas, pequenos
aglomerados de conhecidos, compartilhando aquele momento de suas
biografias. Da mesma forma, os que foram à Avenida Paulista,
Avenida Getúlio Vargas ou Avenida Conde da Boa Vista, em sua maior
parte, não estavam sozinhos, mas sim em grupos, que fazem parte da
trama reticular cotidiana.
Mesmo para quem participou de mobilizações como as “Diretas Já”,
“Fora Collor”, entre tantas outras, impressiona a esmagadora
maioria de pessoas com menos de 20 anos de idade que tem levado
adiante essas marchas de agenda tão ampla. É de se supor que essa
maioria seja também preponderante nas mídias sociais com base na
Internet a partir das quais foram articuladas essa infinidade de
manifestações enfeixadas nos espaços metropolitanos de todo o
país. Nas ruas impressiona, portanto, a pluralidade de bandeiras que
se articulavam num sentimento amplo de insatisfação. Basta que nos
déssemos ao trabalho de arrolar, numa pesquisa mais exaustiva, as
bandeiras levantadas nas ruas nos últimos trinta dias. Falou-se
muito acerca de uma forma descentrada de agir politicamente. E as
perguntas a que essa constatação deram ensejo não tardaram: como
responder a essas inquietações, supondo que haja vontade ou
competência institucional estabelecida para fazê-lo? A quem
responder? Com quem negociar e exatamente o quê? Por mais que se
negue esse fato, aprendemos a pensar política ainda a partir de um
modelo em que a questão da soberania é central. “Soberano é
aquele que decide entre quem é amigo e quem é inimigo”, ou seja,
aquele, ou aquela instituição, ou conjunto de interesses, capaz ou
capazes de estabelecer um espaço de pertencimento, de identidade, e
contrapô-lo aos interesses daqueles que são considerados outros.
Ora, esse tipo de pensar político é fundamentalmente conservador,
todos sabemos. Parece inevitável traçar entre esse tipo de
formulação política e a estruturação de agendas prioritárias no âmbito dos partidos políticos, ou seja, no contexto em que se decide entre questões ditas fundamentais e questões ditas
secundárias, um elo claro. Em sua versão mais crua, cínica, esse tipo de
compreensão converte-se facilmente em uma pragmática de como se
manter no poder. E esse 'pragmatismo' se torna um elemento político
ainda mais preocupante quando constatamos o afastamento hitórico de
nossas instituições politicas do cidadão comum. Sintomático desse
afastamento talvez seja o tom desesperado mediante o qual um Senador
da República, Cristovam Buarque, cuja seriedade não temos razão para
contestar, defendeu a dissolução dos partidos políticos e da
convocação de uma Assembleia Constituinte para decidir que tipo de
modelo político substituiria o tipo de representação que temos
diante de nós. A perplexidade não pode ir muito mais longe. Mas
devemos lembrar, com preocupação e a propósito, o fato de a
hostilização aos partidos ter encontrado espaço nas ruas.
Se é possível entender que a forma como as instituições políticas
tem se organizado guarda uma íntima relação com as questões
relativas à identidade, ao estabelecimento de agendas prioritárias,
de táticas e estratégias que levariam à sua efetivação, e os
partidos políticos como materialização disso tudo, o que as ruas trouxeram
não pode trazer outra sensação senão o estupor. Como agendas
tão distintas podem se tornar objeto de negociação política? Ora,
essa pluralidade sempre foi imaginada como fragmentação, como
impotência política estimulada por aqueles que desejam governar - e aí
vale o clássico ditado latino, divide
et impera. No
entanto, é inegável que a articulação de uma agenda tão diversa configurou um acontecimento político de vulto e com
algumas vitórias expressivas: a PEC 37, afinal, foi engavetada; o
deputado João Campos, a pedido de seu partido, retirou o
projeto que autorizava tratamentos psicológicos da homossexualidade
– que tornou tristemente célebre o pastor e deputado Marcos
Feliciano; fala-se na divisão dos royalties do petróleo entre as
áreas de educação e saúde; fala-se, por vezes com incorrigível
oportunismo, acerca do que todos sabiam há muito, a necessidade de
reforma no modelo político.
