Jonatas e eu tivemos a idéia de postar algumas entrevistas com cientistas sociais no Cazzo. Aproveito a deixa para postar uma entrevista antiga com Raymond Boudon, que efetuei durante o meu doutorado. Embora o propósito da entrevista fosse esclarecer algumas questões que me pareciam fundamentais para a pesquisa da minha tese e, por esta razão, diga respeito a temas muito específicos, acho que pode trazer alguns insights em relação ao pensamento deste autor. Aí vai:
Paris, 21 de Setembro de 1995
Cynthia Hamlin- Algumas pessoas dizem que a sociologia que o senhor faz é muito mais próxima da sociologia americana do que da sociologia francesa e, de acordo com o seu Curriculum Vitae, o senhor estudou somente um ano nos Estados Unidos. Como o senhor explica isto?
Raymond Boudon - Eu acho que estou familiarizado tanto com a sociologia americana quanto com a alemã. As pessoas sempre esquecem, em minha biografia, que eu passei um ano na Alemanha antes de passar um ano nos Estados Unidos. E eu fiquei ‘marcado’ por muitas coisas na Alemanha. Eu também fiquei ‘marcado’ por muitas coisas nos Estados Unidos. Dessa forma, eu sempre fico muito surpreso quando as pessoas dizem que minha sociologia é americana. Tenho a impressão que, como qualquer outro cientista, eu tento ser universal. Isto é, tento escolher em cada país o que é melhor, da mesma forma que um físico não se preocuparia com as origens nacionais das teorias. Provavelmente, minha atitude básica é universalista; pelo menos mais universalista do que outros sociólogos franceses. Isto é entendido como sendo americano, mas esta não seria minha interpretação.
CH - Bem, talvez seja por que ela é uma forte influência e nós podemos percebê-la claramente. E eu estava justamente me perguntando de onde ela veio. Na sua opinião, quem são os autores que mais o influenciaram, especialmente no início de sua carreira?
RB - Você quer dizer na América ou...
CH - Em geral.
RB - No início de minha carreira eu me interessei bastante e fui influenciado por muitas pessoas... Por Durkheim, por exemplo, que é francês. Eu me senti muito atraído pelo esforço de Durkheim em ser científico; quer dizer, em introduzir a distância entre o objeto e o modo como ele analisava seu objeto. Durkheim me ‘marcou’ muito. Depois, eu descobri Tocqueville, que também é francês, mas muitíssimo diferente de Durkheim. E devo dizer que agora eu considero Tocqueville como o sociólogo clássico de quem me sinto mais próximo em termos de metodologia, ou epistemologia, se você quiser. Bem, eu também fui atraído por Lazarsfeld, porque me parece que ele levantou uma questão importante: a questão de se uma linguagem formalizada — a matemática — pode ser usada nas ciências humanas.
CH - O sociólogo britânico Donald MacRae define o senhor como "um dos mais importantes e criativos dos seguidores do maior dos sociólogos, Émile Durkheim". O senhor concorda com isto? E como isto se compatibiliza com o seu individualismo metodológico?
RB - Hum, é difícil para mim dizer se concordo ou não com um elogio tão forte.... (Risos).
CH - Bem, vamos dizer com "um seguidor de Durkheim"...
RB - Eu sempre tive um sentimento ambíguo com relação a Durkheim. No próximo número do
Swiss Journal of Sociology há uma entrevista comigo acerca do meu difícil relacionamento com ele. Eu sempre tive um sentimento positivo em relação a Durkheim porque, como disse antes, ele me parecia muito mais metódico, metodologicamente orientado do que, digamos, Auguste Comte. Por outro lado, eu me senti, desde o início, muito resistente ao seu positivismo muito estreito. Por positivismo estreito eu entendo que, como qualquer positivista da tradição mais forte, ele queria eliminar o invisível da análise sociológica; e o invisível no sentido, no caso dos sociólogos, dos fenômenos psicológicos. Desse modo, por um lado, eu me sentia atraído pelo fato de que ele queria que a sociologia fosse científica, metódica e assim por diante. Por outro lado, eu resistia à idéia de que, para ser realmente científico, você tem de eliminar o não-observável. Ou seja, eu resistia à idéia de explicar os fatos sociais pelos fatos sociais. Por que ele dizia aquilo? Porque queria excluir o invisível, o psíquico, o psicológico.
