domingo, 1 de dezembro de 2013

Vinte Teses sobre a Sociologia



Por Alain Caillé. Extraído, com permissão do autor, de La Sociologie Malgré Tout (no prelo). (Tradução de Diogo Corrêa, revisão de Rodrigo Vieira de Assis e Cynthia Hamlin).


1. A sociologia é mais fragmentada do que todas as outras disciplinas, sobretudo que a economia. Daí sua impotência para opor-se ao devir oni-econômico (oni-mercadológico) do mundo.

2. Ela só recuperará sua potência de pensamento e de influência se conseguir se repensar como momento generalista das ciências sociais e da filosofia política.

3. Para isso, faz-se necessário reintegrar em seu seio todas as correntes de pensamento vivas que, em parte, desenvolveram-se a partir dela, mas também fora dela, embora levantando questões eminentemente sociológicas: os estudos culturais, subalternos, pós-coloniais, de gênero, teorias do cuidado, do reconhecimento, etc.

4. Tal reintegração pressupõe, em particular, que a sociologia esclareça sua relação com o marxismo, dado que todas essas teorias podem ser consideradas reformulações de um questionamento de tipo marxista.

5. Pressupõe também que a sociologia esclareça o próprio conceito de sociedade, tornado problemático pela globalização.

6. A virada global das ciências sociais é, sem dúvida, tão importante para as ciências sociais quanto a passagem da mecânica clássica (o equivalente do nacionalismo metodológico) para relatividade restrita e depois generalizada.

7. Apesar de todas as objeções possíveis, e fortes, uma sociologia geral (uma ciência social geral) é não apenas possível, mas necessária, dado que ela não mais se apresentará como querendo ter resposta para tudo (o vício dos sistemas sociológicos), mas questões organizadas para tudo.

8. O principal problema teórico a ser enfrentado pela sociologia é o de sua relação com o utilitarismo, matriz da ciência econômica e do economicismo.

9. A sociologia se desenvolveu historicamente como uma tentativa de superar o utilitarismo e a ciência econômica. Essa superação nem sempre foi verdadeiramente efetuada.

10. A superação do utilitarismo e do economicismo passa pela superação de Marx (cf. tese 4), o que passa, em primeiro lugar, por Mauss e Weber. O primeiro possibilita pensar a dádiva e o político (identificados um com o outro), o segundo, a historicidade destes.

11. As ciências sociais se organizam a partir e em torno de quatro imperativos: descrever, explicar, interpretar, avaliar.

12. Contrariamente ao que nos quer fazer crer a vulgata metodológica ou epistemológica dominante que se vangloria da "neutralidade axiológica", em ciências sociais é o momento normativo (avaliativo) que desempenha o papel cognitivo dominante, dado que estruturante.

13. Simetricamente à démarche ideal-típica de Weber, construída principalmente a partir da racionalidade instrumental (a Zweckrationalität), é preciso desenvolver na sociologia uma démarche idealista-típica, construída a partir da racionalidade axiológica (Wertrationalität), que se pergunte por que, como e em que medida grupos, sujeitos ou atores sociais não aplicam, e não se conformam a, seus próprios valores.

14. Dado que a sociologia não pode existir plenamente senão como superação (Aufhebung) da matriz utilitarista das ciências sociais e do economicismo, sua especificidade é ser necessariamente anti-utilitarista. Não a-utilitarista, o que implicaria a negação das considerações de utilidade e de interesse material e individual, mas anti-utilitarista, o que significa que a dimensão de utilidade e de interesse material e individual, bastante real, deve ser ultrapassada. Praticamente, cognitivamente e normativamente.

15. O núcleo da abordagem anti-utilitarista é o paradigma da dádiva (derivado do Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss), que se pode também qualificar de paradigma da dádiva do político, do simbólico ou do reconhecimento.

16. Sua tese central é que a relação social não se constrói sobre a vantagem mútua e sobre o contrato, mas a partir de uma aposta de confiança, a aposta da dádiva, fundada sobre uma lógica de incondicionalidade condicional.

17. Corolário: os atores sociais visam menos possuir (riqueza, poder ou prestígio) que serem reconhecidos. E serem reconhecidos como doadores, tendo efetuado, ou sendo suscetíveis de efetuar, dádivas de valor, ou/e participando da doação (Ergebnis) da graça, do carisma. Riqueza, poder ou prestígio só valem na medida em que simbolizam esse reconhecimento.

18. A sociologia só pesou historicamente enquanto permitiu pensar a limitação ou a civilização do capitalismo e enquanto inspirou o político e a política. Hoje, o desafio é imaginar um para além do liberalismo, do socialismo, do comunismo e do anarquismo que considere que não mais podemos contar com um forte crescimento infinito para a superação dos conflitos sociais e de sua escala, agora planetária. Chamemos de convivialismo esse para além que se procura.

19. Em contraposição aos que veem a resolução do conflito social no Mercado (principalmente liberais) e aos que a procuram no Estado (principalmente socialistas), o convivialismo concentra-se principalmente na sociedade civil e em sua capacidade tanto de globalização quanto de localização.

