domingo, 22 de março de 2009

A sociedade dos indivíduos: resenha


Depois que a eminência parda do Reverendo Tsé-Tsé (aqui) apareceu nesse espaço escrevendo um texto anticlerical, senti-me obrigado a escrever alguma coisa; afinal, fazia tempo que estava ausente do blog. Claro, vejo a presença do dito-cujo como uma provocação de Cynthia, do tipo _já que não escreve, apelarei para tua genealogia! Admito que a artimanha deu certo, já que estou escrevendo, mas acuso o golpe baixo. Acuso até um conluio, já que o rasputin do ateísmo ensinou, nos idos do milênio passado, o método dialético à toda-poderosa do PPGS. Não adiantou muito, vale dizer, porque a prestigiosa, no máximo, foi até o realismo, mas nunca assumiu uma posição materialista e dialética.

Pois é... Vamos lá, então.

Bem, na aula de "sociologia contemporânea", lá na graduação da UFPB, estudamos alguns textos de Norbert Elias. Aproveitei o ensejo e fiz uma espécie de resenha do livro "A sociedade dos indivíduos" (aqui), tomando por base minhas anotações de aula. Publico, agora, para discussão.

Penso que todo o esforço de Elias é direcionado para a análise da relação entre o indivíduo e a sociedade. Para isso, rediscute os próprios termos da discussão, utilizando abundantemente uma sociologia histórica dos conceitos. Mostra, assim, que tanto "indivíduo" como "sociedade" são noções que surgem historicamente e, portanto, não existiam enquanto tal em outras épocas e sociedades. As noções são contextualizadas, mostrando que seu surgimento possui uma afinidade eletiva com um determinado modo de vida, uma determinada forma de socialização, uma determinada forma de produzir identificação e reconhecimento... Elias pratica uma "sociologia total": procura entender como a relação entre indivíduo e sociedade surge e como está inscrita historicamente em determinadas práticas sociais e lingüísticas.

Nesse sentido, Elias utiliza-se de um aporte baseado na teoria da linguagem, aliado a uma sociologia histórica, mas vai mais além: procura mostrar as conexões entre linguagem, práticas sociais, história e biologia, produzindo um singular e interessante diálogo entre a sociologia e a biologia evolutiva -- aliás, uma abordagem original, cuja síntese seria completamente inédita, não existindo em nenhuma sociologia clássica ou contemporânea (vale lembrar que Elias estudou medicina). Lembro também dos vetos e do pavor absoluto que a corporação sociológica tem de qualquer contato com a biologia; um produto, certamente, do medo da naturalização da sociologia que pode causar a aproximação com os aportes da biologia, principalmente da evolutiva – medo pertinente, sem dúvida; mas, muitas vezes, exagerado. Diga "evolução" na frente de um sociólogo e verá um apavorado em desabalada carreira pelos corredores da universidade.

Através da relação entre o indivíduo e a sociedade, Elias explicita sua visão da sociologia -- explicitação já utilizada, por exemplo, por Durkheim, mas de uma forma bem diferente, evidentemente. Assim, não há indivíduos sem sociedade, e sociedade sem indivíduos. A relação pode até existir, sendo inclusive produzida historicamente, mas não significa que seja uma dicotomia, isto é, indivíduo e sociedade não são separados, existindo apenas uma distinção conceitual que pode facilitar ou não o estudo sociológico. A partir do momento em que se pressupõe uma dicotomia, pode-se erradamente, embora seja uma iniciativa lógica, tomar como ponto de partida da teoria social ou a sociedade ou o indivíduo. O mais producente ponto de partida seria a própria relação entre indivíduo e sociedade, ou melhor: partindo do princípio de que uma sociedade é um conjunto de indivíduos, a análise deveria começar pelo que estrutura esse conjunto, isto é, pelo sistema de relações que entrelaça os indivíduos. O próprio sentimento de que existe uma relação entre indivíduo e sociedade já significa que estamos diante uma sistema de relações que corporifica essa mesma relação -- o indivíduo não pode ser tomado isoladamente, nem a sociedade pode ser analisada de forma substantiva. A própria individualização faz parte de uma transformação social que ultrapassa o controle do indivíduo. O indivíduo só pode ser visto como individuo socializado -- como já disse um velho barbudo: _não é um Robinson Crusoé. A individualidade moderna é, dessa forma, uma construção social e histórica, inscrita em práticas de socialização.

