sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Ontologia, Epistemologia e Avareza



Jonatas Ferreira

Duas alunas me pararam no corredor esta semana. Estavam com um ar tão aflito que, antes de mais nada, resolvi me acautelar: “Não empresto dinheiro, não dou conselhos sentimentais, não vendo à prestação. Fora isso, diga lá”. Passado o impacto do primeiro contato, elas resolveram colocar a questão: “É que a gente queria saber como diferenciar ontologia de epistemologia”. Se é esse o problema, vamos lá. Dei a seguinte explicação, que acredito possa ser útil pra você também, oh leitor(a).

Em linhas gerais, podemos dizer que tanto a epistemologia quanto à ontologia são dois caminhos definidos pela filosofia para pensar a verdade: sua possibilidade, melhores caminhos, sua relação com o ser humano. Talvez uma pequena digressão etimológica tenha seu valor aqui. Ambas as palavras derivam do grego: epistemologia é uma composição tardia (século XIX) das palavras episteme (επιστήμη), que diz respeito a um conhecimento sistemático - oposto à mera opinião, ou doxa (δόξα) - e logos (λόγος), ou seja, conhecimento, discurso. Ontologia, por seu turno, resulta de ontos (ὄντος), que significa ser, mais a palavra logos.

Essas duas palavras determinam duas formas bem distintas de nos postarmos diante da verdade. No grego clássico, segundo Heidegger, existem dois termos que designam o que chamamos de verdade, cada um deles sinalizando um desses caminhos. A verdade tanto poderia ser indicada pela palavra homoiosis, que significa literalmente, ‘ir para a igualdade’ - traduzida para o latim, virou adequatio, adequação em português -, quanto pela palavra aletheia (ἀλήθεια), que significa desvelar o ser. Suponho também que essa palavra signifique algo como ‘desesquecer’, pois o Lethe era o rio do esquecimento na Grécia Clássica - não seria fortuito, portanto, que a filosofia em Platão é um exercício de 'desesquecimento', de revelação de uma verdade sepultada por nossos inúmeros compromissos da vida cotidiana.
Heidegger acreditava que a preocupação fundamental da homoiosis, da adequatio ou adequação, é procurar a correspondência entre conceito e a realidade. E esse é bem o caminho da epistemologia. Já a ontologia, buscando o desvelamento do ser, a essência do ser, se voltaria de forma mais decidida para esta segunda estrada de pensar a questão da verdade, ou seja, para o desvelamento da essência do ser.

Mas chega de etimologia. Essa não é mesmo a minha praia. O fato é que podemos dizer que a modernidade é marcada por uma redução da verdade à primeira acepção do verdadeiro. A ciência moderna está mais preocupada em controlar o mundo do que em descobrir a essência dos seres. Lembremos de Bacon ou de Comte a esse respeito. A ciência moderna deve abandonar a verborragia escolástica, as perguntas que não podem ser respondidas de forma categórica e dedicar-se ao conhecimento útil, ao controle do mundo físico ou social. Para realizar tal propósito seria necessário focar os esforços da filosofia na análise na correspondência entre conceito e realidade, entre o que julgamos ser verdadeiro e a sua comprovação empírica. 'O proletariado é a classe que libertará a humanidade'. Seria isso mera doxa, senso comum, ou algo que poderia ser provado, um 'conceito' passível de comprovação científica? De um modo geral, então, podemos dizer que a epistemologia procura entender como o conhecimento do real poderia se tornar seguro, certo, categórico. Isso sempre demanda verificação, comprovação, experimentação. Este é o caminho da epistemologia: não se quer investigar a essência do ser, mas aprender de modo seguro como se pode controlar o real.

Para que tal forma de conhecimento da verdade (epistemologia) se tornasse hegemônica no ocidente, algumas transformações culturais foram necessárias. Há muito o que dizer aqui, mas vou me restringir a mencionar a crise da cultura medieval como algo fundamental neste processo. De fato, sem um Deus que fosse a garantia transcendental de todo conhecimento, como seria possível se dedicar à questão da essência do ser. Por outro lado, o estado de insegurança em relação à possibilidade de conhecer de modo categórico a realidade (o sol gira em torno da terra ou será a terra que gira em torno do sol?) faz com que a filosofia se dedique a inquirir sobre o que pode de fato o ser humano conhecer. Não é isso que a filosofia crítica, ou seja, Kant, busca com tanto afinco responder? Não é esse já, mesmo que de forma incompleta, o impulso que move a dúvida sistemática cartesiana?
Ambos os filósofos, cada um a seu modo, dedicam-se à questão que funda às questões que fundam a epistemologia: o que podem os seres humanos conhecer com certeza? Qual o critério de certificação deste conhecimento? As respostas são simples e modernas. Podemos conhecer aquilo que nos tornarmos capazes de transformar e o sucesso dessa transformação é o critério de veracidade. Mas uma vez podemos retornar a Bacon e Comte aqui, como de resto a toda ciência positiva que transforma o ocidente a partir do século XVIII.