CH - Isto é um modo muito interessante de colocar o problema, pois, em algumas abordagens atomísticas, argúi-se que o invisível é exatamente o fato social ou a estrutura...
RB - Não no caso de Durkheim, evidentemente, pois quando ele diz fato social, ele quer dizer, por exemplo, o número de austríacos, ou a proporção de austríacos, que cometem suicídio; o número de franceses que cometem suicídio. Não, que isto seja muito visível e, se você olha o Suicídio, o que ele faz é colocar esta proporção de pessoas que cometem suicídio em relação com outro fato visível, que seria, por exemplo, o número de pessoas vivendo nas cidades, ou o número de mulheres etc. Assim, o que ele aspirava fazer era definir a ciência pela relação, pelo exame dos relacionamentos, entre fatos visíveis e outros fatos visíveis.
CH - Em relação ao seu background matemático, o senhor já tinha uma forte base matemática antes de trabalhar com Paul Lazarsfeld?
RB - Não. Meu curriculum era em filosofia e sociologia. Mas, então, em um certo momento, no início dos meus anos de estudante, por assim dizer, eu fiquei muito desapontado com o estado da filosofia e da sociologia da década de 50. Em certo momento da minha carreira eu me perguntava se não seria melhor tornar-me economista, porque eu tinha a vaga impressão de que pelo menos a economia, os economistas, eles eram mais... mais sérios, menos vagos. Assim, comecei a estudar economia e matemática, mas sem nenhum background real em termos de estudos formais. Eu simplesmente trabalhei duro em matemática. Eu estava na
École Normale neste tempo, uma instituição onde todas as disciplinas são misturadas e, por acaso, meus melhores amigos eram matemáticos, de forma que eles me deram aulas particulares de matemática. E eu estava interessado em matemática porque este é um campo maravilhoso. Porque lá você sabe a verdade, não há ambigüidade. Tudo é preto-no-branco. Assim, eu passei um ou dois anos neste mundo preto-no-branco. Fui educado de modo puramente privado, amador, em matemática...
CH - E então, depois disto, o senhor decidiu ir para os Estados Unidos estudar especificamente com Lazarsfeld?
RB - Sim, porque eu tinha a impressão de que o que nós tínhamos na França eram essencialmente duas grandes figuras naquele tempo, em meados dos anos 50. A primeira era Gurvitch. Eu tinha a impressão de que ele era muito vago, confuso etc. E a outra era Lévi-Strauss, e eu tinha a impressão de que a teoria dele era geral demais e também, digamos, muito platônica. Assim, eu não me sentia atraído nem por Gurvitch nem por Lévi-Strauss naquele momento. Foi então que eu li
The Language of Social Research e senti que havia uma sociologia que potencialmente poderia ser muito útil, mais diretamente inscrita no mundo real do que as outras duas. Dessa forma, me veio a idéia de ir para Columbia.
CH - E o senhor conseguiu uma bolsa de estudos?...
RB - Sim, eu consegui uma bolsa. Fui falar com Raymond Aron, que era meu professor. Discutimos a idéia e ele achou que seria muito bom para mim ir para Columbia. Assim, ele conseguiu a bolsa para mim.
CH - O senhor estudou com Raymond Aron?
RB - Sim, quando recebi meu primeiro diploma, chamado de
Diplome d’Études Superieures. No sistema francês, naquele período, que era a primeira oportunidade de escrever algo longo, eu escrevi um longo paper com Aron. O tema era Hegel em Berlim.
CH - No início de sua carreira, seu trabalho parecia ser muito mais formal, em termos matemáticos, do que o seu trabalho mais recente. O senhor acha que houve uma mudança substancial ou em seus interesses ou na sua abordagem que justifique isto?
RB - Meu primeiro livro —
L’Analyse Mathematique de Faits Sociaux — é modesto. Grande, mas muito modesto na intenção. Foi minha tese de doutorado. Eu queria deixar claro os usos da linguagem matemática das ciências sociais. E já naquele momento eu tive a definida, clara e forte impressão que, sim, a matemática poderia ser útil, mas em alguns pontos muito restritos e limitados, como processos de difusão etc. Desse modo, desde muito cedo eu tive expectativas modestas acerca dos usos da matemática nas ciências sociais. Então, em meu livro sobre oportunidades em educação, eu usei uma espécie muito flexível de matemática porque o objeto requeria isto. Pareceu-me que, devido à complexidade de agregação dos processos decisórios dos estudantes irem para as universidades, por exemplo, você tem de usar uma formalização mínima para desemaranhar os processos. Mas, então, eu senti que não tinha mais nenhum prazer fazendo aquilo, e cheguei à conclusão de que um fenômeno muito interessante são as crenças etc. Eu pensei que isto talvez fosse mais interessante e básico do que estudar a forma como os estudantes chegam às universidades.
