"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
A discussão da Ideia de democracia digital a partir da obra de Heidegger
Jonatas Ferreira
Introdução
Em Março de 2009, o Comité Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano de 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos a avançar na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs), embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados: i) “O custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à internet nos domicílios”; ii) “a falta de disponibilidade de internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; iii) a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à internet. A diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à internet era de 4 p.p. em 2005 e passou para 8 p.p. em 2008”; iv) o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; v) a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da internet”; vi) As lan houses ainda são a única possibilidade de acesso à internet para uma parte considerável da população (pobre) brasileira, o que significa pagar mais pelo acesso à internet quem menos pode pagar . Além de tudo isto, a velocidade de tranmissão continua lenta, o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma maior largura de banda.
Este quadro ajuda-nos sem dúvida a traçar os contornos mais gerais daquilo a que se convencionou chamar exclusão digital, e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento no Brasil. Evidentemente, este panorama requer uma análise ampla das políticas governamentais neste campo, do modo como os estados vêm assumindo os compromissos da Federação no que toca ao ingresso de largas parcelas da população na Sociedade da Informação, do modo como entidades da sociedade civil, organizações não-governamentais se têm dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que se refere à necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital, em particular nas regiões de maior pobreza, e entre as parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (Warschauer, 2003). A desigualdade nesse, como em outros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (Maciel e Albagli, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos refletir criticamente acerca do significado daquilo que se convencionou chamar inclusão digital, ou, mais propriamente, para que possamos tratar a questão política implicada na democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que e garantiria exactamente a democratização das tecnologias de informação e comunicação na sociedade brasileira? A resposta parece óbvia, mas não é.
(O artigo completo foi publicado na revista Análise Social. É só clicar para baixar o arquivo PDF)
domingo, 26 de setembro de 2010
As conversações interiores de um espectador imparcial
Por Frédéric Vandenberghe
Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor e traduzido por Cynthia Hamlin, sob intensa chantagem emocional.
Uma Teoria da Justiça, de John Rawls (1972) é, sem dúvida, um dos livros mais importantes da segunda metade do século XX. Embora cada página e nota de rodapé do livro tenha sido repetidamente submetida à análise e a comentários, ele é principalmente lido como uma versão liberal da escolha racional. Consequentemente, suas conexões com a teoria da simpatia de Adam Smith foram desconsideradas (embora sua filha, Anne Rawls (1988), uma microssocióloga que trabalhou com Garfinkel, tenha introduzido a noção de simpatia na ordem interacional de Goffman e na análise conversacional de Sacks). A teoria da justiça de Rawls é, de fato, uma teoria dos sentimentos morais. Seguindo os moralistas do iluminismo escocês, o filósofo estadunidense ressucitou o “observador simpatético” e introduziu o “juiz imparcial, porém benevolente” como um protagonista de uma sociedade liberal bem organizada. A ideia central da teoria da justiça é simples: uma sociedade seria justa se redistribuísse os direitos e deveres de tal forma que cada um de seus membros pudesse subscrever ao princípio de justiça (fairness) sem reservas, dado que ele garantiria os direitos e liberdades de todos, ao mesmo tempo que aceitaria as desigualdades sociais apenas na medida em que se compensasse os que têm menos vantagens.
A teoria da justiça é uma teoria forte do contrato social. O principal instrumento dessa teoria do contrato é a chamada “posição original”, em que cada um seria convidado a adotar a perspectiva de um espectador racional (reasonable), embora simpatético, antes de assinar o contrato que sela a aliança entre seus membros. Assim, cada um se imaginaria na posição do outro ou da outra e quando cada um/a tivesse adotado a perspectiva de todos os outros, um de cada vez, hipoteticamente, ele/a chegaria aos princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade bem-ordenada. Claro, esse mecanismo de identificação seriada de todos com cada um/a só pode funcionar sob a condição de que todo mundo faça uma abstração de sua situação pessoal e social a fim de reter apenas o que é comum a todos os seres humanos, sem distinção. Em outras palavras, ao se imaginar na situação do/a outro/a de forma a ascender à posição geral e superior do espectador imparcial, cada um/a é colocado/a sob o “véu da ignorância”. Como não se saberia se o/a outro/a é rico ou pobre, negro/a ou branco/a, homem ou mulher, podemos presumir que os princípios que os membros hipoteticamente adotariam para ordenar sua sociedade seriam justo, não apesar do caráter anônimo do/a outro/a, mas por causa dele.
Até aqui, tudo bem, mas o que isso tem a ver com “conversações internas”? Bem, em Rawls, a justificação e validação dos princípios do contrato social são resultado das conversações interiores simuladas que o espectador imparcial tem com seus concidadãos. Tudo ocorre como se o espectador simpatético, confortavelmente sentado em seu sofá depois de um longo dia de trabalho, tivesse chamado à sua mente qualquer pessoa de seu conhecimento e convidado ele ou ela para sua conversa interior da noite (veja o experimento mental de Goethe em Wiley, 1994:54). Em sua mente, ele convidava seus amigos e conhecidos a sentar-se junto de si, discutindo com eles os princípios que seriam objeto do acordo original. Ao deixar seus queridos amigos, ao mesmo tempo que os envolvia nas profundezas do seu coração, continuava a conversa imaginária ao convidar os amigos de seus amigos para o diálogo. Eventualmente, por meio de uma variação eidética do amigos de seus amigos, chegaria a um cidadão genérico e sem face, porém bem-informado, preocupado e cuidadoso, que “olharia para o sistema da perspectiva do homem [e da mulher] representativo[a] dotado[a] das menores vantagens” (Rawls, 1972, p. 151).
