O artigo abaixo é um resumo de minha monografia de conclusão de curso, defendida no Departamento de Ciências Sociais da UFPE em dezembro de 2009, sob a orientação de Cynthia Hamlin.
Stéphanie Gomes
É notável a presença de mulheres e o uso de uma linguagem humorística como elemento persuasivo em publicidades de cerveja, que tem nos homens seu público alvo. Diversos publicitários e teóricos da comunicação (cf. Wasserman), consideram que o humor traz apelos agradáveis ao espectador, que diante do sentimento de prazer e relaxamento, há a criação de um vínculo afetivo positivo entre o produto e o potencial cliente. Mas não existe consenso na eficácia do uso do humor como elemento persuasivo. Sternthal e Craig (apud Wasserman, 2009) acreditam que as mensagens cômicas atraem a atenção do público, entretanto podem dificultar a interpretação do conteúdo que se quer passar. Além disso, nenhuma pesquisa comprovou maior convencimento por parte de mensagens humorísticas em detrimento das “sérias”. Apesar destas incertezas, o humor é utilizado na expectativa de gerar o prazer no receptor de sua mensagem, que, uma vez agraciado, buscará recompensar o produtor de seu “bem-estar”.
Independentemente do tipo de linguagem, sabe-se que as publicidades produzem discursos que colaboram para o estabelecimento, sustentação ou mudança de valores nas interações sociais. Diante disso, este trabalho teve como foco as seguintes questões: como a linguagem humorística é utilizada na publicidade televisiva de cerveja no que tange à representação de homens e mulheres e quais as consequências desse uso para as desigualdades de gênero?
A fim de tentar respondê-las, efetuei uma análise de conteúdo de 129 propagandas de cerveja, datadas a partir de 1996. Esta análise me possibilitou identificar alguns padrões gerais relativos à forma como homens e mulheres eram representados com base em indicadores retirados das principais teorias de humor e de gênero. Posteriormente, selecionei 5 publicidades que considerei mais representativas do grupo em questão e as submeti à análise de um grupo focal para tentar compreender a recepção dos espectadores em relação aos papéis de gênero e ao que consideravam como engraçado.
De acordo com as principais teorias de humor e de gênero utilizadas, minha hipótese principal era a de que as propagandas de cerveja reproduziam a posição de subordinação das mulheres por meio de três mecanismos principais: em primeiro lugar, ao retratá-las como simples objetos de desejo masculino, especialmente devido ao foco no corpo e na sexualidade femininas; em segundo lugar, ao transformar as mulheres em caricaturas risíveis; por fim, a linguagem humorística tornava esta mensagem mais fácil de ser aceita.
Surpreendentemente, a análise do material empírico demonstrou que, ao contrário do que minhas teorias levavam a crer, as mulheres não constituíam o alvo principal do humor, mas sim os homens que não se adequavam às concepções dominantes de masculinidade. Por outro lado, do ponto de vista da representação da feminilidade, o humor tornava a reificação das mulheres mais fácil de ser digerida. Em outras palavras, embora não se deboche das mulheres, o humor ajuda a reafirmar os papéis de gênero e a amaciar o conteúdo do que é proferido. A seguir, farei uma breve exposição das teorias que me levaram à formulação de minha hipótese e à análise do material empírico selecionado.
O humor neste trabalho é tratado como uma variável sociológica, sendo compreendido como a interpretação de certos fenômenos como cômicos. Tal interpretação só é possível através da compreensão de valores sociais. Imerso nos contextos sociais, o humor pode operar como um mecanismo muito influente nos conflitos, retraduzindo em sua linguagem particular as desigualdades existentes na sociedade. Por vezes, as piadas – conscientemente ou não - procuram gerar ou reforçar subordinação de um grupo ou indivíduo em relação a outro (Rappoport, 2005).
Entender a forma de atuação do humor em relação ao gênero nas propagandas televisivas de cerveja mostra-se pertinente ao revelar as representações do masculino e do feminino que, como sabemos, são conceitos relacionais, definidos um em função do outro. Como diz Vivian Gornik a respeito dos estudos de propaganda de Goffman, “as propagandas nos mostram não necessariamente de que maneira nós realmente nos comportamos como homens e mulheres, mas de que maneira achamos que homens e mulheres se comportam” (tradução livre, 1979, p.vii).
