domingo, 3 de outubro de 2010

Uma etnografia da mente



Douglas Porpora - Drexel University

Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

A partir do trabalho da Escola de Chicago, uma preocupação da sociologia tem sido a de que as pessoas refletem sobre si próprias. Mas será que todos refletimos acerca de nós próprios da mesma forma? Não apenas essa questão não tem tido resposta, mas também não tem sido colocada de forma sistemática.

Muitos de nós, portanto, acha muito provocante a sugestão de Margaret Archer em seus trabalhos recentes (por ex. 2003). Nem todo mundo, a pesquisa de Archer sugere, reflete melhor acerca de si ao conduzir conversações interiores consigo mesmo. Ao contrário, aqueles que Archer chama de “reflexivos comunicativos” preferem pensar sobre suas crenças e ações por meio de conversações reais, externas, com outras pessoas de seu círculo social.

É nas duas categorias que Archer chama de “reflexivos autônomos” e “meta-reflexivos” que encontramos pessoas refletindo mais comumente por meio de conversações interiores. A diferença entre duas categorias está no conteúdo da reflexão. Reflexivos autônomos refletem internamente sobre questões instrumentais ou estratégicas, incluindo o tipo de gerenciamento de impressões identificado por Goffman. Os meta-reflexivos também refletem internamente sobre preocupações instrumentais. Mas, além disso, os meta-reflexivos são dados a longas reflexões internas sobre ideais e questões morais, projetos de vida e emoções. Como as ciências sociais e as humanidades tendem a atrair meta-reflexivos e os ajudam a promover o pensamento meta-reflexivo, muitos de nós neste campo tendemos a ser meta-reflexivos.

Se os reflexivos autônomos e os meta-reflexivos pensam acerca de si próprios especialmente por meio das conversações interiores, qual a natureza de sua conversação interna? Ela é continua? A linguagem empregada é a mesma que a empregada nas conversas reais, externas, ou é mais abreviada? Em um artigo apresentado em um encontro da American Sociological Association, Norbert Wiley (2004) efetuou uma revisão acerca do que se conhece sobre a fala interior – não muito. Existem sugestões, como a de Vygotsky, de que a fala interior é mais breve, e que, por exemplo, o sujeito da frase é constantemente omitido, dado que já sabemos quem está desempenhando a ação.

O artigo de Wiley termina com um pedido de mais pesquisas sobre a fala interna, um pedido que me inspirou a respondê-lo. Para o workshop sobre reflexividade organizado por Margaret Archer, eu resolvi me dedicar ao que chamei de uma etnografia da mente. Por várias semanas, tentaria observar o cenário da minha vida interior. Qual era a natureza da minha fala interna? Quais eram os atos de fala – por ex., reportar, argumentar, calcular – nos quais eu me engajava? Algo mais, além da fala interior, acontecia dentro de mim? Essas eram as questões que eu buscava responder.

A tarefa foi, na verdade, bastante difícil. O social – na forma de fala – se imprime de tal forma sobre nós que, no início, quando você olha para si mesmo, tudo o que pode perceber é fala. Com um tipo de efeito Heisenberg, o próprio ato de auto-exame tende a transformar em fala tudo o que você está examinando. Como num sonho, o pensamento não linguistico facilmente evapora quando tentamos apreendê-lo.

No entanto, da mesma forma que a prática nos permite recordarmos nossos sonhos, ela também possibilita que nos surpreendamos no tipo de absorção não linguística pelo mundo que os budistas chamam de “talidade” (suchness), a apreensão do mundo sem a rotulação linguística.

Minha mais importante descoberta diz respeito à natureza da minha fala interior. Descobri que ela raramente era abreviada da forma sugerida por Vygotsky. Exceto quando expressando expletivos, eu geralmente empregava sentenças inteiras. Mesmo expletivos eram geralmente enraizados em locuções bem-formadas, tais como aquelas começando com “Que p…?”.

Se minha fala interior tendia para as sentenças completas, o motivo surpreendente para isso era que eu passava muito pouco tempo falando especificamente comigo mesmo – ou mesmo com o Outro Generalizado de Mead. Em vez disso, percebi que minha mente era povoada por muitos “interlocutores convidados” – pessoas reais ou audiências potenciais a quem eu internamente me dirigia. Muito do que eu fazia era imaginar o que diria ou escreveria para algum grupo de pessoas, ou repassava mentalmente o que eu deveria ter dito ou escrito. Minha reflexividade autônoma ou meta-reflexiva parece muito, então, com uma reflexão comunicativa interna.

O quão idiossincráticas são essas descobertas? Isso não é claro. Precisamos que outras pessoas comecem a fazer uma etnografia da mente como esta.

Bibliografia

Archer, Margaret. (2003), Structure, Agency, and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Wiley, Norbert. (2004), The Sociology of Inner Speech: Saussure Meets the Dialogical Self. Paper presented at the August Meeting of the American Sociological Association, San Francisco (revised version published in Journal for the Theory of Social Behaviour, 36(3), pp. 319-341, 2006).

3 comentários:

Maria Luiza disse...

"Minha reflexividade autônoma ou meta-reflexiva parece muito, então, com uma reflexão comunicativa interna."

Isso me fez questionar se eu realmente tinha conversas internas (comigo) ou não, porque na maioria das vezes é através do diálogo (interno) com outros que isso (seja lá o que for) se dá.

Mas geralmente eu não consigo situar muito bem o pensamento fora da linguagem, a linguagem fora do social (ou o social da linguagem?), embora consiga pensar (e sentir) muita coisa que não é da ordem da linguagem nessas "conversas internas".

Então...eu tenho essa sensação de "reflexão comunicativa interna".

Mas é só minha tentativa de responder às suas descobertas. Acho que a resposta se estendeu e se aproximou de um tatibitate... :)

Cynthia disse...

Oi, Maria Luiza,

Eu acho que minhas conversações interiores também paracem muito com as do Doug e, ao que tudo indica, com as suas. Mas eu acho que o fato de ela se dar com "outros" não significa que não haja algum tipo de automonitoramento, já que o que está em questão nesse caso é a intuição fundamental de Charles Cooley, e também de Mead, de que o nosso self é refletido no outro. Creio que isso aponta para uma questão interessante do ponto de vista teórico e que tende a ser minimizada pelos realistas críticos ao focar, talvez excessivamente, em uma filosofia da mente: que a linguagem aponta sempre para um "exterior" que não está contido na mente e, portanto, não pode ser compreendida a partir dela. Ou talvez o problema diga respeito a uma concepção de self e de mente mais processual e dialógicos, mais à la Mead...

E obrigada pela sua contribuição.

Maria Luiza disse...

Acho que eu assino embaixo, Cynthia :)

E obrigada pelo blog.