segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Denúncia de Tortura Policial no Recife



O Jornal do Commercio noticiou hoje a denúncia de sequestro e tortura da estudante de Direito Vatsyani Marques Ferrão. Segundo o depoimento da vítima, ela foi brutalmente espancada por policiais da Delegacia do Idoso por motivos que permanecem obscuros. As imagens publicadas pela estudante no Facebook são fortes. Não há o que justifique uma brutalidade como essas, assim como não há o que justifique o que vi ao assistir pela TV à última partida do Santa Cruz no Arruda: um torcedor parado, passivamente esperando a ação dos policiais que o cercavam, ser esbofeteado diante das câmeras que transmitiam o tal jogo para o Brasil. Nos dois casos, as evidências demandam apuração e providências das autoridades de plantão. Jonatas

O JC, na Internet, reporta os fatos na matéria abaixo.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO



Marina Félix de Melo

O Índice de Desenvolvimento Humano (ou IDH) foi criado por Mahdub ul Haq e Amartya Sen, em 1990. A parceria entre o ex-Ministro da Economia do Paquistão e o celebrado economista indiano produziu esse importante instrumento de análise do desenvolvimento e da desigualdade sociais. Retomando uma importante vertente ética do liberalismo para o campo da economia, Sen é particularmente conhecido por sua defesa do desenvolvimento das capacidades humanas como elemento fundamental da própria possibilidade de liberdade – e por sustentar que a desigualdade entre grupos sociais não pode ser pensada apenas a partir de suas respectivas rendas, ou seja, a partir de um critério de estratificação financeira. Adotado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) desde 1993 como instrumento de mensuração do desenvolvimento humano ao redor do mundo, o IDH estrutura-se em três dimensões: longevidade; acesso ao conhecimento e padrão de vida. O segundo desses itens, por seu turno, é subdividido em: taxa de alfabetização de adultos e taxa de escolarização bruta. Essas três dimensões buscam sintetizar aspectos interpretados pela ONU como básicos ao desenvolvimento social: saúde, educação e renda.

A grande tentação neste ponto é criticar o uso de indicadores quantitativos para as ciências sociais, apontar suas limitações técnicas, bem como amplamente metodológicas. Como afirmar, por exemplo, que longevidade representa saúde? Ora, ela é apenas um possível indicador da saúde, interessante e importante parâmetro, mas não exclusivo. Dizer que em 2010 a expectativa de vida em Manari (Sertão de Pernambuco) era de aproximadamente 66 anos não nos diz muito acerca de como se vive e em que condições de conforto físico-mental se chega até essa idade. Igualmente, a longevidade é uma casa de medição alcançada por média aritmética, que consiste em somar tudo e dividir pelo número de casos. Este procedimento não suspende as ocorrências de “outliers”, que são os resultados extremos encontrados nas pontas da distribuição numérica de análise. Quanto ao quesito educação, sua avaliação leva a questões ainda mais delicadas que a medição da longevidade. Na Inglaterra, por exemplo, chegou-se a adotar como critério para aferir analfabetismo funcional saber ou não usar um forno micro-ondas e um aparelho de DVD. Um critério como este seria significativo para avaliar a alfabetização funcional de alguém que more, por exemplo, no sertão de Pernambuco? (tomemos o exemplo de Manari - IDHM1 de 0,487 em 2010 -, analisado por Fabiana Moraes em matéria de 18 de agosto de 2013 no Jornal do Commercio). Numa suposta comparação entre os resultados do IDHM de Manari e Londres, por exemplo, essas diferenças deveriam ser consideradas.

O IDH também não especifica os limites do que considera alfabetização. No Brasil, o PNUD utiliza dados colhidos pelo IBGE, que tem a alfabetização como auto declarável, e isso pode esconder o exemplo do analfabetismo funcional. Mais que isso, algumas pessoas que respondem ser alfabetizadas podem estar simplesmente dando uma resposta à dificuldade de reconhecerem o próprio analfabetismo diante do recenseador. Outro ponto é a escolarização bruta, medida em anos de estudo. Diante da qualidade do ensino oferecida por algumas instituições, esses dados podem esconder mais que revelar. Anos de escolaridade, igualmente, não indicam a quantidade de horas atribuídas a atividades educacionais (horários integrais e aulas esporádicas semanais são fenômenos distintos), tampouco responde sobre a qualidade da educação. Por fim, o fator renda. A renda utilizada no IDH é a renda per capita, isto é, o PIB (produto interno bruto) dividido pelo número de habitantes. Tal medida, como toda média aritmética, é pobre por ocultar um dado importante de estratificação social: a concentração de renda2.

O cálculo do IDH também não pondera suas dimensões analíticas. Eis um dos principais impasses sobre o indicador que não deveria apenas selecionar “arbitrariamente” as variáveis que o compõe, mas também, saber que peso cada uma destas “mereceria” na fórmula. A partir desta caracterização mais geral, pensemos em alguns outros recortes do IDH. Sua fórmula vem sofrendo adaptações a cada ano, adaptações matemáticas. Por exemplo: passou da utilização de média aritmética simples para média aritmética ponderada e, depois, para média geométrica, Assim, os indexadores que compõem sua fórmula geometrizam as médias antes destas serem divididas. Em termos “empíricos”, isto quer dizer que o suposto baixo rendimento de uma das dimensões não é mais linearmente compensado por outra dimensão supostamente elevada. Um ponto interessante do IDH é que seu resultado é uma grandeza adimensional, ou seja, já que procura comparar resultados, coeficientes, tem a magnitude de valores padronizada numa unidade, já que sua fórmula é posta dentro de uma raiz cúbica:­


Fonte: Relatório de Desenvolvimento Humano, PNUD, 2013.