Ao se pensar sobre homens e mulheres, diversos atributos designam o que é “próprio” a cada um. Em geral, acredita-se que esta atribuição de características é natural, pois seria inato ao homem comportar-se, por exemplo, de forma mais agressiva, enquanto às mulheres tenderiam à passividade e à compreensão. Na verdade, a realidade é constituída pela percepção de atores sociais. Neste sentido, as diferenças evidenciadas entre homens e mulheres são concepções criadas coletivamente a partir das diferenças anatômicas percebida entre os sexos. Tais concepções organizam as relações sociais, formando gêneros opostos, complementares e desiguais (cf. Scott, 1995; Bourdieu, 2005).
A simbologia que separa o feminino do masculino estabelece relações de poder entre os indivíduos (cf. Bourdieu, 2005). O falo foi constituído como símbolo da virilidade, sendo o ponto de honra masculino. A virilidade é associada, em primeiro plano, à potência sexual, e, de forma mais geral, a uma força física e moral, ao “vigor masculino”. Por outro lado, as honras femininas são deficientes de poder: cabe às mulheres serem virgens, passivas, delicadas e fiéis. Estas características são construídas a partir de perspectivas e práticas androcêntricas, gerando uma hierarquia simbólica, onde as mulheres são desvalorizadas. Os indivíduos, inconscientemente, apossam-se desta classificação tornando-a parte de si. A construção simbólica opera tanto do ponto de vista das representações - ou seja, do discurso – quanto está entranhada no corpo, segundo Bourdieu (Ibid). A visão androcêntrica se completa e se realiza na prática, através dos corpos, transformando-os de maneira duradoura. Esta imbricação de um conjunto de mecanismos corporais a esquemas mentais, ocorrida ao longo do processo de socialização, é o conceito bourdiesiano de habitus.
As categorias sexuais construídas são levadas a cabo por homens e mulheres, mesmo que não beneficiem as últimas. Bourdieu (Ibid) afirma que a dominação masculina está difusa na objetividade das estruturas sociais, assim como, no habitus, de forma que há uma forte pressão para que qualquer indivíduo introduza tais valores, reproduzindo-os. A desigualdade de gênero é sustentada por ciclos de socialização em várias instituições sociais, como a família, a Igreja, a Escola, o Estado e os Meios de Comunicação de Massa, notadamente, as publicidades. Ademais, a visão androcêntrica configura-se na sociedade como se fosse neutra e natural, não havendo a necessidade de justificá-la. À adesão das pessoas dominadas dos esquemas práticos e mentais e práticos que as reprimem, Bourdieu (Ibid) chama de violência simbólica.
Uma das formas que a dominação masculina é exercida é através da imputação de um padrão de corpo feminino. Para Bourdieu (Ibid), as mulheres são seres percebidos por um olhar marcado por categorias masculinas, e o corpo é um dos elementos mais visados na identidade feminina. Constantemente, o corpo feminino é significado a partir das percepções alheias, que são incentivadas a cobrarem deste corpo vários atributos, vistos como naturais, como certo volume, peso, porte, maneiras de andar, sentar, falar. É verdade que todos os corpos se submetem a percepções e julgamentos alheios, entretanto isto ocorre com maior ou menor intensidade segundo, sobretudo, os sexos. E neste caso, o corpo feminino opera como um objeto estético.
“Tudo, na gênese do habitus feminino e nas condições sociais de sua realização, concorre para fazer da experiência feminina do corpo o limite da experiência universal do corpo-para-o-outro, incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos outros” (Bourdieu, 2005, p.79).
Comparando a experiência feminina com a masculina, o autor continua:
“Enquanto que, para os homens, a aparência e os trajes tendem a apagar o corpo em proveito de signos sociais de posição social (roupas, ornamentos, uniformes etc), nas mulheres, eles tendem a exaltá-lo e a dele fazer uma linguagem de sedução” (Bourdieu, 2005, p.118).
O corpo feminino apresenta-se de forma onipresente desde há muito tempo na sociedade ocidental: ele está no discurso de poetas, médicos e políticos, povoam quadros, esculturas, cartazes, outdoors, etc (cf. Perrot, 2003). Mas este corpo, afirma Michelle Perrot, “continua opaco. Objeto do olhar e do desejo, fala-se dele. Mas ele se cala” (2003, p.13). Nas publicidades de cerveja, os corpos femininos são apresentados de forma erótica, e o problema parece recair sob o fato de que a linguagem daquele corpo apenas o objetifica. Nas insinuações através da pouca roupa e dos gestos, protesta Wolf (1992, p.179):
“em vez de vermos imagens do desejo feminino, vemos simulações com manequins vivas, forçadas a contorções e caretas, imobilizadas e em posições desconfortáveis sob holofotes, quadros profissionais que revelam pouco sobre a sexualidade feminina”.
