terça-feira, 3 de março de 2009

Rousseau e a Desigualdade - parte 1


Pintura de Henri Rousseau

O que há de tão importante no Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, neste texto de 1757, feito sob encomenda? Primeiro, é afirmação, que encontramos logo no prefácio, do sentido necessariamente antropológico que qualquer indagação sobre a desigualdade social acarretaria, é dizer que apenas a compreensão de nossa história poderia responder à questão. Ora, isso não é pouca coisa. Ernst Cassirer em A Filosofia do Iluminismo ajuda a entender a importância desse gesto. Digamos de partida que afirmar o sentido antropológico (e secularizador) da reflexão rousseauiana não significa desconhecer seu significado dentro de uma tradição que se elabora de dentro da tradição judáica e cristã. O pensamento iluminista não foi tão anti-religioso quanto usualmente se afirma, mas se apropriou da agenda religiosa, impondo-lhe um sentido secular. Ele se apropriou da questão da teodicéia, por exemplo, (por que sofremos, por que o mal pode de algum modo advir de um ser perfeito, isto é, de Deus?) e indagou mais restritamente: por que o homem sofre? Se a pergunta advém da tradição religiosa, a forma como ela é formulada e a resposta que é oferecida não o são.

Pois na verdade, as respostas à questão da teodicéia foram muitas, mas em algo a agenda das Luzes converge, isto é, no sentido délfico de suas respostas. Se você quiser entender o sofrimento, se você quiser entender a desigualdade, como se propõe Rousseau no famoso texto, você terá que entender o ser humano. “Conhece-te a ti mesmo”. E exatamente nas primeiras linhas do Discurso, Rousseau já nos alerta:

“Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens? ”

A tarefa do Discurso, pois, é saber diferenciar o que é essencial no ser humano daquilo que é secundário e poder, assim, identificar em que medida a desigualdade é inerente ao ser humano, ou se, como aconteceu com a “estátua de Glauco”, algo que o desfigurou ao longo do tempo, retirando-o de sua própria essência. A desigualdade tem uma “origem” e ela é histórica e não metafísica. Sendo capaz de identificar essa origem, Rousseau esperava lançar luz sobre os “fundamentos reais da sociedade humana” - curiosamente, como se perceberá, tais fundamentos agem contra a natureza do homem - e, em decorrência, entender o tipo particular de desigualdade que nos concerne.

Falar de um "fundamento da sociedade" em Rousseau é estabelecer uma oposição antropológica importante, uma tensão que influenciará, por exemplo, a atividade científica de Claude Lévi-Strauss. De um lado, temos o homem em estado de natureza, ou seja, em total harmonia com sua essência, e de outro o encontramos já em estado de civilização, isto é, vivendo em sociedade. Entre um e outro estado, uma passagem, um salto ontológico que cabe entender - Strauss lança mão da idéia de tabu do incesto; Rousseau procederá de modo diferente. Pois se encontramos o homem primitivo mais próximo de sua essência, de sua natureza, forçoso é concluir que a sociedade, ao retirá-lo desse estado, o afasta de sua natureza, o corrompe, como o tempo fizera à estátua de Glauco. A tensão entre o "bom selvagem" e o "homem civilizado" (e corrompido) é conhecida demais para que não a mencionemos aqui.

A partir dessa oposição, Rousseau nos proporá ainda uma outra: entre uma desigualdade natural, que atinge a todos os seres vivos enquanto eles disponham de recursos limitados para satisfazer suas necessidades, e uma desigualdade artificial, ou decorrente da vida em sociedade, ou ainda “moral e política”, decorrente da perpetuação de privilégios não biológicos, mas historicamente constituídos.

A natureza trata a todos de uma forma igual, diz Rousseau. A lei que rege a vida do mais forte, rege a do mais fraco; a desigualdade que os confronta a ambos o faz de um modo igual, mesmo que suas competências sejam díspares. Se um animal salta mais alto que outro, a gravidade é a mesma para ambos. Quem é este homem-animal, então, que vive mais próximo de sua natureza?

“A natureza faz precisamente com eles o que a lei de Esparta fazia com os filhos dos cidadãos: torna forte e robustos os que são bem constituídos e faz morrer todos os outros, divergindo nisso das nossas sociedades, em que o Estado, tornando os filhos onerosos aos pais, os mata indistintamente antes do nascimento”.

Apenas a lei socialmente constituída é desigual em seu âmago. Ela se baseia e reforça privilégios que são socialmente construídos, funda-se sobre o acesso diferenciado a meios técnicos de sobrevivência. A posse de instrumentos técnicos, a propriedade da terra determina privilégios não naturais, desigualdades que precisam ser discursivamente validadas pelos grupos dominantes precisamente por não se fundarem em algo essencial do ser humano. Rousseau, e Platão antes dele, Bergson cem anos depois, fazem parte de uma tradição filosófica que vê na técnica, tanto a possibilidade de vida civilizada quanto a maior ameaça ao ser humano. No caso em questão, ela é a fonte de privilégios que é preciso discutir. Quando os bitniks e os hippies soltaram-se pelas ruas das metrópoles ocidentais na segunda metade do século XX, pregando o desapego a bens materiais, uma vida não mediada pela tecnologia, mais amor e menos razão, estavam, a seu modo, repetindo Rousseau.

Jonatas Ferreira

(Continua)

3 comentários:

Anônimo disse...

Jonatas, como fica a questão da alteridade, do exergar o Outro não com pressupostos primeiros de relações de poder desiguais, mas como o reflexo do estabelecimento da diferença, base da vida social? Acredito mesmo que Rousseau não dê conta dessa questão.

Anônimo disse...

Sim, perdão pela antecipação da pergunta, é de fato um excelente blog.
Sou professora de Economia Internacional da Universidad de Buenos Aires e acompanho seu blog há algumas semanas.

Em contato.

Le Cazzo disse...

Oi, Maria Ângela.

Temos opiniões semelhantes acerca do limite do pensamento rousseauiano para tratar a questão da alteridade, da diferença. Falarei um pouco mais sobre isso na continuação deste post. Obrigado pelo comentário e volte sempre. Abraço, Jonatas