Se pensamos no IDH, na sua utilização clássica de comparação entre países, ajustamos alguns pontos. Existem diferenças entre os institutos de pesquisa de onde são extraídos os dados. Dizer que o IBGE no Brasil tem a mesma administração de controle dos dados que INE em Portugal, seu equivalente, já seria uma aposta muito alta. Agora, imaginemos isso em esfera global. Alternativas educacionais e contextos culturais configuram um problema para bases comparativas como um todo. O erro mais comum que encontramos nas citações da mídia sobre resultados de IDH é a comparação entre resultados de diferentes anos. Vejamos: cada resultado, disposto em listagem, deve ser analisado em comparação e, unicamente, com a lista em que se aloca. O resultado do IDH varia entre 0 e 1 (melhorando em medida crescente). Dizer que um país X melhorou de um ano para outro porque seu coeficiente pulou de 0,75 para 0,78 em alguns anos não faz sentido. A fórmula vem sofrendo alterações a cada coleta, como já mencionamos e, não apenas isso, mas também, os resultados brutos só fazem sentido quando considerados o restante da lista, nomeadamente os resultados superiores ao do país em análise. Nem todos os países fizeram/fazem parte de todas as listas publicadas pelo PNUD. A Alemanha, por exemplo, não era contabilizada até poucos anos e, quando entrou no ranking, sem muita surpresa, ocupou as primeiras posições mundiais no Índice de Desenvolvimento Humano, mexendo com os resultados de posição dos países “abaixo” de si. Dizer que uma nação esteve em 30º lugar só faz sentido se a lista não tiver alteração dos elementos de análise até o 29º elemento. Por outra mão, a lista mundial tende a ficar cada vez mais completa e homogênea no que, salvaguardando às readaptações da fórmula, poderemos ter mais possibilidades interpretativas do ranking daqui certos anos. Em 2011, o Brasil ocupava a 84º posição na temida lista, numa pesquisa que considerou 187 países (18 países a mais do que a listagem anterior).
Aparte às limitações esboçadas, o IDH é o principal indicador social de que dispomos, a compor uma definição de desenvolvimento humano via as três dimensões observadas. É parcimonioso quanto ao número de variáveis que utiliza, sendo estas de fácil acessibilidade, bem como permite a comparação entre diferentes países e regiões por lista divulgada. Em julho de 2013 tivemos pública a lista de IDH-M no Brasil, que é o Índice de Desenvolvimento Humano por Municípios, calculado a partir de dados desagregados (cedidos pelo PNAD-IBGE). A vantagem do olhar sobre os dados desagregados é que o índice geral de um país tende a esconder suas particularidades, os diferentes níveis de cada região. Os dados desagregados podem ser selecionados com relação à renda, grupo racial e/ou étnico, gênero etc.
Alagoas obteve o menor Índice de Desenvolvimento Humano entre os estados do País, com o resultado de 0,63 numa escala de 0 a 13. A média nacional é de 0,71. Concentremo-nos neste Estado. Ao observarmos o Índice de Gini de Alagoas, notamos que este também é pior do que a média nacional. Numa escala de 0 a 1 (quanto mais próximo de 1, mais desigual é a amostra), o Gini (2010) do Brasil é de 0,59, enquanto o de Alagoas é de 0,63 (coincidentemente, o mesmo coeficiente de seu IDH).
Mais grave é quando desagregamos os dados dentro do Estado. A capital Maceió tem um IDH-M na grandeza de 0,72, o que não surpreende, posto ser a cidade onde se localiza a elite política financeira local, concentradora da renda e dos acessos à educação e à saúde em cerca de cinco bairros litorâneos, os cartões postais do turismo. O problema social pesa neste espaço entre o 0,72 de Maceió e o 0,63 de Alagoas. Cidades destacadas no Estado têm resultados que valem a pena mencionar: Porto Calvo (0,58); Penedo (0,63); Marechal Deodoro (0,64) e; Arapiraca, onde está parte da Universidade Federal de Alagoas (0,64). E, além destes municípios de destaque, passamos por resultados ainda mais deprimentes, como o da cidade de Olho D’água (0,50). Alagoas tem cinco municípios entre os piores do Brasil no que se refere a tais resultados. (PNUD, 2013).
Se compararmos Maceió a demais capitais da região Nordeste, vemos que o 0,72 da cidade fica abaixo das vizinhas fronteiriças Aracaju e Recife (0,77), ou de Fortaleza e Salvador (0,75). Voltemos aos níveis estaduais: realizamos o que em estatística habitua-se chamar de análise de clusters, que nada mais é do que a separação dos resultados estaduais em grupos de homogeneidade. Com os resultados do IDH-M de 2013, temos um primeiro grupo composto apenas pelos estados de São Paulo, Santa Catarina e pelo Distrito Federal (0,82 grupo). O segundo grupo é formado por estados diversos do centro-oeste, sudeste e sul, salva raras exceções, como o Amapá (0,78 grupo). O terceiro grupo concentra os estados do Norte e Nordeste (0,63 grupo). Logo, nota-se que o discurso de que o Nordeste tem “crescido” exponencialmente nos últimos anos prende-se ao fato de que as demais regiões também não são unidades estanques, no que o dinamismo de desenvolvimento nacional e regional ainda marca fortes diferenças entre as regiões, não apenas por termos segregado estes estados em três grupos mas, infelizmente, pela diferença substancial dos resultados entre eles.

Referências:

PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) (2010), Relatório de Desenvolvimento Humano. http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2010_PT_TechNotes_reprint.pdf

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) (2013), Índice de Desenvolvimento Humano por Município. www.ibge.gov.br



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1 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.
2 Já existem tentativas interessantes de um IDH ajustado à desigualdade, o IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade), mas ainda em estágio relativamente embrionário de aplicação. Para isso, buscou-se adequar a fórmula do Índice de Gini (Índice que mede a estratificação social) à fórmula do IDH. Entretanto, percebeu-se o impacto da vulnerabilidade da fórmula de Gini, criada a partir da curva de Lorenz que tem pouca sensibilidade matemática. Para se notar a diferença entre uma realidade e outra a partir do Índice de Gini é preciso que a realidade tenha mudado substancialmente - cada centésimo do Gini corresponde à demasiada alteração entre as sociedades estudadas. (Relatório de Desenvolvimento Humano, 2010, p. 227).

3 O Brasil tem cerca de 12% de taxa de analfabetismo. O estado de Alagoas tem 24%, isto é, o dobro do problema nacional.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Matou a família e foi à escola? O medo de jovens como contraponto da “juvenização” do mundo


Tâmara de Oliveira – UFS/PIBID (MEC/CAPES)
Depois de morto, Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini (13 anos) virou rapidamente uma espécie de celebridade internacional macabra: “matou a família e foi à escola”. Se tivesse ido ao cinema, como o rapaz do filme de Júlio Bressane (1969), talvez não tivesse completado o massacre familiar com seu suicídio, porque, convenhamos, ver um filme costuma ser atividade bem mais vivificante do que frequentar a maioria das escolas Brasil afora.
Logo depois surgiu outra hipótese, na qual o suposto menino matador e suicida tranformava-se em vítima de armação dos mandantes do massacre. Sustentando-se em declarações de um coronel da PM, chefe da mãe assassinada, afirmando ter esta última descoberto que colegas policiais eram parte de quadrilhas de roubo a caixas eletrônicos, essa hipótese parece ter mexido imeditamente com os nervos da hierarquia da Polícia Militar: um dia depois o mesmo coronel assinou um termo na Corregedoria de sua corporação declarando não haver qualquer denúncia formalizada no batalhão que dirige (por livre e espontânea pressão?) e o Comando da PM declarou que um procedimento administrativo será instaurado para investigar as declarações supostamente “errôneas” do coronel.
E durante dois dias Marcelo voltou a ser preferencialmente o adolescente macabro, o jovem matador-suicida inspirado em vídeos games e/ou em serial killers norte-americanos, como “comprovariam” postagens suas em redes sociais e o depoimento à polícia de um amigo de escola com a mesma idade que ele. No dia 11 de agosto, todavia, entra em cena uma celebridade esquecida, o professor e médico legista alogoano que demonstrara o duplo assassinato de P. C. Farias e Suzana Marcolino, afirmando haver várias falhas e estranhezas nos procedimentos e conclusões dos peritos do caso e declarando categoricamente que Marcelo Pesseghini também foi assassinado porque a posição de seu corpo é incompatível com um suicídio.
Nesse imbróglio flutuante, desde que foi declarado pela Polícia Civil paulista como principal suspeito pela morte de seus pais, de sua avó, de sua tia- avó e de si mesmo, a imagem desse adolescente de 13 anos tem circulado pelo mundo em duas versões radicalmente opostas, algoz juvenil ou vítima inocente, ambas acionando representações sociais (Moscovici, 2004) cuja coerência se sustenta facilmente em estoques sociais de conhecimento (Berger/Luckmann) das sociedades contemporâneas em geral e/ou da brasileira em particular: o da violência juvenil (comumente articulado a representações de uma onipotência de velhas ou novas TICs veiculadoras de filmes, séries, jogos violentos e/ou da supostamente necessária redução da maioridade criminal); o da violência e/ou envolvimento crônico de nossas polícias com a corrupção e o crime.
O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony afirmou no dia 11.08.2013, em coluna da Folha de São Paulo, que ambas as versões têm mais furos do que um queijo suiço. Do ponto de vista de uma investigação policial, concordo com ele – por enquanto. Mas gostaria de argumentar aqui que, do ponto de vista sociológico, a imagem de Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini oscila entre os dois pólos extremos de um mesmo horizonte simbólico sobre a juventude na modernidade: o do medo (“problema social”, ameaça de ruptura, desencadeamento potencial de um “pânico moral”) e o da esperança (pelas possibilidades de um futuro desejado – que o caráter transitório da juventude costuma encarnar na modernidade:
(...)A juventude, vista como categoria geracional que substitui a atual, aparece como retrato projetivo da sociedade. Nesse sentido, condensa as angústias, os medos assim como as esperanças, em relação às tendências sociais percebidas no presente e aos rumos que essas tendências imprimem para a conformação social futura.
A tematização da juventude pela ótica do “problema social” é histórica e já foi assinalada por muitos autores: a juventude só se torna objeto de atenção enquanto representa uma ameaça de ruptura com a continuidade social: ameaça para si própria ou para a sociedade. Seja porque o indivíduo jovem se desvia do seu caminho em direção à integração social — por problemas localizados no próprio indivíduo ou nas instituições encarregadas de sua socialização ou ainda por anomalia do próprio sistema social —, seja porque um grupo ou movimento juvenil propõem ou produz transformações na ordem social ou ainda porque uma geração ameaça romper com a transmissão da herança cultural. (Abramo, 1997, p. 28)