Elias, ao privilegiar as relações, coloca-se como um "estruturalista" - "pensar em termo de relações e funções" (pp. 25) é pensar de forma estruturalista -, já em 1939; mas não um estruturalista do tipo que apareceu na década de 60, cuja característica foi eliminar completamente a agência humana, entendida apenas como um suporte da estrutura. Não, esse "estruturalismo" reifica a sociedade em detrimento do indivíduo -- Elias seria demasiadamente "humanista" para um Althusser, por exemplo. Ele antecipa um pensamento "estruturalista" com face humana que centra suas atenções nas interações humanas, inclusive utilizando conceitos extremamente atuais, por exemplo, como o de "rede". Várias vezes, mesmo no artigo de 39, vemos a utilização de conceitos que invocam relações: rede, malha, tecido, imagem reticular, teia humana... Há uma agência humana no pensamento social de Elias, logo, uma teoria do sujeito, mas não um todo-poderoso no qual a razão seria o seu principal fundamento, e sim um sujeito delimitado pelas suas relações com outros sujeitos - parodiando um filósofo: "eu sou eu e minhas relações". Interpreto, por isso, que "sujeito" é produto de um processo intersubjetivo para Elias. A subjetividade seria resultado da intersubjetividade, digamos assim.

Elias seria assim, e também, um "interacionista", mas um bem especial, pois não tem qualquer ojeriza com o conceito de "função" -- entender uma "rede" ou um sistema de relações sem compreender o seu contexto funcional impede o entendimento do fenômeno social. O que existiria, definitivamente, seria uma rede de funções no interior das associações humanas. Seria através do contexto funcional que se entenderia a ordem invisível que subjaz as interações humanas:

"é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que chamamos 'sociedade" (pp. 23).

Mas tal rede de funções é o todo tempo pensada historicamente -- acreditamos que seja nesse ponto uma das maiores contribuições de Elias. A própria possibilidade de pensar na relação entre o indivíduo e a sociedade foi produzida por condições históricas específicas. O surgimento de um self, de um tipo de autoconsciência e da intuição de que nós temos uma unidade interior irredutível à rede social são todos produtos históricos, dados sob certas condições e não outras. O individualismo moderno, amálgama de todos esses eventos, surgiu a partir de condições bem determinadas, não sendo um fato natural da antropologia humana.O "eu puro", assim,

"constitui a expressão de uma singular conformação histórica do indivíduo pela rede de relações, por uma forma de convívio dotada de uma estrutura muito específica".

Nesse sentido, o tipo de autoconsciência sentida pelo homem moderno "corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo civilizador" (pp. 32). O self surge no bojo de privatizações de determinadas interações sociais, antes pública, agora reservada ao fórum íntimo. Tal situação cria a situação moderna por excelência: a sensação de termos uma unidade interior apartada da "sociedade" e de que somos um indivíduo isolado e independente.

A separação entre o indivíduo e a sociedade seria uma projeção histórica dessa especial conformação psíquica. A necessidade funcional dos termos "indivíduo" e "sociedade" vem de tal estruturação psicológica. E tal terminologia, digamos assim, está inscrita nas práticas lingüísticas da sociedade moderna -- assim, Elias acompanha, num certo sentido, o que Habermas chamou de virada lingüística do pensamento no século XX. Práticas que possuem uma história "gramatical" e que se materializam no uso dos pronomes pessoais; práticas que incorporam sistema de identidades, conceituadas por Elias em noções gerais: a identidade-eu e a identidade-nós; práticas que envolvem uma "evolução" social em que a identidade-eu vai, cada vez mais, tomando o lugar e dominando a identidade-nós; práticas, enfim, que necessitam não apenas de uma explicação histórica, mas também ontogenética: Elias vai analisar as conexões entre a linguagem, a história e a biologia.