Por meio do mecanismo engenhoso da representação da posição original, Ralws criou um espaço público no mais profundo de seu coração (in foro interno, como Kant diria). Habermas objetou à privacidade das conversações interiores de seu amigo. Ao convidar seu colega americano para um debate público (cf. Journal of Philosophy, 1995, 93, 3), o filósofo alemão gentilmente convenceu seu colega, in actu, da necessidade de continuar a conversação interior por meio de uma comunicação entre iguais que ocorre na esfera pública. É através da comunicação pública, não apenas pela conversação interior, que os falantes progressivamente chegam à visão comum e imparcial do “outro generalizado” (Mead). Ao convidar não apenas seus amigos que compartilham de seus pontos de vista, mas também os vizinhos que não as compartilham para dar voz a suas opiniões em público, que os cidadãos se convencem uns aos outros, por meio da força do melhor argumento, do que é justo ou errado.
De acordo com Habermas, os princípios morais e políticos se tornam objetivos e universais por meio do uso público da fala e da razão. De fato, graças à comunicação, os cidadãos têm conhecimento mutuo das posições dos outros e, assim, chegam, através da sobreposição do conteúdo comum que é publicamente comunicado e compartilhado por todos, a um consenso acerca dos próprios princípios que ordenam uma sociedade justa. Ao transformar as conversações internas que o observador simpatético tem consigo mesmo e com todos os outros em uma comunicação real entre participantes de uma conversação externa, nos movemos do uso privado (Rawls) para o uso público (Habermas) da fala. Assim, eu concluo que existe uma dialética em processo – ou uma morfogênese dupla, como Archer diria – entre as conversações interiores e exteriores. Quando a comunicação cessa, os participantes podem continuar o debate internamente e, depois de amadurecer a reflexão, podem se juntar novamente à conversa externa.
Bibliografia
Rawls, A. (1988), “The Interaction Order sui generis: Goffman’s Contribution to Social Theory”. Sociological Theory, 5, pp. 136-149.
Rawls, J. (1972), A Theory of Justice. Oxford, OUP.
Wiley, N. (1994), The Semiotic Self. Chicago, University of Chicago Press.
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Filosofices
Retrato da coisa-em-si Kantiana
Semana que vem tem prova de metodologia científica na graduação. O pessoal anda meio agitado, de forma que decidi recorrer a dois filósofos eminentes a fim de esclarecer alguns conceitos que temos usado no curso. As definições abaixo foram retiradas de Thomas Cathcart e Daniel Klein (Plato and Platipus walk into a bar... Londres, Penguin Books, 2007) e estão terminantemente proibidas de serem usadas na prova (para uma definição de "coisas terminantemente proibidas de serem usadas na prova", ver glossário abaixo).
Cynthia
Metafísica: A metafísica entra de cabeça nas Grandes Questões: O que é o ser? Qual a natureza da realidade? Nós temos livre arbítrio? Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete? Quantos deles são necessários para trocar uma lâmpada?
Lógica: Sem a lógica, a razão é inútil. Com ela, você pode vencer debates e alienar multidões.
Epistemologia: A Teoria do Conhecimento. Como você sabe que sabe as coisas que acha que sabe? Exclua a opção de responder “eu simplesmente sei que sei” e o que sobrar é epistemologia.
Ética: Separar o bem do mal é a província da ética. Também é ela que mantém ocupados os padres, os intelectuais e os pais. Infelizmente, o que mantém ocupadas as crianças e os filósofos é perguntar aos padres, aos intelectuais e aos pais “Por que?”.
Filosofia da Religião: O Deus que os filósofos da religião gostam de discutir não é um Deus que a maioria de nós reconheceria. Ele tende a se situar no lado mais abstrato, mais como “A Força” em Guerra nas Estrelas e menos como um Pai Nosso que fica acordado durante a noite se preocupando com você.
Filosofia da Linguagem: Quando o ex-presidente William Jefferson Clinton respondeu em um debate “depende do que a sua definição de ‘é’ é”, ele estava fazendo filosofia da linguagem. Ele também poderia estar fazendo outras coisas.
Filosofia Social e Política: A filosofia social e política examina questões de justiça na sociedade. Por que precisamos de governos? Como os bens devem ser distribuídos? Como podemos estabelecer um sistema social justo? Essas questões costumavam ser respondidas com um cara mais forte tacando um osso na cabeça de um cara mais fraco, mas depois de séculos de filosofia social e política, a sociedade percebeu que os mísseis são muito mais eficazes.
Metafilosofia: A filosofia da filosofia. Não confundir com a filosofia da filosofia da filosofia.
Sentença Analítica (ou juízo analítico): Uma sentença que é verdadeira por definição. Por exemplo, “todos os patos são aves” é analítica porque parte do que significamos por “pato” é que se trata de um membro da família das aves. “Todas as aves são patos”, por outro lado, não é analítica porque a paticidade não é parte da definição de “ave”. Obviamente, “todos os patos são patos” é analítica, assim como “todos as aves são aves”. É comovente observar a ajuda prática que a filosofia pode fornecer a outras disciplinas, tais como a ornitologia. Contraste com sentença sintética.
Sentença Sintética (ou juízo sintético): Uma sentença que não é verdadeira por definição. Por exemplo, “sua mãe usa botas do exército” é uma sentença sintética; ela adiciona informação não incluída na definição de “sua mãe”. O mesmo se aplica ao corolário “Ei, sua mãe usa botas do exército”. Contraste com sentença analítica.