E ainda:
(...)Não é por acaso que a problematização é quase sempre então uma problematização moral: o foco real de preocupação é com a coesão moral da sociedade e com a integridade moral do indivíduo — do jovem como futuro membro da sociedade, integrado e funcional a ela. É nesse sentido também que na maior parte das vezes a problematização social da juventude é acompanhada do desencadeamento de uma espécie de “pânico moral” que condensa os medos e angústias relativos ao questionamento da ordem social como conjunto coeso de normas sociais. (Abramo, 1997 p.29)

Como algoz, a imagem de Marcelo Pesseghini nos re-apresenta (Jodelet, 2003) certas experiências sociais ameaçadoras: o da participação crescente de jovens em atividades do tráfico de drogas e a midiatização exaustiva de práticas transgressivas ou criminosas de quaisquer tipos protagonizadas por jovens. Como vítima, ele nos re-apresenta nossas experiências com a violência e o crime policiais – que nas manifestações de junho batizaram muitos das “nossas novas gerações” ruas afora, além de ter sido mais violenta ainda contra suas vítimas habituais: moradores de favelas, o pedreiro Amarildo, etc.).
No mesmo artigo já comentado aqui, o colunista da Folha diz que ambas as versões “servem para uma reflexão amarga sobre os tempos que vivemos” e que elas nos dão “motivos para duvidar dos valores da sociedade da qual fazemos parte” – exprimindo o potencial “pânico moral” que o caso Pesseghini contém. Mas, infletindo essa identificação entre imagem de algoz juvenil ou de vítima de policiais criminosos efetuada por Cony, pode-se pensar numa mediação entre ambas que seria estruturante das relações modernas entre adultos e jovens – o do controle dos jovens pelos adultos como meio de conciliação entre o medo e a esperança do futuro que a juventude representa na construção da modernidade:
Uma vez dotadas de especificidade própria, as fases da vida não se tornam apenas autônomas, umas em relação às outras. Permanecem interdependentes e mesmo hierarquizadas. Tal hierarquia constrói-se sobre a base de uma tensão, intrínseca à modernidade, entre uma orientação definida pela lógica da modernização (portanto, orientação para o futuro, através da afirmação conquistadora da renovação enquanto valor) e o fundamento normativo da ordem moderna, que afirma, ao contrário, a primazia do passado enquanto elemento de significação do futuro. Cabe ao passado, isto é à ordem social constituída, domesticar, sem destruir, os elementos de transformação e modernização inerentes à vida moderna. (Peralva, 1997, p. 18)

Ainda seguindo Peralva, para quem o controle dos jovens pelos adultos se conjuga como verbo domesticar, a história da sociologia da juventude foi marcada pelo binômio ordem social/socialização enquanto “categoria interpretativa central” (Peralva, 1997, p. 20). Na tradição funcionalista, onde a ordem social normativa seria concebida mais como um a priori do que como categoria de análise, isso desembocou na abordagem da juventude pela temática do desvio, nutrindo e nutrindo-se de representações sociais dos jovens como categoria social potencialmente resistente à ou carente de socialização, ou seja, como categoria problemática, vulnerável, amedrontadora.
Mas para essa autora, mesmo vertentes em ruptura com o funcionalismo – como a interacionista ou a classista – não fogem de um quadro analítico preso à oposição ordem/desvio. Seria apenas com a chamada corrente geracional, iniciada por K. Mannheim e retomada nos anos 1960 no bojo do engajamento político da juventude, que a sociologia entraria no domínio das representações sociais modernas em torno da esperança pelo suposto potencial inovador dos jovens: a juventude não é mais vista apenas como desviada ou vigiada “porque sua marginalidade inova e transforma” (Peralva, 1997, p. 20). Argumentando a partir de considerações do próprio arcabouço teórico geracional da sociologia de juventude, para a qual o potencial de inovação/transformação de uma nova geração depende do grau de tensão entre enteléquias (ordens de significados expressos por gerações diferentes), Peralva vai concluir que a aceleração das mudanças sociais nas últimas décadas tem dissolvido a oposição entre enteléquias e desorganizado o modelo ternário do ciclo de vida – estruturante da modernidade –, realçando os seguintes traços:
Embora nossa consciência dessas transformações seja ainda extremamente recente, já parece claro que o modelo educativo da socialização, co-fundador da ordem moderna, entrou em estado de obsolescência. Vários indícios apontam para um modo de ordenamento cultural que seria hoje, se recorrermos às categorias de Mead (1979), mais cofigurativo, no sentido de um aprendizado comum realizado pelos diferentes grupos etários face às injunções de um mundo que lhes aparece como fundamentalmente novo, do que pós-figurativo, como o foi o modelo da modernidade ocidental, pautado na transmissão da experiência passada como elemento de ordenação e domesticação do futuro, ou pré-figurativo como foi o modelo fundado nas utopias de que foi portadora a geração dos anos sessenta. (Peralva, 1997, p.23)