CH - Básico em que sentido?
RB - Eu tinha a impressão de que, intrinsecamente, crenças são muito mais difíceis de serem explicadas, de forma que é muito mais difícil para os sociólogos darem alguma contribuição para o entendimento de crenças do que para o entendimento do porquê as pessoas vão para a universidade, por exemplo. Este é o tipo de impressões vagas que eu tinha e que explica porque progressivamente eu mudei de certos tipos de fenômenos para outros. Mas sempre com um interesse metodológico básico. Em todos os casos, meu interesse básico era: que tipos de sociologia realmente permitem um melhor entendimento dos fenômenos? A unidade do que eu fiz é, digamos, metodológica.
CH - Em
The Crisis of Sociology o senhor escreveu que os sociólogos não deveriam se limitar ao estudo de métodos quantitativos porque isto implica a exclusão de uma "grande proporção de questões propostas pelos sociólogos (...), a um tal grau que ainda falta uma teoria geral indutiva". Meu problema é com esta ‘teoria geral indutiva’. O senhor acredita uma teoria geral indutiva é apropriada para, ou mesmo possível nas, ciências sociais?
RB - Eu diria que há, na minha opinião, diversos níveis de teorização, que devem ser distinguidos nas ciências sociais. No nível mais baixo, a teoria está lá para explicar conjuntos muito circunscritos de fenômenos. No nível intermediário, você tem teorias como a Teoria do Comportamento Coletivo de Olson, por exemplo, as quais podem explicar vários fenômenos que pertencem a diferentes esferas. E então, em um nível mais geral, você tem discussões, por exemplo, acerca do modelo da escolha racional, que é muito próxima das teorias gerais dos físicos, eu diria. Uma das grandes questões na sociologia na atualidade é se o modelo da escolha racional pode ou não explicar todos os fenômenos. Assim, se você fala de teorias gerais, eu tomaria o modelo da escolha racional como um exemplo de teoria geral. Eu acho que, neste sentido, nós temos teorias gerais.
CH - Certo, mas esta teoria geral seria indutiva? Eu acho que o meu problema é com o ‘indutivo’...
RB - Ah, indutivo! Não, não, eu não diria isto. Indutivo no sentido de que uma vez que você tem sua teoria, você sempre tentará checar se ela explica de modo satisfatório um conjunto de fenômenos e então, como os físicos, você observará a extensão do conjunto de fenômenos, e assim por diante. Mas eu não falaria de uma teoria indutiva, no sentido restrito da palavra indutivo.
CH - O senhor acha que a principal diferença entre sua concepção de individualismo metodológico e a de Popper, e em certo grau também a de Hayek, poderia ser colocada em termos de individualismo e atomismo?
RB - Primeiro, minha posição, como a vejo, é muito diferente das de Popper e Hayek. As pessoas que não gostam de mim tendem a me colocar no mesmo ‘saco’. Mas eu me sinto muito diferente e acho que, objetivamente, minha posição é muito diferente, no sentido de que eu sempre insisto em fazer uma distinção precisa entre individualismo e utilitarismo. A forma de individualismo que é usada na economia neoclássica por Hayek e Popper e outros é sempre uma forma muito particular de individualismo: uma forma que supõe que o comportamento deveria ser explicado pela consideração de custos e benefícios. Para mim, muito claramente, este tipo de axioma comportamental é muito particular e não pode ser usado na maioria dos casos. Na maioria dos casos você tem de usar algo mais geral e, neste ponto, nós chegamos à idéia de crenças. Você não pode explicar, exceto em casos muito particulares, o comportamento das pessoas sem invocar suas crenças e as crenças não podem ser explicadas em termos de custo e benefício. Eu não acredito que X é verdadeiro porque é meu interesse acreditar nisto. Assim, há uma profunda distinção aí entre o individualismo tradicional da economia neoclássica e o meu. E também há a distinção que você mencionou: parece-me que os que são conhecidos como individualistas metodológicos são, muito freqüentemente, atomísticos, pois consideram as pessoas como de fato isoladas, no que eu não acredito. Eu sempre considerei, por exemplo, os recursos que as pessoas mobilizam para fazer as coisas. Entre estes recursos você tem a lembrança de coisas passadas, por exemplo. Assim, meu ator social, como eu o analiso, está sempre em um dado campo social; ele não é uma entidade isolada. Ele está em um dado campo, está conectado com seu passado, está conectado com todos os tipos de pessoas, pertence a grupos e assim por diante. Assim, eu introduziria — o que tenho feito em meus textos — a distinção entre atomismo e individualismo.