A posteriori: Conhecido pela experiência; conhecido empiricamente. Para saber que algumas cervejas têm um gosto bom mas não fazem você se sentir estufado, você teria que experimentar pelo menos uma cerveja que tem um gosto bom e não faz você se sentir estufado. Contraste com a priori.
A priori: Conhecido anteriormente à experiência. Por exemplo, pode-se saber, antes de se assistir ao programa, que todos os participantes de American Idol acreditam ser cantores porque American Idol é um concurso de canto para pessoas que – por razões melhor conhecidas por elas próprias – acreditam ser cantores. Contraste com a posteriori.
Coisa-em-si: a coisa-em-si, como oposta à representação sensorial de uma coisa. A ideia aqui é a de que um objeto é mais do que simplesmente a soma de seus dados sensórios (i.e., aquilo que podemos ver, ouvir, sentir, cheirar) e que existe alguma coisa-em-si por trás de todos esses dados sensórios que é distinto dos dados. Alguns filósofos acreditam que essa noção pertence à mesma categoria que os unicórnios e papai Noel.
Empirismo: a visão de que a experiência, em particular a experiência dos sentidos, é a fonte primária – ou única – do conhecimento. “Como você sabe que existem unicórnios?” “Porque eu acabo de ver um no jardim”. Isso é o que chamamos de empirismo extremo. Contraste com racionalismo.
Racionalismo: a visão de que a razão é a fonte primária - ou única – do conhecimento. É geralmente contrastado com empirismo, que é a visão de que a experiência sensorial é a fonte primária de conhecimento. Tradicionalmente, os racionalistas têm preferido a razão porque os sentidos são notadamente pouco confiáveis e o conhecimento baseado neles é, portanto, incerto. Eles preferem a certeza absoluta de juízos alcançados por meio da razão como “esse é o melhor dos mundos possíveis”.
E, para finalizar, uma definição mezzo filosófica, mezzo sociológica:
Coisas terminantemente proibidas de serem usadas na prova: coisas que, contrariamente à coisa-em-si kantiana, podem ser intuídas. Costumam ter como efeitos sensíveis notas baixas, diminuição na autoestima dos alunos e na estima pela professora.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
A Vitória de Orwell
Fernando da Mota Lima
George Orwell é um desses raros escritores que se tornam parte de todo um clima de opinião. Aviso o leitor que esta expressão é traduzida de um poema de Auden: “In Memory of Sigmund Freud”. Talvez a maior evidência de tão elevado status consista no fato de que escritores dessa natureza influenciam a linguagem usada até pelos que nunca os leram, até por aqueles inconscientes de uma obra como 1984, e de personagens e conceitos como Big Brother, Polícia do Pensamento, Pensamento Duplo etc. Aviso novamente o leitor que traduzo aqui livremente conceitos fundamentais de 1984 sem cotejá-los com a tradução brasileira deste livro emblemático do pensamento antiutópico. Melhor diria se usasse a expressão pensamento antitotalitário, pois Orwell nunca renunciou ao seu ideal de socialismo libertário, que é ainda um modo de ser utópico. Em suma, você fala de Orwell mesmo sem saber quem é ele, mesmo ignorando sua obra que exerceu e exerce ainda um papel decisivo no clima de opinião dominante na história contemporânea assaltada de modo catastrófico por totalitarismos de esquerda e direita.
Orwell é talvez a mais alta expressão do intelectual independente que conheço. Não me esqueço de que alguns leitores puxaram minha orelha quando usei o conceito de intelectual independente para criticar a conivência de José Saramago com regimes totalitários ou ditatoriais de esquerda. Há quem considere a relação do intelectual com o partido, ou mais amplamente com a realidade política, e conclua em termos simplistas que não existe tal coisa, isto é, você é sempre contra ou a favor, está com o partido x ou com o partido y. Essa linha de argumentação é claramente maniqueísta e assim estamos conversados. Você está com o bem ou com o mal e assim qualquer nuance, qualquer possibilidade de inserção entre os dois extremos excludentes é automaticamente suprimida.
A grandeza ética e política de Orwell – ou sua vitória, assim traduzo o sentido do livro que Christopher Hitchens lhe dedica – reside na sua capacidade extraordinária de denunciar o totalitarismo gestado pelos ideais utópicos da esquerda, o nome mais simples desse Big Brother é Stálin, sem renunciar a suas convicções socialistas e libertárias. É claro que este fato foi refutado por seus críticos à esquerda e à direita. Os primeiros o perseguiram e caluniaram por supostamente trair a esquerda, ou fazer o jogo do inimigo; os segundos tentaram apropriar-se de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) e 1984 como se fossem simplesmente obras anticomunistas. O fato ilustra admiravelmente o quanto é difícil ser independente, mas não anula a possibilidade da independência ideológica do intelectual. Orwell converte a possibilidade em fato.
Um dos grandes méritos do livro de Christopher Hitchens, herdeiro do jornalismo libertário patente na obra de Orwell, consiste precisamente em demonstrar como Orwell foi incompreendido ou mesmo caluniado por grandes intelectuais de esquerda. O exemplo mais documentado no livro é o de Raymond Williams, que ocupa no Olimpo da esquerda inglesa papel semelhante ao de Antonio Candido na esquerda brasileira. Lembro-me ainda, introduzindo aqui um grão de memória pessoal, de um ano remoto, talvez 1990, quando compareci a um seminário marxista na Universidade de Londres. Assistindo aos debates acalorados em torno da figura de Orwell, notei o quanto ele ainda dividia os marxistas e outras correntes do pensamento de esquerda.