É nesse contexto que especialistas começam a utilizar uma noção, a de juvenização (Peralva, 1997) ou juvenilização (Rocha/Pereira, 2009) do mundo, contendo três condicionantes principais: a aceleração das mudanças sociais colocada anteriormente (com o futuro tornado presente e absorvendo o passado), a importância que adquiriram as TICs na dinâmica societal e a centralidade do consumo nas vidas contemporâneas. Para certos pesquisadores, como Rocha & Pereira (2009), analisando o que eles nomeiam de lógica cultural do consumo, com a juvenilização do mundo,
(...), a juventude passa a ser um valor agregado presente nos produtos – e absolutamente tudo que a ela se refere passa a ser, também, um produto. Os adultos já não apenas controlam, eles consomem a juventude.
Consumindo a juventude e seus estilos de vida, os pais se parecem cada vez mais com seus filhos, os avós com seus netos. Ainda que a alteridade se mantenha, já que a disputa pelo poder e pelo controle faz parte de toda dinâmica social, o que marca a relação entre as gerações já não é mais o conflito. O embate tão inspirador das forças antagônicas, que foram fundamentais para os movimentos políticos e culturais que conduziram os caminhos em décadas passadas, foi substituído pela tendência de aproximação entre as gerações. Se, antes, os adultos estabeleciam regras para a juventude, hoje ela é a regra. (Rocha/Pereira, 2009, p.100)
Para outros, como Abramo (1994, apud Peralva, 1997) e Peralva (1997), a juvenização assim inscide sobre o mundo social e sobre a sociologia da juventude:
O novo significado dos estudos sobre juventude emerge ao que parece desse conjunto de transformações. Enquanto o adulto vive ainda sob o impacto de um modelo de sociedade que se decompõe, o jovem já vive em um mundo radicalmente novo, cujas categorias de inteligibilidade ele ajuda a construir. Interrogar essas categorias permite não somente uma melhor compreensão do universo de referências de um grupo etário particular, mas também da nova sociedade transformada pela mutação. (Peralva, 1997, p. 23)
Mas é fundamental lembrar que essas mudanças em aceleração estonteante que teriam trazido a juvenização/juvenilização do mundo, não eliminaram o controle como representação conciliadora do binômio medo/esperança com que na modernidade representamos a juventude. Assim como não significam que estamos mais tolerantes em relação às idades, como afirma Peralva sustentando-se em Ghita Debert, porque na verdade o que se valoriza são estilos e valores de vida, eu acrescentaria estilos de consumo associados à juventude, não os jovens em sua concretude e diversidade. Apoiando-me em E. Rocha e C. Pereira,
[o]cupar um lugar no futuro insinua que a concepção de juventude não habita, pelo menos na perspectiva social, o presente. Como procuramos demonstrar, os jovens já não são mais crianças e nem ainda chegam a ser adultos; nessa transitoriedade, estão em eterno gerúndio, sempre iniciando, crescendo, aprendendo, concluindo. E, no gerúndio, as possibilidades de mudança de rumo são sempre abertas, permitindo desvios de percurso. Daí os perigos que representam para os adultos, que buscam segurança social a partir do controle que exercem sobre os jovens, mas daí também o fascínio, pois o jovem também é a ideia de poder levar uma vida nova ou a um futuro desejado. Assim sendo, a juventude passa a ser símbolo de um status social, ou melhor, de uma aura, uma simpatia pública, que estende o conjunto de valores presente na ideia de ser jovem para outras faixas etárias. (Rocha/Pereira, 2009, p. 98)

Um caso midiatizado como o da família de PMs massacrada mostra, por sua própria midiatização e repercussão, como uma certa representação do jovem como desviado em potencial mantém forte significação social. Ou seja, apesar de toda a chamada juvenização/juvenilização do mundo, jovens continuam sendo criminalizados muito facilmente – juristas brasileiros criticaram a rapidez com que os investigadores do caso tornaram pública a hipótese de um homicídio coletivo acompanhado de suicídio: nossas representações de medo da juventude, velhas como a modernidade, contribuíram com a facilidade da acusação quase imediata e amplamente midiatizada do adolescente.
Medo este que se exprime em representações sociais criminalizantes, reforçando o sentido securitário do tratamento da juventude – tratamento de “caso de polícia” para quem é jovem, pobre, escuro, habitante de periferia, mas que também pode ser exercido nos corpos de quem é jovem, rico ou bem remediado e mora em bairro “diferenciado, como vimos em junho na guerra entre balas de borracha/ gás lacrimogêneo contra o vinagre. Por outro lado, de um ponto de vista menos simbólico, ou seja, socioeconomicamente, os jovens, embora cada vez mais escolarizados, têm sido vítimas preferenciais do desemprego ou do trabalho precário em boa parte do mundo. Assim como, no Brasil, não só batem recordes nas estatísticas de morte violenta como têm composto um grupo crescente de jovens “nem-nem” (nem estudam, nem trabalham) – para não falar de parte de nossos jovens que se transformam em “soldados” de traficantes.
De tal sorte que a tal juvenilização do mundo não parece ser muito benéfica para os jovens de carne, osso, necessidades e aspirações desiguais e diferentes. Não é então por acaso que eles tenham protagonizado manifestações de protestos em várias partes do mundo, exprimindo sua diversidade e complexidade, mas revelando um mal-estar social generalizado e heterogêneo diante das consequências políticas, econômicas e simbólicas das aceleradas tranformações sociais das últimas décadas. Numa era de incertezas (Castel, 2009) será possível que a experiência dessas manifestações reacione a tensão entre enteléquias (Mannheim, 1990, apud Peralva, 1997) que, segundo os geracionistas, é fonte de inovação social? Esperemos e participemos, bucando mais diálogo do que tensão entre enteléquias diferentes.
O caso de Marcelo Pesseghini, entretanto, se se confirmar seu papel de algoz da família e de si mesmo, não indica razões de esperança. Pelo contrário, é caso com vocação para acionar as representações de medo da juventude que, no Brasil, articulam-se construtivamente à irracional e violenta proposta de redução da maioridade criminal. Por outro lado, se se confirmar que o massacre tem relação com uma quadrilha de roubos a caixas eletrônicos, estamos diante de mais uma expressão de que, em países como o Brasil, a violência e o crime policiais são uma das fontes das representações criminalizantes dos jovens.

REFERÊNCIAS CITADAS
ABRAMO, H. W. « Considerações sobre a tematização da juventude no Brasil”. In: Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6 .
BERGER, P. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis, Editora Vozes, 1985.
CASTEL, R. La montée des incertitudes – travail, protections, statut de l’individu. Paris, Éditions du Seuil, 2009.
JODELET, D. « Répresentation sociale : phénomènes, concept et théorie. » IN : MOSCOVICI, S. (dir.). Psychologie sociale. Paris: PUF, 2003.
MOSCOVICI. S. Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis, Editora Vozes, 2004.
PERALVA, A. « O jovem como modelo cultural. In: Revista Brasileira de Educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6.

ROCHA, E. & PEREIRA, C. Juventude e consumo. Um estudo sobre a comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro, Mauad, 2009.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

MARTINS, Hermínio. Experimentum humanum: civilização tecnológica e condição humana (Belo Horizonte: Fino Traço, 2012, 454 p.)



Micheline Batista, Artur Perrusi e Jonatas Ferreira

A Fino Traço, em 2012, preencheu uma lacuna editorial existente nas ciências sociais no Brasil, ao publicar essa coletânea de ensaios de Hermínio Martins dedicados à ciência e à tecnologia. Celebrado entre aqueles que se dedicam à sociologia e filosofia da tecnologia, Martins, Emeritus Fellow do St. Anthony College e pesquisador honorário do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, tem sua obra voltada à sociologia da técnica finalmente publicada deste lado do Atlântico. Formado na London School of Economics (LSE), ele foi professor nas universidades de Leeds, Essex, Oxford e professor visitante nas universidades de Harvard e Pensilvânia. Na LSE, foi aluno de Karl Popper e orientando de Ernest Gellner. O Experimetum Humanum traz ao leitor textos escritos e publicados em livros e revistas acadêmicas de Portugal e do Brasil e, em todos eles, a marca da enorme erudição de seu autor, seu trânsito fácil pela economia, sociologia, filosofia. Neste livro, Martins produz uma crítica cáustica ao otimismo tecnológico, essa espécie de reconfiguração da ideologia do progresso, inscrevendo-se numa tradição crítica na qual figurariam Herbert Marcuse, Ivan Illich, Jacques Ellul, Hans Jonas, entre outros. Sua erudição impressiona e amedronta quem pretenda resenhá-lo. Um dos méritos de sua exposição, todavia, é uma estratégia que, em muitos sentidos, lembra a modéstia de um pintor impressionista. A analogia aqui, se ela é pertinente, diz menos sobre a capacidade de produzir ensaios a partir de pinceladas ligeiras, o desejo de captar o instante, que de certa resistência em impor ao leitor um argumento rígido que o prive de suas próprias conclusões. Ao invés disso, solicita que sigamos sua erudição enciclopédica para, ao fim desse esforço, perceber a riqueza de conclusões que sugere sua argumentação. Neste sentido, esta resenha, ao reforçar algumas poucas linhas gerais de algo muito mais rico, presta desserviço à riqueza de sugestões às quais o leitor cuidadoso terá acesso.