CH - O senhor acha que Popper poderia ser considerado como um atomista?
RB - Sim. Eu diria que tanto Popper quanto Hayek podem ser considerados como atomistas e como muito próximos da tradição utilitária tal como usada pelos economistas, e eu rejeito estas duas limitações.
CH - Então esta seria sua resposta ao M.A.U.S.S., não seria?
RB - Sim.
CH - Bem, já que o senhor mencionou o problema do meio social do ator, há uma coisa que eu acho curiosa, especialmente em seu livro sobre ideologia... Eu não posso deixar de pensar que o que o senhor chama de efeitos de disposição é muito similar à noção de habitus de Bourdieu. O senhor acha que há qualquer similaridade, qualquer conexão entre os dois?
RB - Talvez em um nível muito superficial. Eu aceito totalmente a idéia de habitus. Esta é uma velha noção, a tradução de Tomás de Aquino da hexis de Aristóteles... Mas quando Aristóteles, Tomás de Aquino, Durkheim e Weber usam o conceito de habitus, eles dizem somente que, por causa do seu passado, algo está presente na sua mente. Não dizem mais do isto. Eles são também muito cuidadosos em dizer que habitus é somente um ponto em suas análises da ação. Sempre fui contra Bourdieu porque ele faz do conceito de habitus uma mistura de Tomás de Aquino e do Marx mais ruim, no sentido de que, para ele, o habitus é o resultado, em seu cérebro, do que forças sociais anônimas querem. Ele é muito inteligente, mas eu não gosto do modo como ele usa este conceito. Meu conceito de disposição é muito próximo do de habitus no sentido usado por Tomás de Aquino, Aristóteles e Max Weber, mas não do de Bourdieu; certamente não. O que você tem de ver é que Bourdieu usa habitus de uma forma muito particular, cuja suposição mais forte é que a Sociedade — com S maiúsculo — tem o poder de colocar coisas em você que determinam completamente o seu comportamento... Ele tem uma percepção holística de sociedade por atrás disto; holístico e determinístico e eu não posso aceitar nem o holismo nem o determinismo.
CH - Na introdução de
On Social Research and its Language, o senhor escreveu que Lazarsfeld se considerava nominalista e...
RB - Nominalista em um sentido muito vago. No sentido de que ele se colocava fortemente contra abordagens holísticas. Mas não nominalista no sentido de que ele considerava que não havia realidade. Quero dizer, ele era nominalista no sentido de que considerava a psicologia muito importante para explicar os fatos sociais. Esta seria minha resposta.
CL - Mas o senhor não acha que há uma origem comum entre esta negação dos fenômenos holísticos e um tipo de realismo empírico, que poderia ser chamado de nominalismo?
RB - Sob estes rótulos nominalistas você tem a idéia de que, por trás dos fatos sociais, o que você tem são seres humanos com atitudes, crenças, ações e assim por diante, e que você tem sempre de ir para este nível. Em um dos meus artigos, tentei apontar para o fato de que Lazarsfeld é muito ambíguo, porque ele era um weberiano, sem saber e sem aceitar o fato, pois ele tinha todos os tipos de preconceitos, como qualquer austríaco, contra os alemães, particularmente contra Max Weber, cuja obra ele entendeu errado.
CL - Minha próxima questão segue a mesma linha de pensamento. O senhor acha que há alguma relação entre nominalismo e individualismo metodológico? Colocado de outra forma, o senhor acha que nominalismo é a base do individualismo metodológico?