Acredito que hoje, diluídos os embates ideológicos que incendiaram as lutas políticas durante tantas décadas sangrentas, a obra de Orwell já não provoque reações maiores, divisões do tipo a que assisti no Brasil e na Inglaterra. Mas lembro ao leitor jovem que no Brasil sua obra foi implacavelmente rejeitada e caluniada. Friso que me refiro mais precisamente às duas obras acima citadas, pois é nelas que Orwell concentra sua força satírica contra o totalitarismo, é nelas que investe contra a opressão exercida em nome de ideais libertários. Assim como a direita procurou apropriar-se dessas obras como se fossem simplesmente anticomunistas, confundindo assim de forma desonesta sua crítica ao stalinismo com uma crítica à esquerda em geral, a esquerda identificada com o stalinismo tudo fez para rejeitar e suprimir sua crítica ao totalitarismo. Aliás, conviria lembrar que o totalitarismo não se esgota nas suas mais extremas e terríveis materializações na história do século 20: o nazismo, à direita, e o stalinismo, à esquerda. Resumindo, o intelectual que ousa ser independente leva pancada de todos os lados.
Como acabo de observar, a crítica de Orwell ao totalitarismo não se esgota nos alvos que prioritariamente visou: o nazismo e o stalinismo. Sem querer banalizar o conceito, alerto para o fato de que a tentação totalitária está sempre presente no imaginário dos extremistas e dogmáticos, nos fundamentalistas de qualquer natureza, assim como nas forças de reificação inerentes ao capitalismo. Somente um tolo ou inconsciente suporia que essas forças desapareceram do mundo em que vivemos simplesmente porque o triunfo do capitalismo de consumo e da cultura narcisista pulverizaram qualquer possibilidade de pensamento totalitário. Aliás, bastaria imaginar o que Orwell diria sobre a forma como seu símbolo supremo da sociedade totalitária, o Big Brother, foi apropriado pela cultura de massas do presente. Quanto ao conceito de Newspeak, ou Novilíngua, tão engenhosamente ilustrado em 1984, bastaria pensar em expressões hoje correntes como “fogo amigo”, “terceira idade”, “boa idade”, “Brasil, um país de todos” e “sorria, você está sendo filmado”. Estes poucos exemplos da Novilíngua que irrefletidamente reproduzimos constituem algumas evidências exemplares do uso corruptor da língua, da mentira e da alienação disseminadas através da indústria publicitária e marqueteira administrada como o ópio da cultura de massas. Portanto, a vitória de Orwell é apenas parcial, já que a possibilidade ou mesmo o risco da tentação totalitária nunca desaparecem do horizonte da história humana. Acredito que esta era a convicção de Orwell, até porque ele foi um pessimista impenitente. Ele é a prova viva, talvez pouco comum, do pessimista ativo ou militante, do pessimista superado pela vontade de ação sobre o mundo incompatível com qualquer ideal utópico.
Christopher Hitchens descreve e analisa no seu livro múltiplos aspectos da obra de Orwell além do que centralmente me ocupou neste texto que é antes um breve artigo inspirado pela leitura de sua obra do que propriamente uma resenha. Sendo assim, contempla não apenas traços relevantes da biografia de Orwell, mas também sua relação com o imperialismo inglês, temperado por sua discutida anglicidade, com os Estados Unidos, com as feministas, os pós-modernistas etc. Convém todavia ressaltar que o livro de Hitchens é antes de tudo uma consistente apreciação da obra de Orwell centrada na sua dimensão intelectual e ideológica. Para o leitor que lê fluentemente inglês, recomendaria as biografias escritas por Bernard Crick e Michael Shelden. O melhor de Orwell, na minha opinião, está nos seus ensaios postumamente reunidos e publicados pela Penguin Book. Também sua obra de jornalista e suas cartas foram reunidas e publicadas pela mesma editora.
No Brasil, a Companhia das Letras publicou uma seleção que abriga praticamente seus melhores ensaios. Salvo engano, cito de memória, a seleção e o prefácio do volume foram obra de Daniel Piza. Acrescentaria, como indicação para o leitor curioso, que em 1986 Ken Loach dirigiu o filme Terra e Liberdade, baseado em Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha, traduzido no Brasil sob o título Lutando na Espanha). Esta é uma das obras fundamentais de Orwell, diretamente inspirada na sua participação na Guerra Civil Espanhola. Ele se alistou como combatente do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), corrente de tendência trotskista que acabou esmagada pelos franquistas, de um lado, e pelos stalinistas, de outro. Foi aí que Orwell sentiu na própria pele o que de fato significava stalinismo. Indicaria ainda o último capítulo de A History of Britain, de Simon Schama, também lançado em DVD no mercado brasileiro. O título do capítulo é “Os dois Winstons”, alusão a Winston Churchill e a Winston Smith, protagonista de 1984.
Concluindo, se você quer ter sucesso na vida, sobretudo na vida política, não incorra na insensatez de seguir o exemplo de George Orwell. Ele rompeu com o imperialismo inglês, dentro do qual foi educado para agir no mundo como um instrumento dócil da dominação imposta a povos colonizados; mergulhou no mundo da miséria e da marginalidade social para escrever de forma honesta e documentada sobre párias e trabalhadores esfolados pela espoliação capitalista; foi perseguido e caluniado por ousar denunciar o totalitarismo de esquerda numa época em que a maioria dos intelectuais de esquerda se aliavam ao stalinismo ou eram usados como inocentes úteis e por fim morreu relativamente pobre e jovem. Tudo que nos transmite como legado ético através de sua obra é a convicção e a coragem com que lutou em defesa das coisas em que acreditava e uma noção de integridade rara entre intelectuais. Como notamos, o legado de Orwell não é nada atrativo para os tempos em que vivemos.
domingo, 19 de setembro de 2010
E por falar em meios de comunicação de massa...