Para produzir tal conexão, Elias foi, certamente, influenciado por Darwin. Assim, podemos encontrar no seu pensamento um "evolucionismo"; contudo, sem os atavismos de um evolucionismo spenceriano, parsoniano e quejandos, pois embebido de historicidade. Ele, várias vezes, utiliza noções como "etapa", "estágio", "elevação", "avanço", propondo inclusive a necessidade de se construir, sem complexos, uma teoria do desenvolvimento social baseada numa "sociologia dos processos". Uma teoria do desenvolvimento social que saia do reducionismo econômico-estrutural e seja uma "sociologia total": junte no mesmo arcabouço teórico aspectos históricos, psicológicos, sociais e biológicos. Assim:

"no atual estágio de desenvolvimento da teoria sociológica dos processos, a maneira como interagem e se entrelaçam os diferentes aspectos do desenvolvimento da personalidade de uma pessoa ainda não foi claramente entendida. Os aspectos biológicos, psicológicos e sociológicos desse desenvolvimento são objetos de disciplinas diferentes, que trabalham independentemente. Assim, os especialistas costumam apresentá-los como existindo em separado. A verdadeira tarefa da pesquisa, contudo, consiste em compreender e explicar como esses aspectos se entrelaçam no processo e em representar simbolicamente seu entrelaçamento num modelo teórico com a ajuda de conceitos comunicáveis" (pp. 153).

Inclusive, tendo tempo, voltarei a esse tema do evolucionismo em Elias, principalmente sobre sua utilização da noção de "progresso". Confesso, aqui, minha ambiguidade em relação ao emprego da noção de "evolução" e de "progresso" nas ciências sociais. O terreno é movediço...


De todo modo, a proposta de Elias é um baita projeto que envolve, inclusive, a apropriação de conhecimentos provenientes de áreas até hoje vistas com desconfiança pelos sociólogos, tais como a biologia evolutiva, as teorias da linguagem, a psicologia cognitiva e evolucionista, a paleantropologia e até mesmo, acrescentamos, as neurociências. Por isso, podemos dizer que Elias propõe uma sociologia total do fenômeno humano, no qual diversos conhecimentos afins dão subsídios ao conhecimento propriamente sociológico. Baita projeto... Se é realizável ou não, isso é outra questão. O que importa realmente seria seu... fascínio.


por Artur Perrusi

O Arcebispo, a Excomunhão e a CNBB


Cena de Prisão, Alessandro Magnasco (cerca de 1710-1720)

Por Gadiel Perrusi (professor aposentado do PPGS/UFPE)

Para mim, pessoalmente, pouca importância tem o fato de se excomungar ou não um membro de qualquer das religiões atuais. No entanto, as declarações do Arcebispo de Olinda e Recife, D. José Cardoso Sobrinho, na Televisão e na Imprensa escrita, assumiram uma dimensão que extrapola o âmbito restrito, e privado, dos fiéis católicos.

O Arcebispo declarou, literal, pública e explicitamente, que a equipe médica, que realizara um procedimento médico legítimo e legal, e a mãe da criança de 9 nove anos, que autorizara tal procedimento, “estavam excomungados automaticamente”(sic). E repetiu, diversas vezes, o termo “automaticamente”.

Ora, algumas questões, que fogem ao domínio religioso, colocam-se inelutavelmente e interessam a toda a sociedade civil.

1º) Em suas declarações, Dom José Cardoso afirmou que a “lei de Deus” (isto é, a lei da Igreja Católica Romana, citando o Código Canônico) está acima de qualquer outra “lei dos homens” (isto é, no caso em tela, a lei brasileira). Acrescentou, ainda, que, quando a “lei de Deus” é contrariada pela “lei dos homens”, esta não tem o menor valor (sic) e, em conseqüência, como se pode inferir, não deve ser obedecida. Quer dizer, na hipótese, a lei brasileira não passaria de “lixo jurídico”.