O corpo masculino não tende a ser explorado desta forma pela publicidade. Pouco se apela para a nudez masculina para vender um produto, principalmente se este produto se destina às mulheres. Existe um contraste entre a interpretação da nudez feminina e masculina. Esta última é vista como algo a não ser difundido, enquanto a feminina é banalizada, é fonte de entretenimento aos homens. Esta discrepância entre a exposição dos corpos femininos e masculinos existe porque não se busca objetificar o corpo do homem. A performance feminina nas publicidades não se preocupa com o seu próprio prazer, mas no agrado de outrem. O que as mulheres aprendem desde cedo, segundo Wolf, é o desejo de ser desejada. O corpo que é erotizado tanto por homens quanto por mulheres é basicamente o feminino. E o desejo que é relevante para ambos é apenas o masculino. É o desejo dele que a motiva. E para a sociedade atual, o desejo está ligado diretamente à concepção de beleza. É preciso que aquele corpo exposto atenda a requisitos estabelecidos socialmente. Qual o papel do humor nisso tudo?
A partir da modernidade, o humor significa “qualquer mensagem – expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso” (Bremmer e Roodenburg, 2000, p.13). Acredita-se que a origem desta nova acepção de humor tenha partido da Inglaterra, quando “humour” é empregado no sentido de facécia, comicidade. Neste trabalho interessa a concepção moderna de humor, que não se aplica apenas ao mundo moderno. Além disso, é importante estabelecer que o humor é compreendido como uma variável sociológica, pois ele opera dentro de contextos com significados específicos, a partir de práticas e valores de um grupo. O humor está baseado em significados sócio-culturais, estes percebidos como a qualidade na interação humana que capacita as pessoas a entenderem o comportamento alheio cognitiva e emocionalmente. Neste sentido, o humor pode ser uma chave para compreender os valores, crenças e atitudes de um grupo social.
Faz-se necessário enfatizar que, ao contrário do riso, o humor não é uma reação espontânea do corpo aos fenômenos do mundo, mas tem um elemento cognitivo fundamental. Ri-se de determinados elementos que são interpretados como cômicos (cf. Berger, 1997). Assim, os objetos do riso, o discurso cômico, os produtores do humor, tudo isso varia de acordo com o contexto histórico, social e cultural. O humor pode ser visto com uma subversão ou como uma reafirmação de significados institucionalizados, que podem ser alterados de diversas formas. Neste último caso, os significados existentes, que seguem uma padronização esperada, são refrescados, intensificados ou consolidados.
A polissemia da piada é retratada na interpretação de Kupermann (2005) sobre um posicionamento de Freud. Sendo forçado pela Gestapo a assinar um documento dizendo que não fora mal tratado, Freud, além da assinatura, escreveu: "Posso recomendar altamente a Gestapo a todos" (Freud apud Kupermann, 2005, p.21). Para sorte de Freud, os nazistas não compreenderam sua ironia, mas, se se conhecem minimamente seus métodos, pode-se supor que o psicanalista, na verdade, estava dizendo exatamente o contrário do que sentia. Pensar certos elementos como engraçados ou não só é possível a partir da compreensão da lógica do mundo da vida. Para Berger (Ibid) a causa do riso é completamente dependente das estruturas de significado estabelecidas.
Muitas vezes, o humor é utilizado como se desresponsabilizasse o locutor a respeito do conteúdo proferido, como se por ser um discurso visto como “não-sério”, ou fora dos padrões, não veiculasse em sua mensagem valores. Mas a mesma piada pode ser engraçada para alguns e ofensiva para outros. Isto leva ao questionamento da permissividade acerca do fazer piadas. Na sociedade atual, podem-se ver, e muitas, ofensas através de brincadeiras. Freqüentemente, tais insultos só podem ser proferidos legitimamente enquanto estiverem permeados por ambigüidades.
Para entender o humor contido nas campanhas publicitárias de cerveja é vital a concepção de que são os atores sociais que definem aquela situação como engraçada, embora a partir de um estoque de conhecimento mais geral, para entender quais aspectos são considerados cômicos e qual o grau de legitimidade de que eles gozam. É possível que diante do mesmo fenômeno, duas pessoas interpretem-no de formas diferentes. Uma pessoa acha-o engraçado, enquanto outra toma-o como ofensivo. Para que haja esta diferença, os valores de cada pessoa são diferentes, e provavelmente, elas advêm de grupos sociais distintos.