Cynthia Hamlin
Atribuir a especialistas frases nunca ditas a fim de justificar as opiniões particulares dos jornalistas parece estar se tornando tradição entre alguns veículos de comunicação. O caso recente mais gritante ocorreu na matéria “A farra da antropologia oportunista” (Veja ano 43 nº 18, de 05/05/2010), onde se atribui ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro a seguinte frase: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original”. Qualquer pessoa que conheça minimamente o trabalho de Viveiros de Castro (ou de qualquer antropólogo!) sabe que, em sã consciência, ele jamais afirmaria tal barbaridade.
Pois hoje o jornalista Rafael Dias, do Diário de Pernambuco, fez algo semelhante ao atribuir a Silke Weber, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, a seguinte afirmação: "O dado que tenho é que já são 50% do total de inscritos no vestibular da UFPE provenientes de escola pública. Obviamente que a escola pública não tem a qualidade da particular, mas já existem iniciativas de programas pré-vestibular que estão melhorando essa situação" ("Quem tem mais chance de entrar na faculdade?". Caderno C4, Diário de Pernambuco, Recife, domingo, 19 de setembro de 2010).
Abaixo, a resposta de Silke:
Prezado Rafael,
Com muita estranheza li o que me atribuiu na conversa telefônica a respeito da origem social dos estudantes da UFPE na matéira intitulada Quem tem mais chance de entrar na Faculdade? publicada no Caderno Vida Urbana - C4... Em nenhum momento falei que a escola particular era melhor do que a pública e nem referi-me a pré-vestibular do modo como escreveu... Não reconheço, portanto, como minha a citação feita na matéria que produziu e, desse modo, solicito que a sua interpretação pessoal seja imediatamente corrigida.
O que falei foi:
1. que é sabido que alunos da escola pública têm menos chance de aprovação no vestibular até porque, infelizmente, ainda hoje nem todos têm direito, sistematicamente, a aulas de matemática, física, química, biologia;
2. que metade dos alunos da escola pública que se inscrevem no vestibular tendem a ser aprovados e
3. que diante deste quadro, há iniciativas na própria UFPE de preparar alunos da escola pública para o vestibular e elas são realizadas por centros acadêmicos, departamentos e cursos.
Informo que mensagem com o mesmo teor está sendo enviada para a redação do DP, ASCOM UFPE e para a seção Carta ao Leitor.
Atenciosamente,
Silke Weber
Aguardemos a resposta...
terça-feira, 14 de setembro de 2010
Kavita Ramdas: mulheres radicais que aderem à tradição
Para acessar as legendas em português, clique em Subtitles...
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Universalismo, Particularismo e Relativismo: a Mutilação Genital Feminina nos Meios de Comunicação de Massa
The Guardian, 25 de julho de 2010.
Por Cynthia Hamlin
Creio que a primeira vez que tive contato com algumas das questões levantadas pelo relativismo cultural foi na adolescência. À mesa do jantar, após um plantão emocionalmente desgastante, minha mãe lamentava a morte de uma menina indígena que teve uma parada cardíaca durante uma sessão de hemodiálise. Assim que seu coração parou, minha mãe iniciou uma massagem cardíaca, enquanto lutava para se livrar do pai da menina, que tentava a todo custo impedir a ressuscitação. O antropólogo que acompanhava pai e filha tentava segurá-lo enquanto traduzia seus gritos desesperados de que parassem com aquilo porque o espírito dela já havia partido. Minha mãe solicitou aos enfermeiros que o tirassem dali e prosseguiu com a ressuscitação. Para o bem ou para o mal, a menina morreu. Mais tarde, o antropólogo explicou que, caso a menina “voltasse”, seria com um espírito diferente do seu e não seria mais aceita na tribo. Perguntei à minha mãe por que ela simplesmente não deixou a menina morrer, e ela disse que aquilo se chocaria profundamente com seus princípios éticos.
Anos mais tarde, em 1994, um de meus irmãos me apresentou um problema semelhante: num artigo publicado naquele ano no New England Journal of Medicine, um médico estadunidense se perguntava o que fazer quando mulheres que já haviam passado por uma infibulação - a forma mais radical de mutilação genital feminina, envolvendo a remoção do clitóris, dos pequenos lábios e de parte dos grandes lábios, que são depois costurados - solicitavam que ele as costurasse novamente após o parto. Naquela época, diversos estados dos EUA proibiram a prática, sob a alegação de que constituía violação dos direitos humanos. Embora concordasse com o argumento presente no discurso universalista que embasava a legislação, o médico dizia empatizar com o que poderíamos qualificar de dimensão particularista do problema presente no discurso das mulheres que o procuravam: sem a infibulação, perderiam sua identidade étnica, seriam rejeitadas por seus maridos, sentir-se-iam “sujas”, “feias” e pouco “femininas”. Ciente de que sua recusa levaria muitas dessas mulheres a voltar aos seus países de origem e efetuar o procedimento com ajuda de uma pessoa não-qualificada do ponto de vista médico e sob condições de higiene inadequadas, ele se perguntava se a coisa certa a fazer não era ir adiante e fazer o que elas pediam.