Para qualquer estudante de Faculdade de Direito, tal afirmação poderia ser considerada como tipificação do que estatui o Código Penal Brasileiro, isto é, um “incentivo público à prática de atos ilícitos”. E a “omissão de socorro”, por exemplo, não estaria tipificada como delito penal? Como, acertadamente, aliás, alegou um dos médicos agredidos?

Claro! O Arcebispo não teria tido tais intenções.

Os Promotores de Justiça, autônomos por determinação de nossa Constituição, que reflitam sobre o caso.

2º) Dom Cardoso ocupa um cargo de confiança de um Chefe de Estado estrangeiro, isto é, o Estado do Vaticano, reconhecido como tal pela ONU e pelo Brasil, que mantem com aquele relações diplomáticas normais. O mencionado Prelado foi mantido em seu cargo pelo Papa Bento XVI, Chefe de Estado do Vaticano, e representa legalmente os interesses da Cúria Romana no local de sua atribuição. Ora, ao declarar que a lei de um Estado estrangeiro, que representa, está acima das leis brasileiras, não seria forçoso, mesmo que seja por analogia, reconhecer que o Arcebispo Cardoso fez declarações que implicam em ingerência de um Estado estrangeiro nas questões legítimas da cidadania brasileira?

Que reflitam os senhores Promotores de Justiça sobre o caso.

3º) Dom José Cardoso, visível e publicamente, constrangeu moralmente a equipe médica e a mãe da criança, ao expô-los à execração da comunidade católica e do público em geral. Justamente as pessoas que foram objeto de suas declarações.
Que os Promotores de Justiça reflitam se houve danos morais a cidadãos em pleno gozo dos seus direitos, estabelecidos pela nossa Carta Magna.

4º) O Arcebispo, com suas declarações, ignorou a situação dolorosa e de risco de vida em que se encontrava a criança, vítima de estupro pelo padrasto, a tal ponto que mãe e filha se recusam a voltar à sua terra natal, na zona rural de Pernambuco, com medo de represálias dos seguidores do pensamento clerical.

Contudo, Brutus era um homem honrado!

Que os Promotores de Justiça reflitam se houve danos materiais e infração ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Por outro lado, estarrecido, ouvi, ontem (12-03-2009), no Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, um Porta-Voz da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB) que afirmava: “não houve ninguém excomungado no Recife” (sic). Tudo não teria passado de uma hipótese (sic), levantada pelo Arcebispo local, face à gravidade do fato.

Talvez, quem sabe, se tratasse de uma “alucinação coletiva” dos telespectadores e leitores de jornais brasileiros, locais e nacionais, entre os quais me incluo, obviamente. E a imprensa internacional? The New York Times, The Time, The Guardian, Le monde, Le Figaro, Le Matin, Le Nouvel Observateur, para citar apenas uns poucos? Todos unânimes em reproduzir e repudiar as declarações de Dom José Cardoso.

A nota da CBBB, divulgada pela Televisão, coloca um grande problema. Como cantava o saudoso Mestre Salustiano, TODO MUNDO VIU!

Na minha infância e adolescência, fui membro de uma Igreja Batista, cujo Pastor era um evangélico fundamentalista. Ele nos ensinava que mentir era contrário à “lei de Deus” (para ele, única e exclusivamente, a própria Bíblia). Acrescentava que as Sagradas Escrituras identificam com clareza quem é o “Pai da Mentira” e que todos aqueles que mentem, especialmente em público, tornam-se escravos daquela suposta entidade paternal.

E logo a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), tão combativa contra a Ditadura Militar! Certamente, esta não é a CNBB de Dom Helder Câmara, Dom Evaristo Arns, Dom “Pelé”, Dom Luciano Mendes e tantos outros.

Não seria interessante refletir sobre declarações de um Bispo, porta-voz de outros bispos, que contrariam, consciente e deliberadamente, a verdade dos fatos?
Os apresentadores do Jornal Nacional, visivelmente constrangidos, não falaram nada a respeito. Não seria interessante refletir se eles cumpriram com seu dever de jornalistas? Bastaria, aliás, que reproduzissem, sem nenhum comentário, as declarações do Arcebispo Cardoso Sobrinho. Nada mais!