I
Dividido em três partes, Experimentum Humanum expõe, na primeira delas (“Pensar a Técnica: Questões Preliminares”), a ideia de que os artefatos técnicos representam extensões do corpo humano. Porém, Martins não bate à porta de McLuhan para desenvolver sua reflexão, e sim à de Ernest Kapp, que, em 1877, teria sido o primeiro a apresentar essa perspectiva de forma sistemática, dando origem a uma teoria antropológica da tecnologia, cujo cerne é a ideia de “projeção orgânica” (Organprojektion). Para Kapp, as ferramentas primitivas devem ser vistas como projeções de partes do corpo humano, principalmente da mão (tigelas, ganchos, martelos), enquanto outras teriam sido criadas a partir das nossas estruturas internas, como as ferrovias (aparelho respiratório) e os cabos do telégrafo (sistema nervoso). Para um hegeliano de esquerda – daí o primeiro capítulo se intitular “Hegel, Texas: temas de filosofia e sociologia da técnica” –, refletir sobre esses artefatos constitui um caminho de autoconhecimento humano. Segundo Kapp, o avanço da tecnologia elevaria eventualmente o homem pré-tecnológico, radicalmente desprovido de autoconhecimento e de autoconsciência (homo absconditus) à condição de homo manifestus (a tecnologia como força exclusivamente desalienante). O “somatismo tecnológico” de Kapp, que aliás peca por seu antropocentrismo, acaba sendo sobrepujado por teorias que enfatizam um “gnosticismo tecnológico”, praticamente seu oposto, ou seja, por esse desejo milenar de conhecimento da essência das coisas e, ao mesmo tempo, por um desprezo do mundo material. O termo, cunhado por Victor Ferkiss, diz respeito a uma série de projetos tecnológicos que abrigam a pretensão gnóstica de transcendência da condição humana (sua finitude, contingência, mortalidade etc.), e não simplesmente melhorar e habilitar os seres humanos a superarem as forças naturais hostis – como se poderia depreender das especulações de Kapp. Aqui, encontraríamos a pretensão de legitimidade da tecnociência contemporânea. A intervenção direta em genomas substituiria, por exemplo, a lenta evolução biológica. No campo da inteligência artificial, considera-se a possibilidade de substituir, dentro dos próximos 40 anos, o cérebro humano (flashware) por software, isto é, o cogito por um computo (p. 19). Mas aqui não se trata meramente de uma análise do discurso científico, mas também a observação do papel fundamental que o gnosticismo teria desempenhado para o crescimento da ciência moderna, através da alquimia, da astrologia ou astrobiologia, do hermetismo e dos ensinamentos cabalísticos.
Neste contexto cultural amplo, Hermínio Martins atém-se a uma análise das tecnologias reprodutivas, da biotecnologia e do modelo computacional da mente, que são algumas das aplicações da tecnociência no mundo contemporâneo. O desenvolvimento das tecnologias reprodutivas, tão festejadas por feministas como Donna Haraway, tem suscitado uma “perplexidade moral” e originado “respostas políticas hesitantes” no Ocidente. O crescimento de um organismo num ambiente artificial externo ao corpo aponta para a possibilidade de criar réplicas do ser humano – cópias até melhores do que o original, ou mesmo cópias sem original, de que fala Baudrillard. O avanço das tecnologias reprodutivas, em especial a clonagem, desperta o temor do surgimento de um mercado para compra e venda de partes do corpo humano para transplantes. Com isso, suscita questões éticas, morais e mesmo legais, dentro de um contexto contemporâneo de privatização, atribuição de direitos de propriedade e apologia ao consumo. No caso das mães hospedeiras, que cedem seus úteros no formato “barriga de aluguel”, há uma situação de incerteza moral. Quem é a mãe da criança – quem encomendou, quem cedeu o óvulo ou quem gerou? Mas é no contexto de uma discussão sobre o estatuto da condição humana que essas questões devem ser colocadas – e o ponto de partida de Martins não nos deixa dúvida a esse respeito. A genética molecular, por exemplo, avançou nas últimas décadas associada à teoria da informação, à cibernética e à microeletrônica, levantando questões que demandam reflexão e, possivelmente, num futuro próximo, legislação. Os seres híbridos, como os ciborgues dos filmes de ficção científica, põem em evidência o que Martins chama de “projeto fáustico”, em que o ser humano brinca de deus. Se o corpo humano está obsoleto, essa obsolescência justificaria a hibridização do natural e do artificial, do humano e do não-humano.

No segundo capítulo, desta primeira parte, “Tecnologia, modernidade e política”, o autor debruça-se sobre duas das tradições sociológicas que se referem ao “domínio da natureza” pelo ser humano: a prometeica, acentuada após a Revolução Francesa, e a fáustica, influenciada pela Escola de Frankfurt e mais fortemente pela obra de Heidegger. Martins resume a tradição prometeica como aquela que une o domínio da natureza à emancipação do ser humano. Já a tradição fáustica pretenderia “desmascarar” os argumentos prometeicos, não enxergando objetivo na técnica além de sua própria expressão. Percebamos, nos dois casos, entretanto, que nos encontramos também no terreno de uma discussão sobre os mitos que organizam o pensamento moderno.

Forjada na primeira metade do século XIX, a visão prometeica, como esclarece Martins, nem sempre esteve comprometida com a ideia de um progresso material ilimitado. Evidentemente, a “infinitização” do prometeísmo é o que mais nos chama a atenção, seja no marxismo russo, com sua apoteose a um progresso técnico inevitável, seja em doutrinas como a da Tarefa Comum, de Fedorov, onde a ciência e a tecnologia significam a salvação da espécie e mesmo a ressurreição dos mortos. Uma inspiração para Mary Shelley e seu Frankenstein. Por outro lado, não foram poucas as versões “finitas” do projeto prometeico, como, por exemplo, em Comte, autor da fórmula “saber para prever, prever para poder”. Comte não acreditava em revoluções técnicas contínuas e enxergava um mundo pós-industrial “positivo”. O mais importante numa sociedade deste tipo seria o amor altruísta – por isso, argumenta Martins, Comte pode ser visto como o fundador do Positivismo anti-tecnocrático, por mais paradoxal isso possa parecer (p. 48). Outros pensadores prometeicos enalteciam valores semelhantes, como a justiça e a liberdade.