Como se vê, o juramento hipocrático de não fazer o mal não admite uma interpretação única, especialmente diante do contato entre pessoas ou grupos de valores culturais distintos. Apesar disso, à medida que práticas como a Mutilação Genital Feminina (MGF, ou Circuncisão Feminina, para os adeptos de uma terminologia mais “neutra”) tornam-se mais visíveis nos meios de comunicação de massa, parece haver um aumento da tendência de interpretá-las a partir de uma perspectiva universalista que desconsidera todo e qualquer elemento contextual em sua caracterização. Creio que o problema não é tanto a adoção de uma perspectiva universalista no que diz respeito a determinadas posturas éticas, mas o fato de que não é possível compreender e, mais ainda, alterar, práticas como essas sem a referência aos significados atribuídos pelos grupos em questão. De fato, o tratamento unidimensional efetuado pelos meios de comunicação de massa – a este respeito, remeto ao filme “Flor do Deserto”, que conta a história da modelo somali Waris Dirie, ou aos inúmeros vídeos existentes no youtube – pode mesmo gerar uma espécie de backlash, ou de contra-reação por parte dos grupos envolvidos, sob a alegação de colonialismo. A defesa da prática torna-se, em parte, legitimada pelo próprio direito à diversidade cultural, um direito invocado pelas mulheres de origem islâmica na França no recente debate sobre o uso do véu (ver post de Tâmara de Oliveira: Véus Muçulmanos na França e Olhar Sociológico).
Neste sentido, creio que todos nós temos muito o que aprender com os antropólogos em relação ao uso do relativismo cultural como recurso metodológico, embora não necessariamente ético. A fim de compreender essa distinção, é preciso ter em mente que o relativismo cultural, ou a tendência a se julgar cada cultura a partir de seu próprio contexto, aparece como um antídoto àquelas posturas etnocêntricas que buscam transformar o/a outro/a em uma cópia (imperfeita) do Homem do Iluminismo. Nas palavras de Ellen Gruenbaum (2001:26), o relativismo cultural não consiste em um posicionamento ético último, mas numa
técnica mental para ajudar as pessoas a evitar julgamentos negativos acerca de, por exemplo, preferências culinárias, formas de cumprimento, costumes maritais. [...] Ao passo que uma abordagem relativista cultural incorpora determinados dilemas éticos, ela consiste em um ponto de partida benéfico para a promoção do entendimento intercultural. Embora consista em um exercício mental útil para evitar um etnocentrismo não-refletido, o relativismo cultural geralmente requer algum grau de suspensão de valores éticos.
E a questão que imediatamente se coloca é o quão longe podemos ou devemos ir nessa suspensão. Essa não é uma questão simples e o problema tem se tornado mais concreto à medida que o processo de globalização tem possibilitado um maior contato entre culturas distintas, inclusive por meio de ondas migratórias das ex-colônias em direção aos países centrais do mundo globalizado. Não por acaso, a sociedade francesa se viu diante de um dilema acerca do uso do véu e, de forma crescente, os países centrais têm sido forçados a refletir sobre quanta diferença tolerar em suas sociedades. Só a titulo de ilustração, no mês de julho o jornal britânico The Guardian publicou 2 artigos (aqui e aqui) sobre a MGF, um deles chamando atenção para o fato de que entre 500 e 2000 meninas britânicas em idade escolar seriam submetidas à prática no verão de 2010, e conclamando as autoridades a aplicarem a lei - desde 1985, a MGF é proibida no Reino Unido e, desde 2003, a prática é proibida em qualquer mulher que resida permanentemente no país, mesmo se desempenhada em outro lugar. Apesar disso, nunca houve condenações por prática de MGF no país.
Claramente, a “dor do outro distante”, tratada no excelente post de Gabriel Peters, tem se tornado cada vez mais próxima. Mas será que a forma como o problema vem sendo exposto nos meios de comunicação de massa não tem contribuído para gerar um efeito contrário ao pretendido, isto é, a visão de um outro desumanizado, incivilizado e, portanto, não sujeito a determinados valores éticos? O que explicaria, por exemplo, a não aplicação da lei no Reino Unido? Seria isso uma espécie de “indiferença” ao sofrimento alheio? Talvez. Embora não pretenda sugerir aqui que os meios de comunicação de massa são responsáveis diretos por este fenômeno, acredito que isso pode ser percebido como uma espécie de efeito perverso, ou conseqüência negativa não-pretendida, da forma unilateral como a MGF é caracterizada. Aquilo que Gabriel chamou de “via média” entre o otimismo e o ceticismo relativo às consequências da recepção midiática de imagens da dor do outro (e de si próprio!) requer, antes de tudo, uma via média na produção dessas imagens. Como fazer, por exemplo, com que as mulheres se reconheçam na “estória única” contada pelos meios de comunicação de massa e pelas agências humanitárias e organismos internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde? E se não se reconhecem da forma como são descritas, como (ou por que) alterar seus valores e práticas? Como evitar que a forma desumanizada como o islã vem sendo retratado não degenere num backlash movido por um sentido de resistência ao imperialismo cultural?