Com todo o respeito aos fiéis católicos e de outras seitas cristãs, tanto quanto a todos os religiosos, não seria interessante refletir criticamente sobre os atos da hierarquia de suas respectivas Igrejas?

Não seria o momento para uma reflexão profunda sobre os avanços do espírito republicano e do Estado laico no Brasil?

Que reflitamos todos sobre o mal que as religiões, organizadas em Igrejas competitivas entre si, causaram à Humanidade, tanto no passado quanto no presente.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Nota Social!!!

Maria Sheila Bezerra da Silva, nossa aluna no doutorado do PPGS da UFPE, acaba de ganhar o 'Prêmio Naíde Teodósio de Estudos de Gênero' com o ensaio 'Quem pode sofrer? Uma análise dos discursos jurídicos relativos ao aborto de fetos anencéfalos e suas implicações na vida de mulheres pernambucanas'. Estamos contentíssimos com o feito, Sheila. Parabéns.

(E o Cazzo também é Coluna Social, ora!)

Jonatas

segunda-feira, 9 de março de 2009

Rousseau e a Desigualdade – parte 2



Não começarei esse post falando de desigualdade e de Rousseau.

Começarei parabenizando a ação recente de entidades de defesa da mulher e da criança, (SOS Corpo e o Grupo Curumim, em particular) e dos médicos Centro de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM) em defesa da vida e da dignidade humana. Acho que muito foi dito na imprensa acerca do estupro e gravidez da pequena pernambucana de 9 anos de idade (pequena mesmo: 1,37 m. e 33 k.) e do terror, terror, terror que significa uma gravidez infantil e em circunstâncias de violência sexual tão flagrante e brutal. Pouco foi dito acerca do significado das atitudes do arcebispo de Olinda e Recife no caso. E que atitudes foram essas: ameaça à família da garota, aos médicos e mulheres que se posicionaram na defesa da decisão clínica e do direito legal e, por fim, a excomunhão de todos, inclusive da mãe. A criança teria sido poupada da fúria santa do arcebispo. O resultado de suas ações, no entanto, conhecemos bem: a criança e sua mãe não podem voltar para a cidade de onde vieram, sob pena de ter de enfrentar a pressão comunidade católica local, da qual foram arrancadas por seu suposto pecado: interromper uma gravidez imposta, indesejada, cessar o risco que ameaçava a vida da criança e livrá-la de uma gestação para a qual ela não teria estrutura física ou psicológica. De pecado eu entendo pouco, grande pecador que devo ser. Entendo um pouquinho mais da violência da intolerância, da crueldade de obedecer a princípios cegos e o perigo que reside nessa violência, crueldade e cegueira. Mas eis que o arcebispo também falou em campos de concentração a favor de sua posição... Abro aqui espaço para comentários dos leitores e leitoras do Cazzo.

E agora passemos ao tal Rousseau. Devo minha interpretação do Discurso sobre a origem das Desigualdades entre os Homens certamente à leitura de um famoso ensaio que Derrida publicou na Gramatologia sobre o homem de Genebra. Ali ele chama atenção para um paralelo, uma influência, entre a obra de Rousseau e de Lévi-Strauss. Nas duas obras existe um momento importante de articulação conceitual, eu diria mesmo de articulação meta-discursiva – ou seja, uma articulação conceitual que torna o discurso antropológico nos dois autores inteligível - que cabe analisar. Esse momento, esse ponto, é precisamente aquele que torna possível especular acerca de uma passagem histórica entre o homem selvagem e o homem civilizado.

