"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
domingo, 30 de agosto de 2009
A digitalização e edição da vida e suas conseqüências culturais (parte 1)
O texto que se segue (em duas partes) é uma comunicação feita em Campina Grande em 2007. Na falta de tempo para escrever coisas novas, vai algo antigo.
Jonatas Ferreira
Venho pesquisando ‘conseqüências culturais da inovação tecnológica nas sociedades contemporâneas’ há alguns anos. Essa questão tem me preocupado, porém de um modo indireto. Em meu trabalho de pesquisa estive bem mais preocupado em entender a emergência de uma espisteme tecnocientífica particular, algo que hoje os cientistas norte-americanos chamam, com humor um tanto infantil, de BANG (a convergência de interesse de estudiosos voltados para o estudo de Bits, Atoms, Neurons, Gene) e os europeus chamam de NBIC (Nanociência, Biotecnologia, Information sciences e cognitive sciences). A convergência da nanociência e biotecnologia, por exemplo, fez surgir um campo específico chamado nanobiotecnologia, ou seja, a física, a química e a biologia se unem para produzir novos medicamentos, novos métodos de diagnóstico, novas possibilidades terapêuticas. Para ser mais explícito, interessa-me entender como as ciências duras estão dialogando entre si, quais são os pressupostos epistemológicos e ontológicos da convergência por elas proposta. Creio que este esforço é importante para que nós, historiadores, sociólogos, antropólogos, psicólogos, cientistas políticos possamos não apenas estabelecer um diálogo com estes cientistas, mas para que possamos interferir nas mudanças radicais que a biologia molecular, as nanociências, as ciências da informação e as ciências da cognição estão propiciando.
Acredito que a possibilidade de comunicação entre essas ciências é dado por uma redefinição da matéria, da vida e da própria comunicação levada a termo pela cibernética a partir da década de 1950. Falaremos a esse respeito centrando especial atenção no modo como a cibernética passou a ser uma referência fundamental nas ciências da vida.
Creio haver certo consenso quanto ao fato de 1953 ter sido um ano fundamental no curso de transformações que ora se operam nas ciências da vida. Naquele ano, Watson e Crick propuseram uma fórmula matemática, um modelo, para explicar como a fita de DNA se enrolava de modo a constituir os 23 pares de cromossomos que todos possuímos, ou os 4 pares que constituem a drosófila, os 16 capazes de produzir a minhoca, os 24 responsáveis pelo macaco, os 600 que fazem a samambaia. Dividiram um prêmio Nobel com esta descoberta e começaram uma reviravolta nos estudos relacionados à genética. 1953 foi fundamental para que se começasse a montar este quebra-cabeças gigantesco que é determinar a estrutura e funcionamento do genoma humano. Tudo começou, pois, com um modelo, com simulação matemática; e a conclusão foi: a estrutura do DNA é helicoidal. Que a resolução deste problema tenha sido matemática é algo que devemos ter em mente.
Durante quarenta anos, a biologia molecular produziu uma revolução em slow motion. Uma transformação profunda na forma de compreender e interferir na vida biológica estava em curso, mas pouca, excetuando alguns especialistas, gente prestou atenção. Na década de 90, no entanto, neste momento em que a Internet se popularizava, os holofotes da mídia se dirigiram para esse campo de conhecimento. Falou-se em uma nova revolução tecnológica, uma transformação radical capaz de apequenar o que estava e ainda está ocorrendo no campo das tecnologias de informação e comunicação. De fato, o que há de tão extraordinário com a Internet, com os computadores pessoais, DVD players, ipods, gravadores digitais etc., quando temos diante de nós o que se chamou a possibilidade de acesso ao “livro da vida”?
Costumo prestar atenção às metáforas através das quais se busca facilitar o discurso científico - bem, por dever de ofício, presto atenção ao uso de figuras de linguagem de qualquer modo. Outros tropos, além do tal livro, do alfabeto da vida, foram usados para falar da profunda série de inovações técnicas e científicas que estavam, e ainda estarão por muitos anos, em curso: falou-se na descoberta da tabela periódica dos organismos, da caixa de ferramentas que produz a vida, do santo Gral etc. Nenhuma dessas imagens, entretanto, conseguiu competir com esta de sabor medieval: o livro da vida.