RB - Eu gastei muito tempo em alguns dos meus artigos refletindo acerca do porquê eu fui tão atraído por Tocqueville, e porque — eu diria agora — ele é, sem sombra de dúvida, o maior de todos... E se você me perguntasse por quê, eu diria que é porque ele fez exatamente o que Huygens fez, isto é, ele sempre construiu teorias que, antes de tudo, atendem aos critérios popperianos: uma boa teoria é uma teoria, primeiro, que é compatível com todos os fatos que você pode observar. Segundo, uma teoria científica é boa se suas afirmações não diretamente empíricas são boas — e isto não é popperiano. Eu uso freqüentemente o exemplo da teoria do pêndulo de Huygens: ele introduz na teoria afirmações tal como ‘as forças que vêm do centro da terra’... Parece-me que em qualquer teoria nas ciências naturais, você tem elementos que não podem ser checados diretamente contra os dados, mas ainda assim têm de ser aceitáveis. Se você compara Durkheim com Tocqueville, Tocqueville é sempre bom, me parece, porque ele sempre usa afirmações que podem ser facilmente aceitáveis. Por exemplo, ele analisa o porquê dos franceses não serem como os britânicos com relação a alguns aspectos do século XVIII. Ele propõe uma teoria na qual todas as afirmações são facilmente aceitáveis. E por que elas são aceitáveis? Porque, na maioria das vezes, no fundo, você tem afirmações psicológicas muito simples. Você não diria isto de Durkheim, por exemplo. Por que as teorias individualistas são boas quando são boas — nem todas são boas, mas quando elas são boas? Porque, por trás da idéia de individualismo, você tem a idéia de que as afirmações em suas teorias deveriam ser afirmações psicológicas simples e facilmente aceitáveis.
CH - O senhor conhece o livro de Steven Lukes sobre individualismo [Lukes, S.
Individualism. Key Concepts in the Social Sciences. Oxford: Basil Blackwell, 1973]?
RB - Eu dei uma olhada nele.
CH - Há um capítulo onde ele diz que o que ele não pode aceitar no individualismo metodológico é a idéia de que fatos individuais ou afirmações psicológicas seriam mais reais do que afirmações holísticas, mais facilmente observáveis...
RB - Eu acho que a questão está colocada de forma errada. Deixe-me delinear um exemplo muito caricatural: as diferenças entre os alemães e os franceses. Em um primeiro tipo de teoria, você explicaria estas diferenças introduzindo o conceito de espírito alemão, por exemplo. Isto é uma típica teoria holística. Alternativamente, você pode explicar isto do modo como Tocqueville faz. Deixe-me tomar o exemplo do excepcionalismo religioso americano. Por que os americanos mantêm uma religiosidade que já desapareceu nos países europeus? No primeiro tipo de teoria, você explicaria o problema introduzindo o conceito de espírito nacional, por exemplo. Isto é uma típica teoria holística. Alternativamente, você pode explicar isto como Tocqueville o faz. Os americanos não têm as mesmas razões que os alemães ou franceses, por exemplo, para serem hostis à religião. A vida religiosa americana é organizada em torno de um grande número de seitas, em contraste com, digamos, a França, onde ela é ‘governada’ por uma igreja dominante. Esta diferença dá origem a muitos efeitos. Uma igreja dominante não pode deixar de se envolver com política, enquanto é menos atrativo e factível para uma seita competir com o Estado em matéria de política. Segundo, como em qualquer estado centralizado, o Estado francês tende a controlar direta ou indiretamente todas as funções sociais importantes, tais como saúde, educação e bem-estar. Como estas funções se tornaram crescentemente cruciais, o Estado francês aumentou seu controle sobre eles. Esta circunstância tornou a competição Estado-Igreja mais aguda. O Estado americano, como conseqüência de sua organização descentralizada, pode deixar mais facilmente grande parte destas funções para as denominações religiosas. Como conseqüência, enquanto um clima de competição Igreja-Estado prevaleceu na França centralizada, a complementariedade reinou nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, as igrejas permaneceram como uma dimensão básica da sociedade civil. Elas impregnaram a vida cotidiana de forma que exerceram um grande papel no que diz respeito às três funções mencionadas acima. Como elas eram vistas como estando acima da política, não foram associadas na mente das pessoas com quaisquer correntes políticas e ideológicas, ficando protegidas dos efeitos das mudanças ideológicas. Esta teoria de Tocqueville é individualista com afirmações psicológicas implicitamente incluídas (Por exemplo: "é improvável que pais que vivem em um contexto onde seus filhos normalmente serão educados em instituições educacionais religiosas desenvolvam uma atitude de hostilidade com relação à religião") e estas afirmações são facilmente aceitáveis. No que diz respeito a Tocqueville, você tem uma teoria individualista com todos os tipos de afirmações psicológicas; por outro lado, você introduz coisas grandiosas: o espírito alemão, o espírito britânico, por exemplo.