A rigor essa passagem constitui uma aporia, isto é, um paradoxo intransponível, e Rousseau a reconhece como tal em várias passagens. Como seria possível que o animal humano se convertesse em animal pensante? Como a cultura pode brotar da natureza? Como a linguagem pode surgir para aquele que já não disponha da razão? Tomemos esse último paradoxo: para raciocinar é preciso linguagem; mas para ter linguagem o ser humano tem de dispor de conceitos, da capacidade de abstrair e, portanto, da razão. O argumento aqui é necessariamente circular. Rousseau oferece a esse paradoxo uma solução pouco convincente: os filhos devem ter ensinado aos pais a linguagem, pois, sendo frágeis, eles teriam manifestado a necessidade. Mas reconhecer em si uma necessidade seria prova de capacidade de abstração e, portanto, de raciocínio. Para tal a linguagem seria fundamental. E voltamos ao ponto de partida.

“Nova dificuldade ainda pior do que a precedente: porque, se os homens tiveram necessidade da palavra para aprender a pensar, tiveram muito mais necessidade ainda de saber pensar para encontrar a arte da palavra; e, quando se compreendesse como os sons da voz foram tomados por intérpretes convencionais de nossas idéias, restaria sempre saber quais puderam ser os intérpretes mesmos dessa convenção para as idéias que, não tendo um objeto sensível, não podiam indicar-se nem pelo gesto nem pela voz”

Na verdade, se quisermos entender a importância da explicação rousseauiana devemos procurar entender o sentido da articulação que ela propõe – o mesmo sendo válido, segundo Derrida, para entender Lévi-Strauss. O que inaugura o ser humano? No fundo essa é a questão: qual a essência do ser humano? A resposta de Lévi-Strauss: o reconhecimento do interdito, do tabu do incesto. Desse reconhecimento provém toda a possibilidade de ‘comércio’ entre os seres humanos. O que inaugura o ser humano, como algo distinto do animal humano, do selvagem, para Rousseau? A resposta também é clara: sair do imediato, tornar-se um ser mediado - por meio de instrumentos, de uma linguagem, pela posse de propriedade. O selvagem não conhece o tempo e por esse motivo ele não conhece a linguagem, a razão, a morte. Só o homem civilizado morre, se vocês me permitem um paradoxo a mais.

“Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal”.

O “homem é o ser indireto”, dirá Hegel uns cem anos depois (creio que no Sistema da Vida Ética). Ao descobrir o tempo e a morte (como isso teria acontecido? Como teria sido possível?), aprendemos a abstrair, inventamos a linguagem. Falamos porque já não vivemos segundo a lei universal da natureza, já não habitamos no tempo atemporal, instantâneo, do imediato. Para Rousseau, esse afastamento da natureza é a origem da desigualdade moral e política. Ora, ao falar, raciocinar, entender a vida no tempo, abstrair, o ser humano instaura um convívio com outros seres humanos que já se funda na desigualdade.

“Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava. Logo, deixando de adormecer na primeira árvore, ou de se retirar nas cavernas, encontraram-se certas espécies de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que ocorreu, em seguida, endurecer com argila e barro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, de onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates”.

A propriedade privada é apenas uma expressão secundária da vida mediada pela linguagem, razão e tempo. Aqueles que pensam e procuram prover seu inverno de cereais serão não apenas os primeiros a cultivar a terra, mas a cercá-la e subsumir essa terra num conceito: meu.

Em escritos posteriores ao que consideramos nesse post, como o Contrato Social, Rousseau acrescentará que é possível construir uma sociedade igualitária - ou seja, raciocinar, falar, viver de modo civilizado e ao mesmo tempo igualitário. Em sua tese complementar, Montesquieu e Rousseau: Pioneiros da Sociologia, Durkheim vai ao ponto ao observar:

“Se nas sociedades atuais as relações fundamentais do estado de natureza foram perturbadas, é porque a igualdade primitiva foi substituída por desigualdades artificiais e, como resultado, os homens se tornaram dependentes uns dos outros. Se em vez de ser apropriada por indivíduos e personalizada a nova força nascida da combinação de indivíduos em sociedades fosse impessoal e se, consequentemente, transcendesse todos os indivíduos, os homens seriam todos iguais em relação a ela, já nenhum deles poderia dispor dela a título privado. Assim, eles dependeriam não uns dos outros, mas de uma força que, por sua impessoalidade, seria idêntica, mutatis mutandis, às forças da natureza”.