O retorno a um projeto ontológico terá de aguardar precisamente uma crise na cultura moderna. Não é fortuito que a filosofia Heideggeriana, assumidamente uma ontologia radical, emerge entre as duas guerras mundiais. Foi preciso que nos perguntássemos se não havia algo de errado com a ciência moderna, e seu projeto de controle do mundo, para que um retorno à questão da verdade se tornasse urgente. Mas essa é uma outra história...

Bem, as alunas de que falei no começo desse texto saíram felizes da vida com essa explicação. E você? Ah, você é exigente demais...
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Jonatas Ferreira é o autor desta pérola não revisada.

18 comentários:

Le Cazzo disse...

Meu caro Jonfer,

Sua generosidade epistemológica é fruto da defesa de uma ontologia com conseqüências epistemológicas, ou você se bandeou de vez para o lado dos "pomos" e virou papa-defunto?

Cynthia

Le Cazzo disse...

Cynthia,

Mas creio que o projeto moderno de verdade, uma via epistemológica, foi de fundamental importância para que a questão ontológica pudesse ser colocada em seu fundamento: o ser do ser humano (do Dasein). Sem Kant não há Heidegger - o que não significa que não possamos perceber aslimitações históricas do primeiro e do segundo.

Le Cazzo disse...

Jonfer,

"... mas creio...". Mas, o que? Papa-defunto com restrições? Quais os seus cadáveres preferidos?

Como você sabe, não sou muito de frequentar funerais... mas... concordo com você: não há ontologia possível, senão pela via epistemológica; não há epistemologia possível sem alguns compromissos ontológicos (ou você também compareceu ao funeral da epistemologia?). E viva a crítica, que garante essas revisões infindáveis!

Cynthia

PS. desse jeito, a gente vai acabar espantando @s alun@s de metodologia... coisa mais anti-didática!

Lucas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lucas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
frassinetts disse...

Lucas, sobre os teus questionamentos... na minha opinião, veio primeiro a ontologia, que é a fonte de divagações acerca de elementos existenciais, e depois a epistemologia, que seria a forma de analisar as divagações ontológicas! caso contrário, creio eu, é como se o objeto de estudo tivesse que se adaptar ao método, e não o contrário... como se racionalizássemos uma metodologia para justificar nossas crenças.

Le Cazzo disse...

How lucky you are to have Cynthia and Jonatas for professors! -- Robert Brym

Le Cazzo disse...

Dear Bob,

You're so very kind. And whenever you feel up to, send us your own contribution to this Cazzo.

Jonatas

carol leão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
carol leão disse...

Cynthia e Jonatas,

Adorei o blog!

Só tenho uma questão: quando vc fala que "a ciência moderna deve abandonar a verborragia escolástica, as perguntas que não podem ser respondidas de forma categórica e dedicar-se ao conhecimento útil, ao controle do mundo físico ou social".

Mas o discurso da modernidade tb não é categórico? O que é categórico, então?

beijos

Carol Leão

Le Cazzo disse...

Carol,

As perguntas que não podem ser respondidas de forma categórica são aquelas relacionadas à existência de Deus, às essências das coisas, à liberdade etc. Em resumo: tudo o que foi relegado à categoria de metafísica e que o pensamento moderno fez tudo para expurgar, com sua ênfase na combinação de razão e experiência empírica.

Cynthia

Le Cazzo disse...

Oi, Carolina.

Obrigado pelos comentários. Cynthia já respondeu sua questão - eu só vi que havia tantoa comentários agora (28/09). (por falar nisso, Cynthia, que tanto comentário excluído é esse? Obscenidades? Linha cruzada?)

Em linhas gerais, Carolina, a gente pode dizer que se a epistemologia torna a verdade um problema humano (seculariza-a), por outro lado, reduz o seu espectro de condiderações à discussão do problema da certificação. Como posso garantir que meu conhecimento corresponde ao real? Daí que eu tenha utilizado a palavra 'categórico'. Todo pensar que não possa ser certificado na prática passa a ser depreciado como especulação, verborragia, miolo do pote. Por isso uma das primeiras questões que inaugura a epistemologia é: o que pode o ser humano conhecer?

Jonatas

Le Cazzo disse...

Jonatas,

Acho que as mensagens estão sendo deletadas pelas próprias pessoas que as postam. Pelo menos eu não tenho efetuado qualquer tipo de censura por aqui (além do mais, imagino que as obscenidades poderiam lhe interessar para suas pesquisas sobre o Marquês de Sade - quem sou eu para lhe privar de material de pesquisa...).

Mas tenho que admitir que as postagens anônimas me incomodam: é como falar ao telefone sem saber quem está do outro lado da linha, sem nem ao menos um nome para ligar à pessoa. Enfim...

Cynthia

Anônimo disse...

Faltou o debate ontológico... ficou somente na apologia à epistemologia.

Anônimo disse...

necessario verificar:)

Anônimo disse...

Gostei muito da explicação, achei o blog no google e finalmente entendi a diferença entre epistemologia e ontologia, muito obrigado!

Anônimo disse...

Gostei muito da explicação, achei o blog no google e finalmente entendi a diferença entre epistemologia e ontologia, muito obrigado!

Unknown disse...

Me ajudou bastante!
Você poderia falar um pouco sobre alguma das implicações de um retorno ao projeto ontológico?
Gratidão!