A possibilidade de descobrir a planta baixa, outra metáfora fartamente utilizada, da vida e poder, a partir dela, reconfigurar o seu edifício apresenta um paralelo evidente com o pensamento religioso. As polêmicas que surgiram a partir desta confusão de ‘competências’ foram e continuam sendo de grande importância. Não devemos usurpar uma prerrogativa divina, a de criar a vida, dizia-se. Mas salta aos olhos a capacidade que cientistas-chave desenvolveram de obter dividendos da polêmica. Toda a atenção que a mídia deu à questão, as promessas de conquistar um poder divino, teve um efeito importante na capitalização econômica e política da genômica. Caixa de Pandora ou cornucópia, o poder prometido pela biotecnologia de base molecular justificou o investimento de recursos sem os quais dificilmente se teria avançado tanto quanto avançou em menos de 20 anos. Muitos cientistas aprenderam rapidamente acerca do poder das polêmicas na sociedade da informação. Refiro-me particularmente ao cientista e empresário Craig Venter, fundador, entre outras empresas no campo da bioinformática, da Celera Genomics, notabilizado por empreender um esforço privado de mapeamento do genoma humano. A Celera concorreu diretamente pelas honras, prestígio, recursos do PGH, realizado pela iniciativa pública, num consórcio que associou a expertise de cientistas de mais de uma dezena de países. A empresa de Venter foi um prodígio na área de bioinformática e também de marketing. Beneficiou-se amplamente da especulação produzida em torno do que poderia ou não realizar a biologia molecular no começo da década.
Também não poderemos deixar de falar da enorme importância do mapeamento do genoma humano para a redefinição dos horizontes das ciências da vida na contemporaneidade. Comecemos por falar da soma de recursos mobilizada por este projeto. Falou-se em algo em torno de US$ 3 bilhões para financiar algo cuja utilidade prática sempre esteve longe de ser clara ou imediata, ou seja, para ciência básica. Um investimento desta ordem é, como de fato foi, capaz de orientar as prioridades da ciência em todo o mundo. Se os norte-americanos, japoneses, chineses, franceses, ingleses e alemães estão voltando tantos recursos para o PGH, não podemos ficar para trás – ou muito para trás. Mais uma vez, o que pode e o que não pode a biologia molecular, o que ela deve ou não deve fazer, formaram um contexto propício para justificar perante a opinião pública semelhante investimento. Devemos ou não clonar seres humanos, realizar ou não pesquisas com células-tronco embrionárias, tentar ou não terapia genética com seres humanos, interferir ou não no genoma humano, livrar o ser humano da sua mortalidade ou não? Deixemos claro o seguinte: embora algumas dessas questões pressuponham uma expertise que as ciências da vida ainda estão ainda longe de possuir, a mera formulação de uma possibilidade é aqui importante. As promessas, utopias e distopias são ingredientes fundamentais no processo de legitimação pública de um investimento de US$ 3 bi.
Em sua edição do dia 17 agosto de 2007, o Washington Post publicou matéria com o seguinte título: “Pela Primeira Vez, o FDA Recomenda um Teste Genético”. Tratava-se de uma recomendação para os usuários do anti-coagulante Warfarin. Os testes seriam fundamentais para que os médicos pudessem decidir acerca da dosagem deste medicamento que um paciente deveria tomar, levando-se em conta predisposição genética a enfartes ou fibrilação atrial. Um passo decisivo na direção daquilo que se convencionou chamar medicina personalizada. E esta vem a ser a segunda expectativa gerada pelo conjunto de competências adquiridas pelo PGH, fornecer a base para uma medicina preocupada em antecipar possíveis patologias de base genética. Aqui é sempre bom lembrar as palavras de Francis Collins em entrevista a Charlie Rose (2000): “Não consigo pensar em uma doença que não tenha base genética”. É bom que se diga, a medicina personalidade não significa para a indústria farmacêutica um tratamento de base individual, afinal a escala ainda é um elemento fundamental do lucro destas empresas. A idéia é fornecer um leque menos universal de medicamento.
O mapeamento de qualquer genoma fornece uma base inicial sobre a qual tais procedimentos médicos podem ser concebidos. Afirmamos acima que muito se falou que o genoma é o software que produz a vida. Se a aceitarmos como sendo verdadeira, todavia, não há como não concluir que o que um mapa genético nos fornece é apenas linguagem de máquina – e pouco sabemos acerca das instruções que esta série de zeros e uns, ou de CTGAs que ela codifica. Pouco sabemos sobre quais genes são responsáveis por doenças simples, como eles atuam, como se organizam. Digamos apenas para efeito de ilustração que exceto pelas hemácias, todas as células do organismo humano contém nosso genoma inteiro. Que tipo de instrução faz algumas dessas células produzirem um fio de cabelo e outras nossa retina? Até pouco tempo os cientistas não sabiam como responder esta questão; não acredito que já tenham respondido à charada. O trabalho realmente gigantesco, e que será o projeto da genômica nas décadas por vir, é entender a funcionalidade, a lógica e a sintaxe do ‘programa da vida’.
(continua)
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
terça-feira, 18 de agosto de 2009
O Nascimento da Ciência na Europa (parte 2)
Maíra Acioli e Jonatas Ferreira
Nos Dez livros de Pensamento diversos, publicados no mesmo ano do Novum Organum (1620), Alessandro Tassoni defende a tese da superioridade dos modernos com relação aos antigos. Seu argumento toma como foco o desenvolvimento de novos aparatos técnicos, entre eles, a imprensa: “… essa nobre invenção que introduziu o modo de fazer com que na terra as almas dos homens gloriosos nunca morram...” (apud Rossi, Os Filósofos e as Máquinas). O pensamento medieval não poderia se haver com a imprensa e a potencial divulgação de idéias, saberes novos que esta invenção trazia; o próprio o surgimento desta mostra que os tempos eram mesmo outros.