Movendo-se da tradição prometeica à fáustica, Martins aponta Spengler com sendo aquele que forneceu a primeira formulação geral de uma visão fáustica. Em A decadência do Ocidente o autor oferece um diagnóstico como um prognóstico para o mundo em crise (p. 49). O primeiro volume, de 1918, coincide com o colapso militar e industrial da Alemanha, de modo que a formulação de Spengler acabaria se tornando hegemônica nos tempos da República de Weimar e do Terceiro Reich. Assim como também foi significativa a receptividade a outros visionários, como Ernst Jünger, que postulava a guerra enquanto cumprimento da vocação técnica. Tanto Spengler quanto Jünger influenciam o pensamento de Heidegger, a quem se atribui uma imagem fáustica mais filosoficamente sofisticada da técnica. Heidegger concorda com Spengler na ideia de técnica como destino, ecos que podem ser encontrados também em Arendt, que advoga o papel decisivo da tecnologia nos conflitos armados do século XX.

Martins inicia o terceiro capítulo do livro, “O deus dos artefatos: o princípio de Vico e as tecnologias”, afirmando que a nossa fé na tecnologia moderna foi inspirada em promessas tal como preconizadas por Bacon e Descartes, muito mais do que pela observação de fatos empíricos. Mesmo o conceito de “sociedade científico-industrial”, enunciado em 1820 por Comte, era muito mais uma antecipação do que um retrato da época. E, assim, já nas primeiras décadas do século XIX falava-se na “conquista do espaço” e no “domínio (ou multiplicação) do tempo”. As máquinas a vapor, as ferrovias, o telégrafo elétrico, por exemplo, teriam viabilizado a conquista do espaço e do tempo, trazendo já para o fim do século XIX o sentido de simultaneidade global que a internet e a comunicação mediada por computador reiterariam e aprofundariam muitas décadas depois. Ao longo de todo esse tempo, não faltaram analogias entre as redes de comunicação e um “cérebro-mundo” (H. G. Wells), aproximando-se atualmente de um sensorium mundi cada vez mais conectado através de sensores eletrônicos ou microchips.

Martins crê na existência de algo de real e eficaz nessas utopias, seja no caso dos engenheiros saint-simonianos do século XIX, seja no partilhamento dos ideais do “Novo Comunalismo” californiano dos anos 1970, com seu repúdio às hierarquias e burocracias, exaltando o local e a criatividade individual. Esse movimento teria imprimido um sentido forte ao “pessoal” na expressão Personal Computer, não apenas por ser um artefato pequeno, de uso individual, mas principalmente por se configurar um instrumento para o empoderamento das pessoas. Reflexos neste sentido podemos observar ainda hoje no movimento pelo software livre ou através de redes como a Anonymous, de onde saiu o fundador do WikiLeaks, Julian Assange. O que essas utopias ajudam a criar é uma experiência de um sentimento de “sublime tecnológico”, misto de admiração e de temor diante da escala e potenciais destrutivos das grandes realizações técnicas. Em todo caso, parece que estamos inexoravelmente condenados ao progresso técnico – e a seus riscos e incertezas.

Um dos princípios filosóficos que têm legitimado ou mesmo definido a aventura tecnológica nos tempos modernos é o princípio ou axioma de Vico, autor de Scienza Nuova (1725): verum ipsum factum, verum factum convertuntur. Só podemos compreender aquilo que fazemos ou realizamos. Dito de outra forma, não podemos compreender as coisas naturais – e, mais profundamente, é preciso produzir a natureza para compreendê-la. No entendimento de Vico, Deus, criador de todas as coisas, é o único ser capaz de conhecer a “totalidade infinita do mundo” – um ataque direto ao cartesianismo e sua pretensão de ser o único método válido de conhecimento, desprezando, por exemplo, a história e a filologia. Como uma espécie de “segundo deus”, o ser humano seria então, para Vico, o “Deus dos artefatos”, imagem que foi reforçada no Renascimento – Deus como “criador de criadores”, que eram os artesãos, artistas e engenheiros, capazes de criar com base em materiais já existentes. Martins vai buscar em Marx, herdeiro do idealismo alemão, uma aplicação do enunciado de Vico (p. 88). Marx acreditava na “gestão racional da sociedade tecnológica” e via a tecnologia humana como algo transparente e domesticável. No futuro, isto é, no comunismo pleno, pós-histórico, se consideramos as forças produtivas (melhor dizendo, o progresso tecnológico) como o motor da história, todo o pensamento seria de essência técnica.

Para Sorel, o conhecimento científico avança com a intervenção, manipulação e fabricação das coisas e, de certo modo, provém da natureza. Na mesma linha, Bachelard defendia que é a “natureza artificial”, criada em laboratório, que explica, enriquece e transforma a “natureza natural” imperfeita, incompleta e estagnada. Natureza artificial que acaba afetando a natureza natural planetária, como é o caso dos CFCs (clorofluorcarbonos), presentes em aerossóis, geladeiras e aparelhos de ar condicionado. Para Dewey, “a ciência e a indústria são duas faces da mesma moeda”. Entre o método da ciência e o método tecnológico não existiria, portanto, uma diferença de princípio lógico, mas tão somente diferenças práticas. Para este autor, os valores cognitivos são essencialmente manipuláveis e controláveis, ao contrário dos valores contemplativos, orientados pela atitude estética. Seja em Vico, Marx, Dewey ou Bachelard, o que se afirma é o valor epistêmico do conhecimento daquele que faz o artefato, indicando que o obreiro possui e domina a obra porque é o seu autor.

No entanto, os objetos técnicos muitas vezes apresentam funcionalidades e finalidades inesperadas. A “lei de mudança de uso”, formulada em 1880 por E. von Harting e discutida por Richard von Mises, explicava que instrumentos mecânicos são aplicados para fins não antecipados, levando à criação de novos tipos de instrumentos. Na perspectiva tecnocêntrica, admite-se a possibilidade de criarmos máquinas capazes de se equiparar ou mesmo superar a inteligência humana. O homo sapientissimun e os pós-humanos continuariam o projeto do homo sapiens de “compreender e dominar o universo”, como proposto por Irving John Good. Porém, se tal máquina for mesmo capaz de conduzir a evolução do conhecimento e do poder tecnológico sem o ser humano, cairá por terra o princípio de Vico. A obra não só compreenderia como ultrapassaria o autor.

O quarto capítulo, “Tecnociência e arte”, parte da expressão e do conceito “sociedade científico-industrial”, formulados na França entre 1815 e 1820. O autor explica que esses construtos-tipo se referiam a traços societais que iriam surgir muito mais tarde, relacionados ao estágio final do desenvolvimento das sociedades humanas. De acordo com o “princípio de plenitude tecnológica”, tudo o que puder ser feito será feito, mais cedo ou mais tarde. A biotecnologia genética, por exemplo, mostra que é possível mudar e reconfigurar a vida natural. Se “a era digital não pode ser negada ou detida”, como prega Nicholas Negroponte, resta-nos descobrir se essa inevitabilidade é um aviso, uma ameaça, súplica ou promessa, ou ainda uma mistura de todas essas coisas. Mais uma vez, a identificação dos elementos religiosos contidos no discurso tecnológico é uma parte importante na argumentação do Experimentum Humanum. Assim, por exemplo, o mundo da tecnociência aparece como destino inevitável. Neste ponto, Martins retorna a aspectos já abordados em capítulos anteriores, como o saint-simonismo e a crença na inovação técnica como motor do crescimento econômico por excelência. Os saint-simonianos, além de entender a ciência como um “modo de cognição”, argumentavam que os cientistas deveriam exercer o poder espiritual na civilização contemporânea. Era o progresso científico-tecnológico servindo a fins emancipatórios – a poesia das fábricas industriais, a exaltação da eletrificação rural etc., relegando a pretensão espiritual do saint-simonismo a segundo plano. Antes da Primeira Grande Guerra, os futuristas já celebravam o ruído urbano-industrial, a velocidade dos carros de corrida e dos aviões – “o sublime tecnológico”, misto de admiração e espanto. O principal valor estético não estava na natureza, nem na obra de arte, mas no futuro em si. Um futuro dominado pela “estética das máquinas”, isto é, pela “mecanização da existência”. Sirenes no lugar de sinos de igreja, brocas em vez de pianos, metralhadoras ao invés de violinos. A exaltação ao bélico, aliás, era uma constante entre os futuristas italianos.