Se a articulação de agendas tão distintas, quanto aquelas que se
enfeixaram nas manifestações a que assistimos, podem se converter
num evento político de consequências imediatas tão evidentes, é
necessário que compreendamos um pouco da lógica das redes sociais,
e sua dinâmica comunicativa potencializada pelas mídias veiculadas
na internet. É necessário que compreendamos outras experiência
semelhantes de mobilização política e do que podemos aprender com
elas – com sua dinâmica que combina elementos
desterritorializadores e territorializadores, uma forma nova de
articular laços fracos e fortes etc. Há algum tempo, Ernesto Laclau
e Chantal Mouffe vêm insistindo no que chamam de “democracia
radical”, ou seja, a compreensão do conflito como elemento
fundamental nos processos democráticos, o entendimento de que o
exercício da política pressupõe sempre encarar a questão da
hegemonia, de como ela é obtida e como pode ser questionada.
Reapropriação da teoria da soberania tal qual ela aparece na obra
de Gramsci, esse último pressuposto significa que grupos de
interesses diversos podem se reunir em torno de agendas que os
beneficiem e representem na busca por influência e pressão política
em áreas específicas. De acordo com tal reflexão, há, na luta por
hegemonia, um grande espaço para táticas mais contingentes.
Trata-se de uma concepção não essencialista do político em que a
práxis concebida neste nível desempenha um papel
fundamental. É possível, segundo pensamos, tirar aqui algumas
lições que lacem alguma luz sobre o que ocorre hoje no Brasil,
exemplo de articulação de interesses políticos tão diversos
quantos oposição ao ato médico, condenação da homofobia, defesa
da probidade na administração pública, melhoria da mobilidade
urbana etc. O que impressiona exatamente tem sido o fato de as mídias
sociais terem conseguido promover uma articulação de agendas que só
podem estar num mesmo campo de luta se tivermos em mente ideias
suficientemente amplas para expressar a insatisfação diante de algo
que chamaríamos de arrogância e de viés autoritário que ainda
definem o exercício da política em nosso país. Em que medida essas
agendas continuarão a se articular no médio e longo prazos no
contexto de uma luta contra-hegemônica é algo que não podemos
avaliar ainda. Mas chama a atenção o fato de vários segmentos da
população brasileira terem encontrado um espaço para exercer seu
descontentamento, para condenar a distância histórica que separa a política profissional
no Brasil de um sentido público, para questionar a dificuldade que os governantes tem tido em dar respostas ao clamor por uma vida mais justa. Essa dificuldade é técnica, política, cívica e
moral.
Talvez não seja demais ilustrar com um exemplo o que afirmamos. Ora, diante de todo o clamor que se produziu nas ruas em defesa da probidade
administrativa, o que dizer da insensibilidade do presidente da
Câmara e do Senado nacionais de, em meio às mobilizações de junho,
utilizarem aviões da FAB para atender a seus interesses
particulares? O mea culpa do primeiro, Henrique Eduardo Alves, é risível. Retorna aos
cofres públicos menos de R$ 10 mil dos R$ 150 mil que teria de
pagar, caso fretasse um avião comercial para passar um final de
semana com sua família no Rio de Janeiro e assistir ao final da Copa
das Confederações. Quanto ao Presidente do Senado, responde-nos que
não há ilegalidade no seu ato e que, por isso, nada restituiria.
Pode até não ser ilegal, não conhecemos as tecnicalidades
jurídicas envolvidas aqui, mas cassar parlamentar depois do AI-5 também não o era.
Ambos os atos, porém, são rigorosamente ilegítimos e a
sem-cerimônia com a qual Renan Calheiros lança mão do dinheiro do
povo brasileiro é uma bofetada nos milhões que saíram às ruas por
uma vida mais digna, por um tratamento mais respeitoso por parte daqueles que,
hoje, ainda, decidem os destinos do país.
Em tempo: Renan Calheiros, segundo as últimas informações, voltou
atrás em sua decisão. Vai pagar R$ 32 mil à Viúva. Caso vocês não saibam de quem se trata, Renan Calheiros é aquele que propôs tornar corrupção crime hediondo.
Em tempo dois: e tem também o Garibaldi Alves, rapaz...
[Nosso muito obrigado a Alex de Jesus, pela gentileza de nos conceder acesso ao registro que fez das manifestações; a Estefânia Gomes, Antônio Neto e a Artur Perrusi, amigos queridos, pelos comentários e por nos incentivarem a postar o texto - que consideramos apenas um esboço para discussão mais ampla].