CH - O senhor colocaria a distinção em termos de observabilidade?
RB - Não, não. Porque, como lhe disse antes, mesmo nas ciências naturais, na teoria de Huygens por exemplo, ele invoca a idéia de uma força que vem do centro da terra. Você já viu uma força vindo do centro da terra? Não, mas os físicos normalmente usam tais coisas. Se você ler Tocqueville, ele lhe dirá que, quando eu pertenço a uma comunidade, quando na comunidade as pessoas concordam acerca de ‘A’ e discordam acerca de ‘B’, eu tenderei a dar mais importância a ‘A’ do que a ‘B’. Você não pode checar estes tipos de afirmações diretamente contra a realidade. Mas ela é aceitável. Observável deve ser distinguido de aceitável. Nós temos de introduzir afirmações aceitáveis, o que não significa necessariamente que elas serão observáveis. Este é o erro de Carnap: pensar que tudo deveria ser...
CH - Observável.
RB - Pelo menos potencialmente observável.
CH - Há alguma ontologia social implicada no individualismo metodológico, ou o senhor acha que os aspectos metodológicos são independentes dos ontológicos?
RB - Não, eu diria que esta é meramente uma questão epistemológica, e não ontológica. Muito freqüentemente, quando eu vejo críticas ao meu trabalho, eu vejo as pessoas dizendo: "ah, ele quer nos dizer que o indivíduo vem primeiro e sociedade vem depois". Para mim, este tipo de questão é mero nonsense. Eu não sei — ninguém jamais saberá — se a sociedade ou o indivíduo vem primeiro. Esta é um típica questão sem sentido.
CH - O que o senhor quer dizer quando escreve em
The Crisis of Sociology que "enquanto os objetos da lingüística, da economia ou da demografia são geralmente constructos abstratos aqueles da sociologia são encontrados na realidade"?
RB - Você tem dois tipos de coisas: você tem realidades concretas não-individualísticas, como uma estação de metrô, mas, se você observa os tipos de questões levantadas pelos sociólogos, você tem também questões que não existem na realidade. Por exemplo, quando Tocqueville explica porque os britânicos e os franceses são diferentes no século XVIII, esta é uma questão que não existia antes... A diferença entre as duas sociedades, nos termos que ele a coloca, não existia antes que ele a levantasse. Desse modo, você tem duas coisas: você tem a realidade social que você pode observar e da qual pode falar, e você tem realidades sociais, como estas diferenças entre duas sociedades, que você tem de construir antes de falar acerca delas, e que não são visíveis diretamente.
CH - Como se decide sobre a realidade de um objeto?
RB - Depende. Você tem de convencer o seu leitor da realidade do seu objeto, mesmo que seja um objeto abstrato, como quando eu falei a você que há uma diferença entre os franceses e os britânicos em tais e tais aspectos e tal e tal tempo. Mas como esta diferença não é imediatamente visível, como uma estação de metrô, então você tem de convencer seu leitor que a diferença existe. E o que você fará então? Você mostrará todos os tipos de documentos, de testemunhos, de fatos, de estatísticas etc. E, finalmente, a mistura de todo este conjunto complexo de informações convencerá o leitor.
CH - Em
The Uses of Structuralism sua conclusão é que "uma estrutura é sempre a teoria de um sistema — e ela não é mais do que isto". Não seria mais apropriado dizer que o conceito de estrutura é precedido por teorias, mas que a estrutura em questão não o é, e, neste sentido, seguindo Roy Bhaskar, esta ciência produz as condições para a identificação dos objetos, mas não produz os próprios objetos?
RB - Certo. Eu concordo.
CH - Eu vejo que, em seus livros mais recentes, o senhor trabalha com o conceito de estrutura como o contexto da ação social e, neste sentido, como um fenômeno objetivo que resulta de interações sociais prévias. Mas como isto é compatível com a sua definição em
The Uses of Structuralism, de que a estrutura é uma teoria e nada mais?