A defesa de Tassoni antecede a “querela dos antigos e dos modernos" (1688-97). O início da famosa disputa é atribuído por Paolo Rossi a Charles Perrault. Na França essa disputa abordava temas concernentes à modernidade e ao progresso, mas estava mais ligada aos campos literário e lingüístico. Na Inglaterra, os temas em discussão eram os da filosofia natural, das ciências e das artes mecânicas. Se o Renascimento propôs uma ruptura com a cultura medieval a partir de um retorno à antiguidade clássica, a idéia de progresso científico constante fundamenta agora entre os modernos a conclusão de que esses eram tempos de ultrapassar mesmo aqueles gigantes, que o desenvolvimento técnico e científico seria infinito. Esse progresso humano incessante, todavia, só seria possível a partir do exercício crítico com respeito a toda forma de tutela e autoridade intelectual. A partir dessa premissa é possível concluir que o saber transmissível é superior a todas as formas solitárias de sabedoria espiritual. O pensador solitário está parcamente submetido ao exercício crítico e, portanto, ao progresso intelectual.
O exercício critico implica vencer “obstáculos epistemológicos” que se cristalizam sob a forma de dogmas. Uma série de esquemas de pensamento precisava ser superada para dar espaço à essa nova forma de perceber e explicar o mundo e os fenômenos que nele se passam. E um grande passo nessa direção foi elaborar uma nova compreensão da natureza. Se os medievais achavam que o mundo estava repleto de sinais do Divino, e buscavam entender a afinidade oculta que existiria entre os objetos do mundo, o modernos buscam já não mais procuravam uma “afinidade eletiva” entre os seres mais o seu princípio de produção, uma mathesis universalis que abrisse, não a verdade dos seres, mas o conhecimento das causas mediantes as quais seria possível controlar sua produção. A separação entre fé e razão científica é esboçada neste contexto. Uma vez já não procuram no mundo natural uma totalidade de seres ligados por relações secretas, abrem mão das pretensões de obtenção de um conhecimento absoluto e podem avançar na construção do conhecimento a partir de ramos especializados.
Como todos sabemos, a história da física é um exemplo dos desafios enfrentados na construção da ciência moderna. Trata-se não somente de um novo método, mas também de uma nova concepção a respeito do que é o universo físico. Neste sentido, alguns postulados da cosmologia clássica e medieval, sua aparente obviedade, o senso-comum que os legitimavam, foram grandes obstáculos. Essas eram generalizações que possuíam raízes antigas e estavam ligadas à experiência cotidiana, relacionadas ainda a uma concepção antropomórfica do mundo, ou seja, à crença de que Deus havia colocado o homem no centro da criação e que todo o mundo natural fora constituído de modo a afirmar essa posição. Assim, não faria sentido percebermos, por exemplo, o sol girando em torno da terra e supormos que o contrário ocorreria: Deus não colocaria no umbigo do universo uma criatura que não estivesse preparada de modo natural para o saber correto.
A cosmologia aristotélica é considerada aqui um obstáculo epistemológico central à efetivação da ciência moderna. As distinções entre mundo celeste e mundo terrestre e entre movimentos naturais e movimentos violentos dão as bases para a filosofia aristotélica. O mundo terrestre ou sublunar é composto de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. A terra e a água tendem naturalmente para baixo, enquanto que o ar e o fogo tendem naturalmente para cima. Entretanto, a experiência apresenta também outros movimentos que contradizem esse princípio – o fogo pode deslocar-se lateralmente sob a ação do vento, por exemplo. Este tipo de movimento é chamado de movimento violento, pois deriva de uma força externa que se opõe à natureza do objeto. Para Aristóteles, o mundo terrestre é o terreno próprio da mudança, do nascimento e da morte; o movimento que nele acontece é retilíneo, variado e limitado no tempo. O mundo lunar, ao contrário, é o reino da permanência, dos movimentos curvos, perfeitos e eternos. As estrelas e os planetas que giram em torno da terra são formados por um quinto elemento, o éter. Ele é sólido, cristalino, e não está sujeito à alterações. Nesta cosmologia não cabe nenhum movimento circular à Terra: ela está imóvel no centro do universo.