O filósofo da tecnologia Serge Moscovici foi quem cunhou, na década de 1960, a expressão “estado cibernético da natureza”, sucessor do industrialismo clássico. Na época, Moscovici não fazia ideia da dimensão dos processos informacional, digital e computacional que hoje controlam todos os aparelhos técnicos, da micro à grande escala, fazendo da cibernética uma espécie de metatecnologia. Tudo vira informação, inclusive a natureza e a cultura – evidentemente, não sem a ajuda da ciência militar, seja na construção da bomba de hidrogênio, seja na criação da Internet (p. 144-145). A primeira tendência da ciber-arte seria, portanto, explorar as possibilidades estéticas dos computadores e de suas ligações com outras tecnologias de imagem e reprodução de imagem. A segunda tendência seria ir além do exploratório, concebendo a ciber-arte como uma nova forma de criar o mundo, em conjunto com as artes pré-cibernéticas ou mesmo superando-as. Esta nova estética maquínica seria capaz de mudar a vida humana e de nos conduzir para além dela, marcando nossa morte ontológica, talvez até física. Neste processo de “desencarnação” é que ocorreria a conversão do flashware em software de modo único e irreversível. As provocações da chamada arte pós-humana são inquietantes. Ao invés da redenção, a superação, o que nos leva de volta a Ferkiss. Diante de um cenário tão apocalíptico, perguntamos: qual será o lugar do ser humano quando tiver criado seres superiores, as “ciberinteligências”? Seremos uma espécie supérflua? Seremos exterminados pelas nossas criaturas?

II
A parte II do Experimentum Humanum proporciona uma discussão “Do trágico tecnológico”. Martins tem uma visão trágica da tecnologia? A resposta mais imediata seria positiva, afinal, o autor admite que o “trágico tecnológico” seja inescapável (p. 198). Mas essa resposta deve ser nuançada, a começar que uma visão trágica não significa uma posição tecnofóbica. O autor não defende, por exemplo, um “futuro primitivo”, longe disso. Não propõe uma distopia, muito pelo contrário. Para utilizar as noções do autor, Martins possui uma simpatia pela visão prometeica da tecnociência – uma concepção que recrie criticamente os vínculos entre a ciência e a tecnologia com a emancipação humana e o bem comum – embora sem ingenuidade. Talvez, Martins professe algo parecido a um realismo tecnológico com face humana, nutrido do princípio de prevenção.

O primeiro aporte ao “trágico tecnológico” é a discussão sobre o risco, tal como esta figura no capítulo V, “Risco, incerteza e escatologia”. Para Martins, o desenvolvimento tecnológico tem uma característica paradoxal: aumentar os perigos, mesmo as tecnologias pacíficas. Com essa inferência, ele desmonta as ilusões sobre a possibilidade de um mundo harmonizado por uma tecnologia desprovida de riscos. Existiria uma lógica imanente à tecnologia que a levaria à ampliação do risco, uma espécie de astúcia (demoníaca) da razão tecnológica? Ou tudo é uma questão de modelos tecnológicos tornados hegemônicos e que excluíram modelos alternativos? Ou a razão técnica precisa, necessariamente, de um regulador deontológico exterior ao mundo tecnológico?

De todo modo, os alertas em relação aos riscos tecnológicos são mitigados por vários autores, segundo Martins, principalmente os “tecnofílicos”. Usando a tecnofobia como álibi, tais autores lastimam a baixíssima compreensão sobre as pequenas probabilidades do risco. Desinformados, os defensores dessas visões exagerariam a avaliação do risco – gerando um novo tipo de falsa consciência que tornaria o risco uma hipérbole. Haveria, assim, uma contradição entre as avaliações condescendentes dos analistas do risco e as visões pessimistas das populações ocidentais. A ciência seria tecnófila e o senso comum, tecnofóbico. As massas deveriam acreditar, como muitos cientistas creem, no Teorema (ou Axioma) de Existência Panglossiano (TEP): "há sempre soluções tecnológicas dos problemas engendrados pelas tecnologias” (p. 161). Uma crença de que as soluções tecnológicas para problemas tecnológicos apareceriam sempre a tempo corresponderia à visão da maioria dos cientistas? Como corroboração a essa hipótese, Martins cita os cientistas nucleares que acreditam piamente na possibilidade de centrais nucleares ultrasseguras, até mesmo de forma absoluta. Embora a tecnofobia tenha algum conteúdo irracional, boa parte do medo repousa em efeitos reais: os efeitos mutagênicos, teratogênicos, patogênicos, carcinogênicos e tóxicos ou, ainda, os impactos humanos, somáticos ou genéticos, bióticos, biosféricos, atmosféricos, climáticos da tecnologia em geral. Igualmente, a tecnofobia seria função da “vastíssima proliferação e difusão do modo tecnológico de viver” (p. 160), atuando como uma espécie de colonização sistêmica e criando uma “monocultura tecnológica” ou, o que dá no mesmo, um “politeísmo das tecnologias”.

A tecnofilia e o TEP retroalimentam-se e se nutrem da crença na “circularidade do risco na tecnologia” (p. 162): os ricos causados pela tecnologia serão resolvidos pela tecnologia. É uma crença poderosa, fincada no imaginário ocidental. Seria uma crença mobilizadora que neutraliza, inclusive, a crítica aos impactos tecnológicos. Haveria uma racionalidade objetiva neste campo: a mesma lógica, perfazendo um círculo, criaria o problema e a solução. Assim, a solução tecnológica do problema tecnológico gera novos problemas tecnológicos, ad nauseam. Como não ficar preso nessa lógica e não pender para a tecnofilia? Pode-se até pensar numa tecnofilia fraca: não haveria solução tecnológica definitiva, mas sempre provisória – ad eternum.

Mas é possível aprender com os fracassos (p. 189). Ora, eles “ensinam”, por exemplo, as engenharias. Haveria, com tal aprendizado, a produção de inovações tecnológicas para, justamente, evitar fracassos. Novamente, estamos diante do TEP. Porém, como não se sabe o ponto no qual determinada tecnologia está perto do caos ou do fracasso, o conhecimento seria “posfactual” – aprender com catástrofe apenas ameniza o problema, pois não garante que aconteçam outros fracassos. Afora que o fracasso, muitas vezes, não é muito bem compreendido. A ciência do fracasso, afinal, não é exata, e sim permeada de incertezas. Enfim, estamos diante do velho tema do domínio absoluto da razão instrumental.

Aproveitando a discussão sobre a noção de risco, Martins faz uma crítica forte ao construtivismo, principalmente o mais radical – um tipo de sociologismo que defende a construção social da realidade e não a construção da realidade social. A vítima é a antropóloga Mary Douglas que, segundo o autor, torna o risco uma construção social total. Existiram apenas “culturas do risco”, nas quais o risco seria imanente à cultura em questão, inexistindo correspondência fática com o real. Martins nega uma superdeterminação social de todo tipo de conhecimento – leigo, científico e tecnológico. Para Douglas, segundo Martins, as avaliações de risco têm uma sobredeterminação cultural, a ponto de o risco, por ser uma construção social, não ter relação alguma com qualquer referente da realidade. Seria assim autorreferente. É o “relativismo do risco”.