Se na citação acima a idéia de desigualdade deixou de ser co-extensiva à de civilização (pois é possível tornar a vontade geral, mediante contrato, numa força universal), a articulação básica que funda o Discurso continuará carregando o pensamento de Rousseau com suas conseqüências. Falemos um pouco sobre isso à guisa de conclusão.

As aporias de que falamos acima e sua articulação mediante o recurso de um elemento fundador da cultura (como o tempo, a linguagem ou o interdito) resultam na construção de dois campos radicalmente distintos: de um lado o mundo imediato, ingênuo, puro e forte da natureza de outro o mundo mediado, artificial, decadente e desigual da civilização. O problema com essas polaridades é que ela sempre concebe o ‘selvagem’ (os caraíbas de que fala Rousseau, por exemplo) como seres desprovidos de cultura, razão, técnica. O mesmo raciocínio que os concebe como “bons selvagens” associa-os à infância, à incapacidade no campo da civilização – mas esse é precisamente o terreno onde suas vidas serão decididas pela modernidade ocidental. O estado de natureza não é apenas um afirmação teórica, de caráter especulativo, mas uma afirmação política. Não é fortuito, portanto, que diferenças de gênero sejam naturalizadas no Emílio, neste livro que trata da educação dos jovens.

A aproximação entre natureza e ingenuidade (ingenuidade aqui no sentido romântico, no sentido que esse termo tem em Schiller, por exemplo), entre o selvagem e a criança tem conseqüências políticas bastante importantes. Antes de Derrida, foi a leitura de um estudioso de Rousseau que me chamou atenção para essa proximidade teórica. O nome impronunciável desse teórico é Bernard Groethuysen. Num livro de 1949 (Idées), ele observa:"Mas a natureza está de fato tão longe de nós? Não nascemos nós todos, de alguma forma, homens naturais? Não nascemos todos nós crianças?" BG prossegue citando o próprio Rousseau:

"Se eu fiz algum progresso no conhecimento do coração humano, é o prazer que eu tinha de ver e observar as crianças que me valem este conhecimento"

Em um certo sentido, a postura do Rousseau maduro de crença num contrato social, na razão colocada a serviço do interesse público, já está preparada quando ele associa o bom selvagem a uma ingenuidade não civilizada. São crianças maravilhosas, mas quem quer, ou pode, ser criança o resto da vida? Do ponto de vista das implicações práticas dessa aproximação é claro que está legitimada uma atitude paternalista com relação a populações ditas mais próximas da natureza - e falo aqui não apenas dos ditos selvagens, dos povos do "meio-dia", do não-europeu, mas também da mulher, como já mencionamos acima.

Mas agora, cansei. Posto assim mesmo e amanhã melhoro.

Jonatas

terça-feira, 3 de março de 2009

Rousseau e a Desigualdade - parte 1


Pintura de Henri Rousseau

O que há de tão importante no Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, neste texto de 1757, feito sob encomenda? Primeiro, é afirmação, que encontramos logo no prefácio, do sentido necessariamente antropológico que qualquer indagação sobre a desigualdade social acarretaria, é dizer que apenas a compreensão de nossa história poderia responder à questão. Ora, isso não é pouca coisa. Ernst Cassirer em A Filosofia do Iluminismo ajuda a entender a importância desse gesto. Digamos de partida que afirmar o sentido antropológico (e secularizador) da reflexão rousseauiana não significa desconhecer seu significado dentro de uma tradição que se elabora de dentro da tradição judáica e cristã. O pensamento iluminista não foi tão anti-religioso quanto usualmente se afirma, mas se apropriou da agenda religiosa, impondo-lhe um sentido secular. Ele se apropriou da questão da teodicéia, por exemplo, (por que sofremos, por que o mal pode de algum modo advir de um ser perfeito, isto é, de Deus?) e indagou mais restritamente: por que o homem sofre? Se a pergunta advém da tradição religiosa, a forma como ela é formulada e a resposta que é oferecida não o são.