Ao longo de um século, aproximadamente entre 1610 e 1710, cada um dos pressupostos que baseiam essa cosmologia foram sendo superados. Em primeiro lugar foi preciso deixar pra trás a idéia de que o universo estava dividido em duas esferas (mundo lunar e sub-lunar), pois esta distinção mantém a matemática afastada das elaborações da astronomia e da física – a matemática opera a partir da busca de princípios universais, da indiferença qualitativa entre os seres. É somente a partir da percepção de que toda a matéria é regida por princípios únicos, com uma única linguagem explicativa, que essas áreas podem empreender novos avanços. Todo o universo funciona a partir de leis gerais e invariáveis. Citando o Discurso do Método, Merleau-Ponty, em A Natureza, mostra o poder que a idéia de tais leis gerais passa ter no pensamento europeu. Mesmo Deus não pode transgredir os princípios que estruturam o mundo natural.
“Mostrei quais eram as leis da natueza; e, sem apoiar as minhas razões em nenhum outro princípio, que não o das perfeições infinitas de /deus procurei demonstrar todas aquelas sobre as quais pudesse haver alguma dúvida, e mostar que elas são tais que, mesmo que Deus houvesse criado muitos mundos, não poderia haver nenhum onde elas deixassem de ser observadas”.
Às mudanças na forma de entender o universo físico correspondem transformações nas concepções relativas à organização social. Se, mediante o uso da razão e da experimentação, podemos acessar um mundo de verdades universais, demonstrável e portanto certificável, é natural que se conclua estarmos diante de um caminho para o entendimento entre os seres humanos. A ciência pretende ser uma linguagem universal, esta é a sua bandeira ideológica. Pretende-se que a razão possa se tornar um elemento de harmonia entre os povos porque ela é o ratio, o denominador comum a todos os seres humanos, isto é, seres que teriam na razão o seu traço distintivo, sua essência. A partir dessa perspectiva é que se poderá também contestar as rígidas distinções entre grupos sociais vigentes no antigo regime. Para Kant, por exemplo, o iluminismo é a saída do homem do estado de menoridade e tutela; é a possibilidade de emancipação através de uma faculdade que é comum a todos.
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
O Nascimento da Ciência na Europa (parte 1)
Jonatas Ferreira e Maíra Acioli
Entro no Google e procuro informações sobre Paolo Rossi, o eminente filósofo e historiador da ciência. A homonimia entre o escritor de mais de vinte livros bastante conhecidos, muitos deles publicados no Brasil, e o célebre jogador de futebol italiano dificultam minha tarefa. Dificultam emocionalmente, quero dizer, pois lembro daquele 3 a 2 com os quais a "azurra", sob o comando do outro Paolo Rossi, desclassificou a “esquadra canarinha” na Copa de 1982. É melhor, portanto, concentrar no escritor de A Chave Universal, de O Filósofo e as Máquinas, de O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, nas aulas de epistemologia científica no Departamento de Ciências Sociais da UFPE e naquilo que deve ser discutido: a mudança epistemológica que faz nascer a moderna ciência européia e da qual participaram nomes tão significativos quanto Bacon, Galileu, Giordano Bruno, Kepler, entre tantos outros.
Por vezes é difícil convencer o(a) aluno(a) de ciências sociais a apreciar a dimensão dessas mudanças e o caráter desses pioneiros diante da crítica que hoje podemos fazer a duzentos anos de cultura científica e tecnológica: afinal, sem a ciência e a técnica modernas seriam possíveis duas guerras mundiais, a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, o efeito estufa, a depredação da vida na terra etc. etc?
Uma primeira tarefa para esse(a) aluno(a), portanto, é se permitir o gesto hermenêutico e buscar entender a contribuição desses cientistas em seu tempo, isto é, a coragem de ruptura com o que estava posto que cada um deles manifestou - e por vezes com uma convicção trágica, como é o caso de Giordano Bruno. Algo importante a ser considerado, é que a constituição da ciência moderna, de um espaço público de saber científico, de uma experiência racional e crítica, ocorreu em condições sociais e políticas bastante particulares. Rossi menciona a Guerra dos Trinta anos e as convulsões sociais que sacudiram a Europa do século XVII como contra-ponto para entender a força de um ideal de racionalidade que se apresentou como a possibilidade de uma linguagem comum para todos os seres humanos. No período de plena atividade dos tribunais inquisitoriais, a mãe de Kepler ficou encarcerada durante 5 anos sob acusações de bruxaria, lembra Rossi, as associações de cientistas e pensadores buscam oferecer a força da razão como denominador comum a todos os homens, como possibilidade de harmonia entre os povos. Uma só língua e denominador comum: a razão científica. É nas academias e sociedades científicas que toma força a idéia de que a verdade não está ligada a autoridade daqueles que a enunciam, mas deve ser objeto de verificação, comprovação, crítica por qualquer um que esteja disposto a testá-la, desafiá-la.