Considerando que o riso é considerado a expressão principal da compreensão de um fato como humorístico, poderíamos passar para um nível de abstração mais elevado e perguntarmos: o que nos faz rir? Que situações e elementos evocam o riso? São três as teorias gerais do riso: teoria da incongruência, teoria da superioridade e teoria do alívio. Vários pensadores podem ser alocados numa dessas teorias, contudo, é freqüente que um autor combine concepções de mais de uma delas, qualificando as teorias mais como paradigmas do que teorias no sentido estrito.
De acordo com a primeira teoria, a concepção sociológica de humor deriva da noção filosófica mais geral de incongruência. Nesta visão, o riso é uma reação intelectual para algo inesperado, sem lógica ou inapropriado. A visão sociológica parte do fato de que se vive numa sociedade ordenada, onde atuam certos padrões, e aí o objeto do riso são as experiências que fogem às expectativas para aquela situação, ou seja, ri-se da incoerência entre valores e conceitos gerais e o que acontece especificamente, quebrando as convenções. Nem toda incongruência detectada gera o riso. A diferença desta teoria em relação à concepção sociológica mais geral de Berger (1997) ou Zijderveld (1983) é propor uma explicação da razão porque a incongruência gera o riso.
Dois autores se destacam dentro dessa teoria: Kant e Schopenhauer. Ambos definem o motivo pelo qual, de uma perspectiva filosófica (epistemológica) a incongruência gera o riso. Para Kant, o riso é “uma afecção proveniente da transformação súbita de uma expectativa tensionada em nada” (Kant apud Alberti, 1999, p.162). O riso, portanto, surge de uma incoerência entre aquilo que se espera e o nada que ocorreria efetivamente, o riso vem da expectativa frustrada.
Schopenhauer desenvolve essa ideia a partir de sua distinção entre dois tipos de representação do mundo: a intuitiva e a abstrata. A primeira corresponde ao entendimento através das manifestações do mundo. É uma representação que ocorre a partir da experiência, ou seja, realizada através do conhecimento indutivo. De acordo com Schopenhauer, apreende-se nessa representação a realidade. Já a representação abstrata remete ao conhecimento do mundo através da razão, alcançando a verdade. Sua função é a formação de conceitos. De acordo com Verena Alberti (1999), Schopenhauer privilegia a representação intuitiva em relação à abstrata, pois “só existe conhecimento novo se, primeiro, concebemos diretamente as coisas e as novas relações, para em seguida transpor esse conhecimento concreto em conceitos” (Alberti, 1999, p.173). A vantagem do pensamento abstrato é difundir uma maneira de pensar. Neste contexto, Schopenhauer define o riso como resultante da incongruência entre conhecimento abstrato e intuitivo. E Schopenhauer ainda diz que tal riso é prazeroso, pois percebe-se que a razão não é capaz de abarcar toda a diversidade e nuanças do concreto (cf. Alberti, ibid).
Para ambos os autores, a incongruência e o inesperado constituem um elemento padrão do que provoca o riso.
Diferentemente da posição defendida por Kant e por Schopenhauer, a teoria da superioridade defende que o riso é a expressão do sentimento de superioridade que um indivíduo sente em relação a outro (Morreal, 1983). Esta teoria pressupõe a construção de uma auto-imagem a partir da comparação de si mesmo com outros. Assim, necessariamente se ri de alguém, e não de algum evento ou objeto material. Os objetos mais freqüentes do riso nesta teoria são pessoas que apresentam algum defeito, se encontram em posição de desvantagem ou sofrem algum pequeno acidente. Neste sentido, o riso serve como um forte mecanismo de controle social, pois ninguém quer ser alvo dele e, portanto, tentam evitá-lo se comportando em consonância com os padrões esperados.
Há várias concepções dentro desta lógica da superioridade sobre o riso. A formulação mais antiga sobre o riso e o risível estaria, afirma Alberti (1999) em Platão. O riso para Platão é um prazer falso, pois impuro, misturando prazer e dor. Os objetos do riso são os ignorantes, ou seja, aqueles que não conhecem a si mesmo. Tal desconhecimento leva-os a achar que são melhores do que realmente seriam e, portanto, eles são alvos do riso. Entretanto não se ri de todos os ignorantes, apenas dos fracos. Aqueles ignorantes considerados fortes são temidos e odiados. Platão condena moralmente o sujeito do riso, pois neste prazer impuro, a humanidade é afastada de sua sabedoria. A comédia, para Platão, é considerada uma arte menor, pois o que achamos “engraçado” é, na verdade, um sinal de nosso próprio desconhecimento.