RB - Deixe-me utilizar Tocqueville novamente. Quando ele escreve que "os franceses e os britânicos são diferentes", ele não lhe dá uma descrição, uma descrição realista, dos dois contextos. Não, ele somente extrai um número muito limitado de grandes características. Para dar um exemplo, a pequena nobreza tem o direito de receber de pessoas comuns sinais de respeito e deferência. Mas ninguém na França vê a base desta superioridade. O nobre rico compra postos reais correspondendo muitas vezes a deveres mal definidos. Eles gastam seu tempo na corte, em Versailles. Com relação aos nobres pobres, aqueles que mais provavelmente encontram os camponeses, eles se apegam com insistência aos seus privilégios, desde que estes são a única fonte de seu status. Na Inglaterra, a pequena nobreza exerce, de forma contrastante, funções sociais e políticas, tanto no nível local quanto no nacional. Assim, sua superioridade oficial é vista como legítima e é aceita. A mesma análise é feita por Tocqueville acerca de outros aspectos. Estes aspectos não são inventados, eles são reais. Mas a seleção destes aspectos é guiada pela teoria que ele tem em mente. Neste sentido, você pode dizer que eles são aspectos estruturais. Desse modo, não vejo qualquer diferença ao falar que a estrutura não tem existência até o momento em que você tem uma teoria, e que a teoria lhe guia na pesquisa da estrutura.
CH - Eu estava me perguntando acerca do tipo de conseqüências que esta posição epistemológica teria na formação dos conceitos. Por exemplo, a relação entre as posições ontológica e epistemológica. E como se constrói conceitos, como os conceitos vêm da realidade, e como eles voltam à realidade — e eu acho que esta é a parte mais importante...
RB - De fato, uma teoria científica é boa quando ela fala da realidade tal como ela é. Os contatos entre a teoria científica e a realidade devem ser fortes, mas não implica que a teoria deva ser descritiva. Você começa a partir do fenômeno que você quer explicar, um dado fenômeno bem definido. Neste momento, eu quero explicar isto, e nada mais. Para explicar isto, eu construo uma teoria e esta teoria tem, naturalmente, de seguir alguns critérios: eu não devo introduzir Deus em meu vocabulário, por exemplo; e eu não devo introduzir em meu vocabulário, se eu sou um individualista metodológico, conceitos tais como o espírito nacional, e assim por diante... Uma vez estabelecidos estes critérios, eu construo a teoria e vejo se ela é aceitável ou não. E, então, eu introduzirei, se eu estou preocupado em explicar algumas diferenças entre dois países, características estruturais. Estas características estruturais, eu tenho de convencer o leitor que elas de fato existem, no sentido mais forte da palavra. Assim, os fatos relacionados estão aí, e eu tenho muitos fatos em todos os lugares na conexão entre teoria e o que eu quero explicar. Mas minha teoria, de modo nenhum, é meramente uma descrição do objeto. Ela não é uma descrição do objeto, ela é uma resposta à questão que eu quero que seja universalmente aceitável.
CH - Na equação que sumariza o paradigma da ação social, o último termo da função é estrutura social. Apesar do senhor argüir que esta estrutura pode sempre, em princípio, ser redutível às ações dos indivíduos, isto não implica que é realmente a estrutura que funciona como elemento explicativo?
RB - Não, porque você tem de ver que, na forma como ela ‘recorta’ a realidade, a teoria é sempre, em certa medida, arbitrária. Suponha que o que eu quero explicar são as diferenças entre a França e a Inglaterra. Então, eu considerarei, por exemplo, que o número de posições na corte é maior na França do que na Inglaterra. Eu paro aí. Eu paro aí porque este não é o ponto que quero explicar. Minha preocupação é com outra coisa, mas eu poderia, naturalmente, perguntar: "por que era diferente na França e na Inglaterra?", "por que se tinha mais posições na França do que na Inglaterra?". Ninguém me impede de fazer esta pergunta e, então, ir adiante, para outras questões, e assim por diante
ad infinitum. Dessa forma, eu tenho de parar ali arbitrariamente, no que eu considero como características periféricas. Eu não as explico. Isto não significa que elas têm alguma prioridade. Isto significa somente que este é o ponto onde eu tenho de parar, porque eu tenho de parar em algum lugar.
CH - O conceito de situação, principalmente no seu livro
Theories of Social Change, exerce um papel central na sua concepção de individualismo metodológico. No entanto, o senhor nunca o definiu tão cuidadosamente quanto o senhor definiu outros termos envolvidos nesta abordagem. O senhor poderia me dizer exatamente o que entende por situação?