Quais os desafios epistemológicos que a nova cultura científica tem de suplantar para fazer valer a esperança de um mundo de bem-estar e harmonia promovido pela ratio científica? Algo realmente fundamental foi confrontar a idéia de que a ciência deveria se dedicar a contemplação do mundo e em seu lugar oferecer o conhecimento útil como valor cultural central. No Novum Organum, salvo lapso de memória, Bacon afirma que é necessário abandonar o blá-blá-blá diletante dos filósofos medievais, sua busca pela essência do mundo, pela pergunta que busca o “quê” das coisas, e abraçar a idéia de um conhecimento útil, claro, que se ocupe em descobrir o “como” das coisas. Obrigar a natureza a confessar os segredos, ele diz, para transmiti-los e utilizá-los em benefício de toda a humanidade. Nas primeiras páginas do Novum Organum, por exemplo, lemos uma passagem que ilustra o que viria a ser essa nova forma de conhecimento:
Nosso método, contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrin do e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que também divisaram os que tanto concederam à dialética. Tornaram também manifesta a necessidade de escoras para o intelecto, pois colocaram sob suspeita o seu processo natural e o seu movimento espontâneo. Mas tal remédio vinha tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente ocupada pelos usos do convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais vã idolatria. Pois a dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em nada modificando o andamento das coisas, mais serviu para firmar os e rros que descerrar a verdade. Resta, como única salvação, reempreender-se inteiramente a cura da mente. E, nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma, mas permanentemente regulada, como que por mecanis mos. Se os homens tivessem empreendido os trabalhos mecânicos unicamente com as mãos, sem o arrimo e a força dos instrumentos, do mesmo modo que sem vacilação atacaram as empresas do intelecto, com quase apenas as forças nativas da mente, por certo muito pouco se teria alcançado, ainda que dispusessem para o seu labor de seus extremos recursos.
A própria clareza de enunciação que esse tipo de ciência requer e promove contradiz o postulado medieval de que o saber não deve ser aberto a qualquer um, mas apenas para os iniciados. O esoterismo do saber medieval, por outro lado, resulta no fato de que a transmissão de conhecimento se dá a partir de uma ritualística limitada para poucos: a verdade é transmitida através da comunicação direta entre o mestre e o discípulo. É impossível recusar, hoje que o conhecimento se transformou em mercadoria fundamental, essa postulação da ciência moderna: abrir suas portas para que o exercício crítico seja ao mesmo tempo esclarecedor e capaz de fomentar o desenvolvimento humano.
Essa idéia de desenvolvimento, obviamente, está intimamente ligada à idéia de produção de utilidades – o que, evidentemente, representa um ponto de estrangulamento claro ao exercício crítico. Nos séculos XVII e XVIII, entretanto, essa circunscrição do campo de validade do conhecimento significava muito claramente: a defesa de uma ética do trabalho, uma relação de complementaridade entre ciência e técnica. Ora, aqui também percebemos uma transformação drástica: a técnica, e os técnicos, engenheiros, artesãos, passam a ser considerados como elementos fundamentais da produção de conhecimentos e de utilidades. Uma ética do fazer está em curso.
A crença na existência de um saber secreto, por outro lado, teve força considerável durante muitos séculos na cultura européia. A natureza, percebida a partir dessa cultura seria uma realidade total, com uma alma própria. Todas as coisas que compõem esse mundo natural possuem elementos ocultos que as ligam ao todo, sendo assim impregnadas pelo divino. O homem, enquanto espelho do universo, é capaz de entender essas correspondências secretas. Mas só uma categoria de homens é capaz de penetrar nesse sistema complexo de correspondências, pois esse mundo mágico não se abre facilmente. É essa cosmologia que dá as bases para a distinção entre os sábios e a massa dos incultos, e ela também que legitima a constituição de uma linguagem cujo hermetismo seria derivado da complexidade dos fenômenos que descreve. Seu fechamento, por sua vez, realiza a função de indicar aqueles que são capazes de alcançar as verdades, pois só quem as compreende apesar de tal linguagem pertence à classe dos eleitos. Como esta forma de perceber o saber se haveria com a invenção da imprensa?
(continua)
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
domingo, 9 de agosto de 2009
O que é a Tecnologia de Informação e Comunicação e por que precisamos apropriá-la? Heidegger e o computador
Jonatas Ferreira
(O texto abaixo corresponde à Introdução de um artigo mais amplo)
'O que importa não é o que escolhemos, mas “aquilo sobre cuja base escolhemos”'(DREYFUS citando Heiddegger, 1993, p. 296).
Introdução
Em março de 2009, o Comitê Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano anterior, isto é, em 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos avançando na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs) , embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados. i. “O custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à Internet nos domicílios”; ii. “a falta de disponibilidade de Internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; iii. a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à Internet. A diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à Internet era de 4 p.p. em 2005 e passou para 8 p.p. Em 2008”; iv. o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; v. a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da Internet”; vi. lanhouses ainda são a única possibilidade de acesso para uma parte considerável da população (pobre) brasileira – o que significa: paga mais por acesso à Internet quem menos pode pagar2. Além de tudo isso, nossa conexão continua bastante lenta o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma largura de banda mais robusta.