Ellen Gruenbaum, que desenvolveu uma extensa pesquisa sobre MGF no Sudão na década de 1990, demonstra que as razões dadas por pais e mães que decidiam operar suas filhas, ou por mulheres que decidiam ser reinfibuladas, eram selecionadas a partir de um conjunto de razões culturalmente disponíveis em função daquelas que pareciam melhor se adequar à situação específica. Em outras palavras, os por quês da circuncisão feminina não admitem uma resposta única, nem mesmo quando se considera uma única sociedade. Em uma pesquisa efetuada no Sudão com uma amostra de 1.804 mulheres e 1.787 homens, Rushwan e seus colegas descobriram que a maioria dos homens (59%) alegavam motivos religiosos, mas apenas 14% das mulheres alegavam esse motivo. A maioria das mulheres (42%) responderam que se tratava de “uma boa tradição”, mas só 28% dos homens recorreram a este motivo. Vinte e oito por cento dos homens e 19% das mulheres afirmaram que ela promovia a higiene, ao passo que apenas uma minoria se referiu ao aumento de fertilidade (1% das mulheres e 2% dos homens). A proteção da virgindade, uma das principais razões mencionadas nos meios de comunicação de massa, aparece como motivo para apenas 10% das mulheres e 11% dos homens, enquanto que o “aumento nas chances de arranjar um marido” é mencionado por 9% das mulheres e incríveis 4% dos homens. Por fim, 13% das mulheres e 21% dos homens se referiram ao aumento do prazer do marido como razão para efetuar a circuncisão feminina ou a reinfibulação (apud Gruenbaum, 2001: 49).
Claro que compreender as razões de determinadas práticas não implica em simplesmente aceitar como verdade aquilo que é oferecido como explicação. De fato, se fosse esse o caso, seria melhor concordar com os defensores de um relativismo epistemológico que colocam no mesmo nível explanatório ciência, literatura e religião. Entretanto, é necessário reconhecer que as crenças (mesmo as falsas) têm um impacto causal na ação das pessoas. E isso implica não apenas identificar corretamente o repertório de crenças disponíveis em uma determinada cultura, mas também os contextos específicos nos quais elas são mobilizadas por agentes e grupos de agentes particulares. Isso certamente não é possível sem a suspensão temporária de valores éticos que possibilite a abertura ao diálogo e, portanto, ao entendimento mútuo.
Mais uma vez, não se trata de negar que a MGF é uma prática que deve ser abolida. A questão é que sua própria abolição requer um entendimento mais profundo do tema do que o que vem sendo propagado pela grande mídia. Por que, por exemplo, um filme como “Flor do Deserto” não poderia ter focado um pouco mais nos dilemas e escolhas que certamente as mulheres de sua família devem ter encontrado? Seria sua mãe uma simples idiota cultural, para tomar emprestada a expressão de Garfinkel, incapaz de questionar os valores de sua cultura, ou alguém cujas circunstâncias particulares não possibilitaram uma escolha diferente da sua?
Dito isto, um dos melhores tratamentos que vi ao tema veio da literatura. Em um excelente livro intitulado Possessing the Secret of Joy (“Possuindo o Segredo da Alegria”), Alice Walker (1991) narra a estória de Tashi, suspensa entre dois universos morais incomensuráveis e para quem a única resposta possível é a loucura. O livro foi brilhantemente resumido e analisado por Débora Diniz (2000; ver também Diniz, 2001), de quem faço uma citação extensa:
O romance de Walker se passa em uma comunidade imaginária da África Setentrional, os Olinkas, uma região endêmica da cirurgia de mutilação genital. O enredo tem como fio-da- meada a infeliz biografia da personagem principal, Tashi, que também esteve presente no livro “A Cor Púrpura”. O início do livro narra a chegada de missionários protestantes à aldeia de Tashi. Esta cena inicial é de fundamental importância para a compreensão da história, pois aponta para um enigma que somente ao final do romance o leitor poderá compreender. Ao contrário de toda a aldeia que se encontrava em festa pela chegada dos missionários, Tashi e sua mãe, Nafa, estavam profundamente abatidas. As duas mulheres viviam o luto pela morte de Dura, a única irmã de Tashi. Para o leitor, a razão da morte de Dura permanece desconhecida até quase as últimas páginas do livro. O fato é que a morte da primeira filha fez com que Nafa decidisse preservar Tashi da cerimônia de iniciação ritual, não permitindo que a mutilassem. Definitivamente, esta era uma opção impensável para a estrutura social a que estas mulheres estavam inseridas.
Mas, em nome desta infração da mãe, um ato seguramente imoral para os padrões valorativos da sociedade Olinka, Tashi não encontra outra saída senão se casar com um estrangeiro, o único homem capaz de aceitar seu corpo não-iniciado. Tashi casa-se, então, com o filho do missionário protestante de sua aldeia e vai com ele morar nos Estados Unidos. A distância geográfica e social de seu povo a permitia sobreviver na imoralidade do corpo não-mutilado. Na verdade, a integridade genital era a condição para a normalidade e a moralidade em sua nova pátria. Tashi foi capaz de viver alguns anos felizes com o marido, até o dia em que seu povo decidiu proclamar a liberdade colonial. Mais tardiamente que os povos vizinhos, os Olinkas engajaram-se no movimento pela independência dos estados africanos. Ouviam-se histórias de massacres, de abandono de aldeias, de dissolução do grupo. Este sentimento de perda das origens provocou em Tashi um vazio quanto à sua identidade cultural, um deslocamento afetivo de seu povo como nunca antes havia sentido. Tashi passou a se sentir uma cidadã sem referências, uma imigrante vinda de lugar nenhum.