Seguindo o raciocínio de Platão, Aristóteles também acredita que o riso é danoso ao indivíduo e à moral coletiva, pois se ri de outrem em seus aspectos vergonhosos, baixos, feios, ou que apresentem qualquer tipo de inferioridade (cf. Skinner, 2002; Alberti, 1999). Ele caracteriza a comédia como uma arte que representa, por meio de linguagem, ações baixas. Mas o cômico não abrange todo tipo de baixeza, ele é somente a parte do aspecto repulsivo que não causa dor, nem destruição. Aristóteles também aponta para a necessidade de um fator surpresa na comédia.
De acordo com Skinner (2002), Hobbes é um dos principais autores sobre a teoria do riso como expressão de um sentimento de superioridade. Hobbes acredita na existência de um riso não-ofensivo, que é provocado por defeitos abstraídos de pessoas. Este riso não se direciona a nenhum indivíduo especificamente, mas a características sociais que são desprezadas coletivamente. A teoria hobbesiana enfatiza que a novidade é uma característica importante para emergência do riso e a qualifica como: “uma compreensão súbita de alguma habilidade daquele que ri, [...] quando experimentamos a súbita intuição de nossa diferença e superioridade e fervilhamos de alegria.” (Hobbes apud Skinner, 2002, p.52). A concepção de Hobbes acompanha, segundo Skinner (Ibid), duas tendências: a do modelo clássico, que encara o riso como um sinal do sentimento de superioridade; e a dos renascentistas, na qual a admiração ou a surpresa são elementos também essenciais no riso. Hobbes condensa ambas as visões em sua teoria sobre o riso. Hobbes desaprova o riso ofensivo e afirma que aqueles que riem são os verdadeiros inferiores, pois quem tem o espírito elevado não tem a necessidade de rir. Este tipo de riso denota covardia e fraqueza de ânimo (cf. Skinner, 2002, Alberti, 1999).
Henry Bergson é outro autor que se ocupa do estudo do cômico. Em seu livro, O Riso (2007), Bergson busca identificar os processos de fabricação da comicidade. Desta forma, ele afirma obter informações sobre o trabalho da imaginação humana, particularmente, a imaginação social. Para Bergson (Ibid), a vida é um fluxo constante, sempre em progresso. Nesta leitura, o curso da vida é completamente dinâmico. Assim, a vida exige uma atenção constante, uma capacidade de flexibilização, de ajustar-se às situações, de modo que toda rigidez é encarada com desconfiança, sendo necessário eliminá-la. Cabe ao riso devolver este fluxo às situações. Assim, para Bergson, “a rigidez é a comicidade, enquanto o riso é o seu castigo” (ibid, p.15). O automatismo indica uma pobreza de espírito, uma falta de qualidade de vida; o riso vem então criticar esta rigidez, buscando dinamizar a vida.
A mecanização da vida é um desvio – ou seja, uma incongruência - do qual se ri para que haja o retorno aos padrões, ou seja, ao fluxo. Entretanto, não é o contraste em si entre o mecânico e o vivo que proporciona o riso, mas a necessidade de manter a ordem natural da vida. O mecanismo rígido opera como um intruso, ou seja, não é esperado, neste sentido, convém rir para que a vida retorne ao seu fluxo natural. Neste sentido, a teoria bergsoniana se afasta da tipologia do riso como incongruência.
De acordo com Bergson, existe inclusive essência do riso. Algo “contém” uma comicidade latente, que pode ou não ser apreciada, como as cerimônias. Estas são a rigidez destoando da flexibilidade da vida. Assim, basta apenas concentrar-se no lado cerimonioso destes eventos fortemente estruturados para deparar-se com a comicidade. É preciso ter em vista o fundo, e não a forma; a estrutura, ao invés do contexto.