Pois na verdade, as respostas à questão da teodicéia foram muitas, mas em algo a agenda das Luzes converge, isto é, no sentido délfico de suas respostas. Se você quiser entender o sofrimento, se você quiser entender a desigualdade, como se propõe Rousseau no famoso texto, você terá que entender o ser humano. “Conhece-te a ti mesmo”. E exatamente nas primeiras linhas do Discurso, Rousseau já nos alerta:

“Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens? ”

A tarefa do Discurso, pois, é saber diferenciar o que é essencial no ser humano daquilo que é secundário e poder, assim, identificar em que medida a desigualdade é inerente ao ser humano, ou se, como aconteceu com a “estátua de Glauco”, algo que o desfigurou ao longo do tempo, retirando-o de sua própria essência. A desigualdade tem uma “origem” e ela é histórica e não metafísica. Sendo capaz de identificar essa origem, Rousseau esperava lançar luz sobre os “fundamentos reais da sociedade humana” - curiosamente, como se perceberá, tais fundamentos agem contra a natureza do homem - e, em decorrência, entender o tipo particular de desigualdade que nos concerne.

Falar de um "fundamento da sociedade" em Rousseau é estabelecer uma oposição antropológica importante, uma tensão que influenciará, por exemplo, a atividade científica de Claude Lévi-Strauss. De um lado, temos o homem em estado de natureza, ou seja, em total harmonia com sua essência, e de outro o encontramos já em estado de civilização, isto é, vivendo em sociedade. Entre um e outro estado, uma passagem, um salto ontológico que cabe entender - Strauss lança mão da idéia de tabu do incesto; Rousseau procederá de modo diferente. Pois se encontramos o homem primitivo mais próximo de sua essência, de sua natureza, forçoso é concluir que a sociedade, ao retirá-lo desse estado, o afasta de sua natureza, o corrompe, como o tempo fizera à estátua de Glauco. A tensão entre o "bom selvagem" e o "homem civilizado" (e corrompido) é conhecida demais para que não a mencionemos aqui.

A partir dessa oposição, Rousseau nos proporá ainda uma outra: entre uma desigualdade natural, que atinge a todos os seres vivos enquanto eles disponham de recursos limitados para satisfazer suas necessidades, e uma desigualdade artificial, ou decorrente da vida em sociedade, ou ainda “moral e política”, decorrente da perpetuação de privilégios não biológicos, mas historicamente constituídos.

A natureza trata a todos de uma forma igual, diz Rousseau. A lei que rege a vida do mais forte, rege a do mais fraco; a desigualdade que os confronta a ambos o faz de um modo igual, mesmo que suas competências sejam díspares. Se um animal salta mais alto que outro, a gravidade é a mesma para ambos. Quem é este homem-animal, então, que vive mais próximo de sua natureza?

“A natureza faz precisamente com eles o que a lei de Esparta fazia com os filhos dos cidadãos: torna forte e robustos os que são bem constituídos e faz morrer todos os outros, divergindo nisso das nossas sociedades, em que o Estado, tornando os filhos onerosos aos pais, os mata indistintamente antes do nascimento”.

Apenas a lei socialmente constituída é desigual em seu âmago. Ela se baseia e reforça privilégios que são socialmente construídos, funda-se sobre o acesso diferenciado a meios técnicos de sobrevivência. A posse de instrumentos técnicos, a propriedade da terra determina privilégios não naturais, desigualdades que precisam ser discursivamente validadas pelos grupos dominantes precisamente por não se fundarem em algo essencial do ser humano. Rousseau, e Platão antes dele, Bergson cem anos depois, fazem parte de uma tradição filosófica que vê na técnica, tanto a possibilidade de vida civilizada quanto a maior ameaça ao ser humano. No caso em questão, ela é a fonte de privilégios que é preciso discutir. Quando os bitniks e os hippies soltaram-se pelas ruas das metrópoles ocidentais na segunda metade do século XX, pregando o desapego a bens materiais, uma vida não mediada pela tecnologia, mais amor e menos razão, estavam, a seu modo, repetindo Rousseau.

Jonatas Ferreira

(Continua)