Esse quadro nos ajuda sem dúvida a traçar em nosso país os contornos mais gerais daquilo que se convencionou chamar de exclusão digital e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento. Evidentemente, esse panorama requer uma análise bem mais ampla das políticas governamentais nesse campo, do modo como os estados da federação vem assumindo os compromissos da Federação no que diz respeito ao ingresso de largas parcelas da população na Sociedade da Informação, do modo como entidades da sociedade civil, organizações não-governamentais têm se dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que pese a necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital em nosso país, e em particular nas regiões e parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (cf WARSCHAUER, 2006). A desigualdade nesse, como em outros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (MACIEL E ALBAGLI, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos ter uma idéia mais aprofundada do que viria a ser inclusão digital, ou, mais propriamente, daquilo que precisamos identificar como questão política que diz respeito à democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que exatamente garantiria a democratização das tecnologias de informação e comunicação em nossa sociedade? A resposta parece óbvia, mas não é.
Primeiro, a questão da democracia não pode ser reduzida à questão da inclusão. Incluir significa tirar alguém de um lugar de falta e despossessão para outro de plenitude e cidadania. Em um ensaio dedicado a essa questão, tivemos a oportunidade de propor uma crítica ao conceito de inclusão digital a partir da constatação de seu débito para com as noções de justiça distributiva (que vem orientando o tratamento da questão da desigualdade no mundo moderno ao menos desde Adam Smith) e de informação (tal qual esse conceito é definido pela teoria da informação a partir da década de 1940). Naquele texto, afirmávamos:
A redução dos conceitos de informação e de comunicação a uma dimensão francamente performativa, tal como encontramos nas ciências da informação desde seus primórdios [...] apresenta uma considerável “afinidade eletiva” com a idéia de inclusão digital. Nos dois casos, trata-se de garantir o fluxo seguro e veloz de signos sem que as questões do sentido das mensagens, de sua apropriação, da orientação da arquitetura que permite este fluxo, constituam uma preocupação primeira – ou cuja resposta seja democraticamente produzida. A eficiência no transporte de informação é nos dois casos um princípio que se impõe às demais preocupações. Acreditamos que a idéia de inclusão digital não possibilita uma compreensão crítica desse movimento técnico e de seu sentido político (FERREIRA e ROCHA, 2009a).
Já ali falávamos da necessidade de apropriar as TICs como condição fundamental de sua democratização. Neste contexto, democratizar significa muito claramente propiciar as condições para que uma tecnologia aberta com respeito às suas finalidades – essa parece ser a marca das tecnologias digitais - possa levar a um exercício radical de reflexão acerca do mundo em que vivemos e do mundo que desejamos. Um limite importante da apropriação é se ela permite ou não essa reflexão. Por isso mesmo, uma questão inevitável para aqueles que se comprometem com tal projeto político há de ser: o que são a tecnologias de informação e comunicação contemporâneas para que desejemos democratizá-las, para que possamos pensar em sua apropriação como um postulado ético e político da contemporaneidade? Sem que uma resposta a essa questão seja pressuposta em nossos programas de democratização das TICs, como podemos verdadeiramente falar de apropriação? Se entendemos que a pergunta acima é fundamental, sua resposta não é de modo algum fácil. Tentar respondê-la implica que nosso compromisso com uma democracia radical demanda reflexão sobre nossos envolvimentos tecnológicos dificilmente compatível com a necessidade de respostas rápidas, com a busca de performance a todo custo, com a inovação como princípio. Em alguma medida, esboçamos uma resposta à questão da apropriação tecnológica quando nos debruçamos, no artigo mencionado acima, em analisar a transformação nas noções de informação e comunicação produzidas pela teoria da informação. O artigo que se segue dá continuidade àquele esforço procurando aprofundá-lo a partir do pensamento heideggeriano, particularmente, por intermédio de seus textos da década de 1960 acerca da linguagem cibernética e dos grandes perigos que ela representava.
Embora minha conclusão acerca das questões que Heidegger propõe seja bastante particular, acredito que a reflexão heideggeriana é ainda crucial. E isso por uma razão muito simples. É importante que nos perguntemos exatamente o quê desejamos democratizar e o quê implicaria essa democratização. A amplitude desse tipo de indagação propicia em geral um confronto com certos pressupostos culturais que são tomados como dados pelo paradigma da justiça distributiva. Para Martin Heidegger, o niilismo é o grande fantasma que ronda a civilização tecnológica; a aceleração tecnológica, a excitação constante, seriam ameaças que atuam de modo a nos ocultar o fato de que nada mais tem mesmo sentido ou merece existir. Ao nos equiparmos para ter tudo a nossa disposição, tudo perdemos. Assim, é preciso que nos dediquemos a pensar a ameaça da aceleração pela aceleração, da inovação que se justificaria pelo simples fato de inovar.