Um pré-requisito importante para o riso, segundo Bergson, é a insensibilidade. Para ele, a comicidade só é possível em meio à indiferença, a um distanciamento. É possível rir de alguém próximo, mas, para tanto, é preciso suspender temporariamente a afeição direcionada àquela pessoa. Neste sentido, rir é um processo puramente cognitivo. “Para produzir o efeito pleno, a comicidade exige algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura” (Bergson, 2007, p.4). Um bom exemplo que ilustra a necessidade de apatia para emergência do riso é a distinção que Bergson traça entre duas representações de vício, em que uma tende a provocar o riso e a outra tende ao drama. O vício exposto como a falta de maleabilidade, trazido de fora, sem envolvimento com o personagem e o motivo pelo qual ele é viciado, desperta o riso. Já o vício dramático é incorporado no ator, que de objeto, passa a ser um sujeito, no sentido de quem possui subjetividade e provoca empatia. Na comédia o foco é o vício, o automatismo, ao passo que no drama o olhar recai sob o viciado. Assim, o riso transfigura a pessoa em coisa, pois é preciso despersonalizar os sujeitos para que se possa deles rir. Nesta explicação, Bergson aproxima-se mais da concepção do riso como superioridade, pois o efeito cômico se dá em meio à perda de empatia, o que pode ser interpretado como rir-se de alguém, no sentido de uma subordinação.
É fato que deformações, erros cometidos e pessoas em posição de desvantagem são muitas vezes objeto do riso na sociedade ocidental, mas qual o motivo deste tipo de riso? Seria porque os seres humanos estão naturalmente predispostos a rirem como forma de exaltação pessoal? É preciso pensar que nas sociedades ocidentais, aqueles considerados como inferiores estão dentro do escopo dos valores sociais daquilo que é passível de riso. Para os gregos, inclusive, o ridículo e o risível eram sinônimos (cf. Alberti, 1999). A sociedade elege certas características como importantes e valoriza-as; conseqüentemente, marginaliza outras. Com o tempo, valores como a beleza, o falar “corretamente” etc parecem ser a ordem natural mundana, pois foram se arraigando culturalmente. Uma vez incorporadas, tais maneiras de pensar, agir e se portar constituirão um novo habitus, ou uma “segunda natureza” dos indivíduos desta sociedade moderna (cf. Bourdieu, 1983). Neste sentido, os elementos dos quais se ri, seguindo a lógica da teoria da superioridade, são aqueles constituídos como marginais dentro da sociedade. Notadamente, nem todo inferior é automaticamente visualizado como risível, mas vários personagens que compõem o cômico nas ficções são figuras em posição de inferioridade, como o bêbado ou a pessoa que recebe uma torta na cara.
A teoria do alívio em geral percebe o riso como o descarrego de uma energia nervosa, perguntando-se “porque o riso toma a forma física que possui e qual a sua função biológica” (Morreal, 1983, p.20). Para Freud, o riso é um descarrego de energia nervosa que se dá por causa da repressão psicológica em relação ao sexo e à hostilidade (Morreal, 1983). Nestas situações de tensão, o ser humano guarda certa quantidade de energia psíquica, que não é necessária, e este excedente é descarregado no riso. As piadas são usadas para deixar entrar na consciência sentimentos e pensamentos proibidos pela sociedade, prossegue Freud (Ibid). O prazer na piada estaria na liberação de sentimentos sexuais ou de hostilidade que foram suprimidos, assim a piada satisfaz “impulsos naturais”. O prazer do riso seria então proporcional à energia que seria gasta no momento da repressão dos sentimentos ou pensamentos. Desta forma, através da piada atinge-se o que está inacessível. Seguindo a linha de raciocínio freudiana, os sujeitos que acham as piadas sobre sexo muito engraçadas é porque reprimem bastante seus desejos sexuais. O mesmo se aplica em relação a piadas sobre violência. Para Freud, o riso pode ser percebido tanto de uma perspectiva da agressão, quando dirigido ao outro por meio da piada; como a partir da criatividade e adaptação, quando é dirigido a si mesmo, o que caracteriza o humor propriamente dito.
A partir destas três grandes teorias, pode-se perceber a complexidade da definição do que gera o riso. Nenhuma das três teorias está errada, entretanto, nenhuma delas é exaustiva. O melhor é que elas não são incompatíveis entre si, cada uma lança um olhar pertinente sobre o riso. Para os fins deste trabalho, a teoria da superioridade e a da incongruência parecem ser as mais apropriadas. Busco compreender como um discurso humorístico permite que se (re)produza as desigualdades de gênero vigentes na sociedade brasileira atual. Neste sentido, a teoria da superioridade contempla o riso como escárnio, sobrepondo um ator a outro. Além disso, as piadas escondem, através da ambiguidade que contêm, suas agressões. É assim que ambas as teorias guiam a análise das propagandas televisivas de cerveja, que exporei a seguir.
(continua)