20. É preciso abandonar o capitalismo? Tudo é aqui uma questão de definição. Se se entende por capitalismo os excessos, a hubris do Mercado, então a resposta é sim. Mas não abandonaremos o capitalismo se não nos livrarmos também (Aufhebung, também aqui) do marxismo.


4 comentários:

Tâmara disse...

Oi, Cynthia.
Gostei muito de ler um texto de Caillé por aqui revisado por você.
Eu sou simpatizante du M.A.U.S.S. e acho que lhe disse que fiquei encantada com as conferências de Caillé no ALAS que ocorreu em 2012 na UFPE.
Mas alguns pontos dessas teses sobre a sociologia deixaram-me intrigadas. Primeiro, a ausência de Durkheim numa argumentação que defende "o momento normativo" como cognitivamente estruturante da sociologia e que, além disso, coloca a relação da sociologia com o utilitarismo, "matriz da ciência econômica", como problema a ser enfrentado. Ora, Durkheim não só tinha predileção pela normatividade (às vezes, à exaustão), como elegeu a ciência econômica, o utilitarismo em particular, como problema social e sociológico. Será que essa ausência seria porque Caillé avalia que já estamos livres de Durkheim (de seu objetivismo)? Mas eu penso que Durkheim defendeu, sim, em seu tempo e com suas escolhas, traços presentes nessas teses sobre a sociologia e que o Ensaio Sobre a Dádiva é também herdeiro das investidas durkheimianas contra o utilitarismo econômico (Paulo Henrique Martins, em artigo de 2005 publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais também lembra disso). Por outro lado, defender a tese de que precisamos nos livrar do marxismo utilizando um modo de escritura marxiano parece-me tão curioso... (Quem, pelo menos da nossa geração, não pensa imediatamente nas teses de Marx contra Feuerbach, deparando-se com essas de Caillé?)
A outra coisa que me chamou a atenção não me intrigou, mas lembrou-me ainda o mesmo artigo de Paulo Henrique Martins. Seguinte: a tese 17 (o Corolário) parece negligenciar um tipo ou forma de dom (tenho uma tradução duvidosa) que Marcel Mauss, pelo contrário, dá bastante atenção em suas análises de registros etnográficos e em sua argumentação: o dom agonístico. Paulo Henrique Martins fala em divergências entre os maussianos quanto à apropriação do trabalho de Marcel Mauss, sendo que Allain Caillé seria um dos que, enfatizando a “dádiva-partilha”, dificultaria a consideração sociológica e histórica de tipos de dádiva não-democráticos. Fico pensando que ter usado um modo marxiano de expressão (teses e manifestos costumam ser redutores de argumentos; não é à toa que Marx e Engels resistiram algum tempo contra a redação do Manifesto), aumenta a tendência de Caillé a negligenciar a dádiva agonística. E isso pode resultar no entendimento incorreto de que os maussianos pensam a sociedade civil de maneira muito ingênua...Acho, mas posso estar dizendo besteira. Abraço.

Cynthia disse...

Oi, Tâmara,

Essas teses são, na verdade, uma espécie de índice ou sumário do seu livro. Como tal, são necessariamente simplificadoras. Como ainda não li o livro, não sei se ele "ignora" Durkheim: certamente não o faz em outras obras.

Em relação à crítica ao marxismo, parece-me que é uma crítica que parte dele (pelo menos no que diz respeito à sua dimensão crítica), de forma que não vejo contradição entre usar uma linguagem marxiana para superá-lo. Não é isso o que todos os "pós" fazem, afinal de contas?

Tese 17 (mais uma vez, inferindo a partir de meus parcos conhecimentos de Caillé e de outros): falar em reconhecimento não significa necessariamente falar em agonismo? A cremos em Hegel, a luta pelo reconhecimento é, antes de mais nada, uma luta, não?

Saudade de tu!

Bjs

Tâmara disse...

Saudades de você também, Cynthia. Na verdade, desde que o skype parou de funcionar em meu computador, deixei de vê-la conectada e aí...Nesses dias ligo meu netbook e vejo se você está conectada.
Pois é, Cynthia, meus conhecimentos são parquíssimos, mas sou muito pitaqueira e aí fico intrigada com a articulação entre a teoria da dádiva e a do reconhecimento. Preciso ler mais.
Quanto ao uso da linguagem marxiana para superá-la, não é que eu veja contradição; talvez o meu problema seja que, ao contrário dos pós, eu acredite mais em diálogo do que em superação. Foi por isso que reclamei da ausência de Durkheim. E, como o M.A.U.S.S. centra-se na crítica do utilitarismo, acho que declarar que precisamos nos "livrar" do marxismo é esquecer que Marx foi um analista respeitável da economia capitalista.
Mas fico por aqui porque a competência e o tempo são pequenos demais para explorar as dimensões "não utilitaristas" da concepção marxiana do homem. Apenas um lembrete: Marx também era hegeliano... Beijão.

Cynthia disse...

E, para completar, tenho estado cada vez menos no skype. Vou te procurar da próxima vez que entrar.

Mas acho que o "livrar-se" é no sentido hegeliano de "superação" (Aufhebung) mesmo.

Beijo!