Segundo a perspectiva que tomo nesse ensaio, por outro lado, é na radicalização do processo de apropriação,na reflexão que ela implica, que encontraremos uma alternativa para a restrição de nossas possibilidades existenciais e políticas que o niilismo acarreta. Acredito que essa reflexão possa constituir um momento decisivo no contexto de um processo maior em que assumiríamos nosso destino de modo radicalmente democrático. Pois em qualquer âmbito no qual a democracia esteja realmente em questão, a possibilidade de que o mundo venha a ser radicalmente distinto daquele em que existimos também estará em jogo.
Para sermos capazes de fazer tal dissociação, Heidegger mantém, devemos repensar a história do ser no Ocidente. Então veremos que embora um entendimento tecnológico do ser seja nosso destino [destiny], não é nossa sina [fate]. Isto é, embora nosso entendimento das coisas e de nós mesmos como recursos a serem ordenados, melhorados, e usados eficientemente venha sendo construído desde Platão, nós não estamos presos a esse entendimento (DREYFUS, 1993, p. 307).
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
"Deixe sua mensagem após o sinal": telefonia celular e novas formas de sociabilidade (final)
Jonatas Ferreira e Marcia Longhi
Se, como vimos, a telefonia móvel invade e confunde espaços de intimidade, além de fazer penetrar o mais privado no espaço público, por outro lado, o celular é também um instrumento que suscita a idéia de individualização, de personalização. Cada usuário desse tipo de serviço possui o seu aparelho, com um número exclusivo, que não precisa compartilhar com familiares, colegas de trabalho ou amigos. Com a telefonia fixa, com o rádio, telégrafo, sinal de fumaça e mesmo o PC não é necessariamente assim. Se um dos segredos da comunicação digital foi o processo de criptografia que permitiu que uma mensagem trafegasse em alta velocidade e fosse aberta apenas por seu destinatário, é possível dizer que essa comunicação de um(a) para um(a) se realiza plenamente com a telefonia móvel – mais radicalmente que o PC. O uso doméstico dos PCs é em geral familiar.
Muitos usuários desse tipo de serviço têm mais de um aparelho, podendo selecionar as chamadas por categoria – família, namorada, amigos, trabalho etc. Além disso, opções como toque personalizado, capinhas com desenhos etc., reforçam a tendência à 'customização' de produtos e serviços que impulsiona o consumo nas sociedades contemporâneas. A sociedade de consumo nos esquarteja, pulveriza, decompõe, sempre acenando com a idéia de que sejamos únicos, especiais, clientes selecionados, um time muito seleto, peças raras.
Assim, salvo engano, cada um sabe quando o “seu” celular toca. Claro que quem está por perto também sabe e, através desse toque, sabe algo mais a respeito de seu proprietário: gosto musical, time de futebol pelo qual torce, música favorita. Isso me remete a uma cena que presenciei há algum tempo atrás. Estava em uma palestra, na universidade, proferida por uma professora de grande renome. A palestrante era uma senhora, em torno dos sessenta anos, muito elegante em sua forma de se expressar e de se vestir. Inesperadamente, uma música bastante popular começa a tocar criando um certo constrangimento: a música em questão era um hit de Adilson Ramos. Constrangimento – mas por quê?! Eu gosto - que se transformou em gargalhada quando a palestrante abre precipitadamente a bolsa e desliga o próprio celular. Não se trata de iniciar aqui uma discussão de gosto, claro, mas de perceber as duas tendências mencionadas neste texto em claro conflito aqui: a customização de uma ferramenta universal como parte de uma tendência da sociedade de consumo e a exposição daquilo que seria em princípio íntimo num espaço privado.
A esse respeito, mencionaria o Twiter como última forma de uso dos celulares. Trata-se, como sabemos, de “uma rede social e servidor para microblogging que permite aos usuários que enviem e leiam atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, conhecidos como "tweets"), através da própria Web ou por SMS”, segundo a definição da Wikipédia. Esse uso permite acompanhar, mais ou menos em tempo real, o que está acontecendo na vida de pessoas, personalidades, que você eventualmente acompanhe. É possível dizer que a “espetacularização da vida íntima” é uma tendência tecnológica e cultural da contemporaneidade, com seus reality shows, blogs, fotologs etc. É possível pensar aqui na efetivação de um tipo de controle social em que não somos reprimido(a)s, constrangido(a)s a fazer algo que fere nosso desejo, mas que o controle se instala como desejo. Essas máquinas nos desejam, para fazer uma paráfrase do texto deleuzeano.