Dominada por este sentimento confuso sobre sua nacionalidade, Tashi resolveu fugir e alistar-se nos campos de refugiados dos Olinkas. Sua decisão era fazer parte do exército de libertação de seu povo. No entanto, para os Olinkas, Tashi era uma figura confusa ou mesmo inesperada: uma mulher casada com um estrangeiro e não-mutilada. A desconfiança em relação a ela era enorme. Definitivamente, Tashi não era uma mulher Olinka. Era um híbrido de mulher. Em nome disso, Tashi resolveu submeter- se, mesmo que tardiamente, à cirurgia de mutilação genital. Para ela, este seria o “selo” definitivo da cultura Olinka em seu corpo. De posse desta marca cultural, ela não seria mais alvo de desconfiança ou repúdio, podendo ser aceita como uma mulher comum. Com a mutilação, Tashi não era mais uma mulher imoral; devolveram-lhe a dignidade da moralidade. Mas se a cirurgia de mutilação genital já apresenta sérios riscos à saúde e à integridade física das meninas, mesmo quando executadas em tempos de paz, a cirurgia de Tashi nos campos de guerra deixou graves seqüelas no seu corpo. Foi exatamente neste período de convalescência pós- cirúrgica que seu marido a encontrou.
De volta aos Estados Unidos, Tashi, já recomposta, engravida. E é exatamente a gravidez de Tashi o que inicia o segundo momento narrativo do livro: a nova imoralidade de Tashi, isto é, ser uma mulher não-mutilada para os Olinkas era um fato tão inesperado quanto ser uma mulher mutilada para nos Estados Unidos. Tashi tornou-se uma peça alegórica nos hospitais e clínicas onde passava. Seu corpo era objeto de análises e estudos. Sem esperar, Tashi retorna ao espaço solitário da imoralidade, da anormalidade da diferença. Sua moralidade Olinka é algo inesperado e repudiado pelos estadunidenses. Um corpo mutilado como o seu deveria ser escondido, banido ou, se possível, recomposto. Ora, esta passagem da imoralidade para a moralidade Olinka e desta para a imoralidade estadunidense foi mais forte do que Tashi poderia suportar. Apesar dos esforços no sentido de devolver-lhe a dignidade, a narrativa final de Walker apresenta Tashi como uma personagem louca. E a loucura de Tashi é exatamente a absoluta falta de perspectiva para julgar os padrões de certo e errado, da moralidade ou da imoralidade. A liberdade insana de Tashi a tornou uma figura sem referências no mundo cultural: uma estranha para os Olinkas, uma escrava para os estadunidenses. Uma mulher sem amparo cultural. Mas definitivamente uma mulher livre.
A história de Tashi, e para isso pouco importa os limites da narrativa ficcional de Walker, tem a propriedade de desnudar os limites da crítica cultural. Sim, ao mesmo tempo que é preciso e urgente a crítica moral, a pergunta que permanece é como deve ser conduzido este processo, para que se consiga evitar o abandono dos indivíduos à liberdade da loucura. Libertar os indivíduos das amarras opressivas de cada código moral não é o mesmo que torná-los insanos. A dúvida moral é um processo saudável e necessário, mas para que possa ser levado adiante é preciso que estejamos aptos a viver em um mundo recheado de imorais livres e não de indivíduos moralizados e vítimas de códigos culturais opressivos. Tashi é um exemplo radical de submissão aos códigos morais: sua mãe a confinou à imoralidade Olinka, seu casamento à moralidade estadunidense, a guerra à moralidade Olinka, sua gravidez à imoralidade estadunidense. Não houve outra saída senão a loucura. Mas, infelizmente, como diz o dito popular, “não é louco quem quer”. Tashi foi vítima da loucura. (Diniz, 2000: 2-3).
Embora não tenha aqui a pretensão de responder à questão colocada por Diniz em relação a como a crítica cultural deve ser efetuada, certamente o caminho não é o tratamento unilateral e desumanizador adotado pela grande mídia e que tem se revelado incapaz de estabelecer o diálogo necessário ao entendimento mútuo, por um lado, e o questionamento de nossas próprias práticas, por outro. Ou ninguém aqui ouviu falar do sucesso das cirurgias plásticas genitais que tem gerado um exército de vulvas de designer no Ocidente?
Refêrencias
Diniz, Débora (2000) A Cirurgia de Mutilação Feminina. SérieAnis, Vol. 11, Brasília, LetrasLivres, pp. 1-3, junho. Disponível em: http://www.anis.org.br/serie/visualizar_serie.cfm?IdSerie=17. Consultado em 06 de setembro de 2010.
________ (2001) Antropologia e os Direitos Humanos: O dilema moral de Tashi. In Regina Reyes Novaes Roberto Kant de Lima (orgs) Antropologia e Direitos Humanos. Niterói, Ed. da UFF.
Gruenbaum, Ellen (2001) The Female Circumcision Controversy: an anthropological perspective. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.
Walker, Alice (1991). Possessing the Secret of Joy. Londres, Vintage.
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sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Cazzo faz 3 anos
Cynthia lembrou-me ontem que o Cazzo faz aniversário no dia 2 de setembro. É verdade! Ele é pois do signo de virgem. Acho. Com o sol em vênus, o céu em plutão, o ascendente de fogo, o chão de terra batida, um cachorro chamado Xaréu e uma plantação de macaxeira no quintal da terceira casa. Noves fora, vou pedir para Artur, que incorpora Zé da Bola toda sexta-feira anterior a um jogo do Santinha, que faça as previsões para o ano vindouro. Mas já prometemos trabalhar um pouco mais e algumas novidades - que estamos planejando já há uns dois anos.
Quanto à foto: ainda conseguimos organizar um baile funk para comemorar. (Cynthia tentou contacto com Isaac Karabichevski, mas ele já tinha um compromisso em Olinda).
E estamos esperando os presentes.
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