RB - Eu não o defini porque, intencionalmente, eu o tomo de uma forma muito abstrata e vaga: eu não entendo por situação a situação concreta, mas todos os dados que estão lá, na mente das pessoas ou no meio em que vivem, e que eu tenho de invocar para responder a uma dada questão. Assim, em um dos meus artigos, eu tomo o exemplo dos sérvios. Na Sérvia, todos os camponeses têm fotografias de seus pais, avôs etc, em uniforme militar. Todos eles. Eu tomaria este elemento como pertencendo à situação dos sérvios. Se você quer explicar a forma como eles julgam agora o que aconteceu na Sérvia, você tem de considerar que eles têm estas fotografias presentes em suas mentes. Isto significa o valor que eles dão à história passada através de suas próprias famílias, ou ao que aconteceu à Sérvia, as lutas entre Sérvia e Croácia etc. Tudo que está presente quando eles olham a situação atual. Neste sentido, eu diria que as fotografias pertencem à situação. Assim, você não pode definir situação se você a utiliza da forma como eu faço, como o conjunto de todas estas coisas que pertencem à memória, ao passado, ao meio em que se vive, à natureza das relações entre as pessoas e que você tem de invocar para explicar o que você quer explicar. Mas, como dissemos antes, os elementos que você irá levar em consideração dependerão do que você quer explicar. Dessa forma, eu não posso definir situação. É um ‘grande saco’, eu reconheço, mas é importante se preocupar com este ‘grande saco’. O individualismo metodológico, no sentido utilizado pelos economistas neo-clássicos, não tem um ‘grande saco’: as pessoas têm seus conjuntos de preferências, e isto é tudo.
CH - A noção de uma racionalidade limitada e ‘subjetiva’ é talvez a característica mais original do seu individualismo metodológico e ela requer um método que nos permita a apreensão desta racionalidade. É interessante que o senhor se refira a este método, de forma quase casual, como uma abordagem fenomenológica. Como o senhor define esta abordagem, e por que sempre usa o termo ‘fenomenologia’ e outros correlatos entre aspas?
RB - Isto me deixa embaraçado, pois não estou muito consciente disto. Eu nunca me interessei muito por fenomenologia. Eis porque eu não estou muito consciente disto... O único autor sobre o qual eu refleti muito nesta corrente de pensamento, e muito recentemente, foi Max Scheler. E Max Scheler em seu livro sobre
Wert Ethik; isto é, o livro
Value Ethics. Eu dei muita atenção a este livro porque Max Scheler diz que "os valores morais existem de fato; nós os percebemos de um modo fenomenológico". Você os percebe. Naturalmente, você não os percebe como objetos físicos, mas nós temos um sentido em termos de valores morais. Eu me senti perplexo por isto. Perplexo porque, eu pensei, ele está certo quando diz que os valores morais têm uma realidade, mas não posso aceitar a idéia de que nós temos uma percepção ou um sentido em termos destes valores, onde eles estão... Max Scheler é o único fenomenólogo acerca de quem eu realmente refleti.
CH - E Schütz?
RB - Schütz muito menos... Eu simpatizava com ele, mas nunca tive a impressão de ter tido qualquer revelação, uma revelação científica, a partir do trabalho dele.
CH - Isto é muito interessante, pois eu acredito que Schütz foi uma referência importante tanto no desenvolvimento fenomenológico do trabalho de Weber, quanto no desenvolvimento do subjetivismo de Hayek... O senhor tem alguma coisa a ver com esta tradição?
RB - Não, muito pouco. Eu nunca me senti, eu devo dizer, realmente atraído seja por Schütz, seja por Hayek. Com relação a Schütz, apesar de simpatizar com ele, tenho a impressão de que não aprendi nada com ele. Enquanto isto, eu tinha uma forte atração por Tocqueville e Weber porque tinha a impressão de que eles me ensinaram algo. Eles lidaram com todos os tipos de fatos que eram obscuros ou opacos antes deles e que se tornaram claros depois deles... Eu acho que a essência do trabalho científico é solucionar quebra-cabeças. Não vejo que problemas Schütz solucionou. Com relação a Hayek, ele é muito diferente. Eu sempre resisti a grandes teorias, a teorias que englobam tudo..
CH - O senhor é mais o tipo de cientista de "alcance médio"...
RB - Sim (Risos).
CH - Muito obrigada.
Tradução: Jorge Ventura de Morais
Publicada originalmente em Estudos de Sociologia, Vol. 2, No. 1, 1996.