Por outro lado, não devemos esquecer que nenhuma tecnologia determina o mundo; artefatos humanos, os instrumentos compartilham nossas ambigüidades mais profundas. Por isso mesmo, é possível sempre reconfigurar-lhes o uso. Seria importante estudar os diversos tipos de redes sociais que se configuram através do twiter. Esse, no entanto, é um esforço maior do que seria adequado a um texto como esse.
sábado, 1 de agosto de 2009
"Deixe sua mensagem após o sinal": telefonia celular e novas formas de sociabilidade (parte 2)
Jonatas Ferreira e Marcia Longhi
Essa 'acessibilidade total' impõe criarmos regras de etiqueta que nos permitam administrar de forma minimamente competente o esborramento das fronteiras entre vida pública e vida privada que tal acessibilidade passa a acarretar. Saber o que é íntimo, pessoal, subjetivo, e o que é público e objetivo fez parte da boa educação para a modernidade – educação afetiva, profissional, existencial. Homens e mulheres modernos foram educados para não ter grandes dúvidas no que diz respeito ao que seria conveniente em um e outro espaços. Porém, as tecnologias de informação e comunicação como um todo, e a telefonia celular, de modo particular, têm nos confrontado com situações que nos fazem refletir sobre a fragilidade desta delimitação. Inúmeros exemplos poderiam ser dados e certamente alguns deles lhe pareceriam familiar. Para citar um, conto o que presenciei há alguns dias: assistia pela televisão um programa de entrevistas pouco convencional. De repente, ouve-se o som de um celular, o apresentador prontamente atende e vai logo dizendo “oi amor...estou no ar...daqui a pouco eu ligo para você...”.
Algumas destas regras já fazem parte de manuais ‘de disciplinamento de atividades coletivas’: o aluno que vai fazer uma prova deve deixar seu celular desligado, ou no modo silencioso; no cinema, antes que o filme inicie, somos lembrados – muitas vezes de forma original - a desligar nosso aparelho celular (claro que sempre há os ‘transgressores’ e no meio do filme, vira e mexe, ouvimos um sussurro “estou no cinema...” - mas as transgressões também fazem parte da efetivação da regra, como nos lembram Schmitt, Benjamin e tantos outros); uma lei foi criada para coibir o uso do celular enquanto dirigimos – mas, se você conseguir manter as duas mãos no volante, ainda pode, pela nossa legislação, mandar mensagens de texto através dele (não o faça!). Enfim, trata-se de situações que há vinte anos atrás não eram nem imaginadas e nem presentes em determinações legais.
A telefonia móvel também significou a possibilidade de um maior controle da vida dos indivíduos. Um profissional pode ser localizado a qualquer hora de seu dia e em qualquer local – caso desligue seu telefone por alguma conveniência, ouvirá posteriormente alguma questão acerca do motivo pelo qual esteve incomunicável ou terá de responder a chamadas não atendidas. E algo semelhante pode ser dito acerca das relações familiares. É inegável que o celular dá uma certa sensação de controle aos pais e mães de filhos adolescentes, pois possibilita que eles sejam localizados rapidamente, estejam onde estiverem. Ao menos, isso é o que muitos de nós imaginamos. Esse suposto controle não quer dizer maior tranqüilidade, uma vez que a possibilidade de seu exercício traz sempre consigo novas e maiores ansiedades acerca de sua eficácia. Em todo caso, diante da violência urbana atual, esta possibilidade representa algo que em geral consideramos desejável. E é claro que transformar o telefone celular em mecanismo de GPS (global positioning System) pode ser associado ao desejo de cuidar.
A delimitação entre o cuidado e o controle, todavia, mostra-se difícil de ser realizada. Os jovens nem sempre querem ser localizados e isto não é, a priori, negativo. Em nossa sociedade, autonomia e independência são comportamentos estimulados e indicativos de amadurecimento. E onde existe dispositivos de poder, forjam-se inevitavelmente mecanismos de contra-poder. Alguns exemplos. Manter o celular desligado, e depois dizer que estava descarregado; dizer que esqueceu o telefone no modo silencioso; deixar o celular com o amigo, que ficou na escola assistindo a aula a que você deveria assistir, para evitar o monitoramento - de celulares que dispõem de mecanismo de localização.
Muitas estratégias são criadas para burlar a possibilidade de controle e sair, livremente, para pequenas ou grandes transgressões, mas quem, hoje, pode deixar de incluir o celular quando o tema é conflito de gerações? Se falamos do controle coercivo por parte da sociedade e moral, nas questões disciplinadoras, não podemos, na contemporaneidade, deixar de fora o controle tecnológico, entre eles o aparelho celular. O curioso é que quando se fala hoje de disciplina, controle, mobilizando quase sempre Foucault, Deleuze e alguns teóricos da Escola de Frankfurt, nunca se dá devida atenção a esse primo pobre das tecnologias de informação e comunicação – sempre estamos mais dispostos a falar de câmaras de vigilância, satélites e mesmo a Internet. Em todo caso, chamar a telefonia móvel de primo pobre das TICs é só força de expressão diante da tendência à convergência tecnológica que hoje percebemos com muita clareza. O celular já não é apenas um telefone, mas um espaço onde podemos jogar, uma máquina fotográfica, uma agenda, um notebook etc.
(Continua)