Depois do dito acima, a Análise do Risco Tecnológico (ART) e a Análise Probabilística do Risco (APR) seriam ilusões cultuadas pelos especialistas e gestores do risco? A resposta é negativa, pois Martins recusa simetrizar o conhecimento dos peritos ao do senso comum, bem como colocar de forma a priori a superioridade da expertise em relação a todas as outras formas de percepção do risco (p. 165). De todo modo, relata que não há consenso entre os peritos, nem na metodologia, nem na interpretação dos resultados concretos – o que aumenta a insegurança e diminui a capacidade de previsão, fundamental na gestão dos riscos. Não se pode superestimar a capacidade de antecipação e de prevenção do conhecimento científico.

Na verdade, Martins critica a aplicabilidade da definição canônica de risco (p. 166) – a análise bayesiana não dá conta de situações hipercomplexas do risco tecnológico. Seria possível mensurar toda situação de risco? Caso não seja, como prevê-lo? O que está em jogo, aqui, é a crença na matematização total do risco. A gestão do risco revelaria um limite à mensuração do mundo. A situação de incerteza, essa impossibilidade de calcular todos os riscos, seria chamada por Martins de “problemas mais ou menos restritos ou irrestritos dos riscos tecnológicos” (p. 169) – nesse sentido, muitos dos riscos graves seriam irrestritos. Além do mais, com a velocidade gigantesca das inovações tecnológicas, como acompanhar e, principalmente, calcular e gerir seus possíveis riscos?

Diante das debilidades em calcular e gerir o risco, Martins prefere o conceito de incerteza. Ora, o risco, por ser uma probabilidade, já implica a incerteza – ou ainda: o acaso faz parte da necessidade, logo, é impossível o controle absoluto do real. A incerteza seria ontológica e não epistêmica. O desejo de controlar o risco é a vontade de eliminar a incerteza. Mas, como parece impossível evitar as consequências negativas da tecnologia, o risco transforma-se novamente em incerteza. Por tudo isso, não causa surpresa que Martins tenha simpatia pela tese da “incompreensibilidade radical dos sistemas tecnológicos” – diz que “é, pelo menos, plausível” (p. 191). Martins, nesse ponto, assinala que a tecnologia trouxe poder, mas que os efeitos antropogênicos no planeta ocasionaram uma perda geral de controle. Quanto mais poder antropogênico, menos controle.

Numa parte importante da discussão sobre o risco, Martins analisa outro Teorema (ou Axioma) de Existência Panglossiano, só que dessa vez relacionado ao mercado e comum a determinados economistas: os problemas gerados pelo mercado só serão resolvidos pelo... mercado. Outro princípio semelhante ao TEP seria o Princípio de Substitutabilidade Infinita (PSI): tudo pode ser substituído, principalmente os recursos naturais. A economia capitalista poderia, assim, tornar-se absolutamente artificial. Nesse momento, Martins empreende uma discussão importante, ao ressaltar a articulação umbilical entre a tecnologia, a ciência e o mercado ou, resumindo mais, a tecnociência e o mercado ou, ainda condensando tudo, o sistema tecno-científico-mercadológico.

A fusão com a tecnologia e, depois, com o mercado recolocou a discussão sobre os valores da ciência. A velha autonomia da ciência, tão reivindicada pelos cientistas, parece esmorecer, atualmente. O antigo CUDOS (valores do cientista e da ciência, segundo Merton: comunismo – partilha dos resultados –; universalismo; desinteresse; originalidade – contribuição a novos conhecimentos –; e ceticismo) vai se transmutando em PLACE (propriedade; localismo; interesse; compromissos; e expertise). É uma mudança deontológica e vocacional. O cientista torna-se um empreendedor e a ciência, uma engenharia.

Se a passagem do CUDOS ao PLACE, como sentido vocacional da tecnociência, não obstaculiza a produção científica, até mesmo a desenvolve, tal fato significaria que a ciência prescindiria, nas condições da investigação científica e da inovação tecnológica, de valores de base altruísta e vinculados ao bem comum. Caso essa hipótese esteja correta, podemos ir além e nos perguntar: a prática científica tem uma relação necessária com valores e práticas democráticas? Ou pode conviver com ambientes totalitários, principalmente as ciências duras, sem que sua produção e criatividade sejam afetadas de maneira significativa? A comprovação de tais inferências recolocaria, como absolutamente prioritárias, as discussões éticas no seio mesmo do habitus científico. Até então, a ciência prescindiu de discussões axiológicas, porque existe a crença de que há uma relação necessária entre a produção científica e a democracia. Porém, a liberdade do cientista corresponde à liberdade civil?

Depois de toda essa análise crítica, cabe a pergunta: como evitar as catástrofes? A resposta não é conclusiva. Além do mais, os estudos de custos e benefícios desconsideram, geralmente, as calamidades ou catástrofes que têm um risco baixo. Martins fala de “razoabilidade” (p. 186). Prega uma mudança política, cujo objetivo fosse uma relação mais estreita entre tecnociência e democracia – uma relação mais transparente, talvez colocando, de vez, a tecnociência no espaço público democrático. Martins abre outro caminho ao defender a utilização de critérios popperianos de falseabilidade para avaliação de tecnologias (p. 198). Seria um critério cognitivo e ético. Há uma defesa do falibilismo popperiano como uma ética para a tecnologia (p. 200). Seria apenas uma indicação? Na verdade, Martins considera absolutamente necessário o surgimento de uma ética, cuja função seria balizar o uso da tecnologia e direcionar as inovações tecnológicas. Como uma espécie de deontologia da tecnologia, Martins defende o Princípio Precaucionário de Precaução (PP), uma regulação normativa construída fora do espaço tecnocientífico, mas que pode regulá-lo por dentro. Com a normatização do PP no Estado de Direito, o ônus da prova fica com os produtores de tecnologia. Apesar disso, o PP não prescreve a sustentabilidade forte, e sim a fraca: “o capital natural pode ser destruído desde que sua perda possa ser compensada pelo aumento de capital artificial” (p. 202).

Aproveitando o ensejo ético (p. 206), Martins denuncia a acrasia (fraqueza da vontade). Seria um termo para entender uma situação bem típica: produzir uma ação, fazer uma coisa ou tomar uma decisão, mesmo sabendo que podem ser nocivas para nós todos. Com a acrasia, há uma dificuldade imensa em mobilizar práticas e argumentos contra determinadas ações que nos trarão prejuízos. Aos poucos, a fraqueza da vontade pode se transformar em falta de vontade, trazendo como consequência la belle indifférrence diante do mundo e suas tragédias.

Não causa surpresa que Martins termine a análise sobre o risco discutindo ética, pois o capítulo VI, trata justamente de um problema “demoníaco”: “Experimentos com humanos, guerra biológica e biomedicina”. É sobre o Mal, portanto, de que se trata – o Mal Tecnológico? E o começo do Mal é eugênico – justamente a eugenia negativa, quando se torna consenso a prevenção do desvio social, incluindo os psiquiátricos. É um mundo onde a biologia e a medicina começam a colonizar o campo axiológico e, aos poucos, as classificações sociais passam as ser norteadas pela trindade normal-anormal-patológico. Bem pior: é um mundo onde a biologia torna-se um dispositivo de guerra. Nesse capítulo, tomamos conhecimento da Guerra Biológica (GB) implantada e travada pelo Japão, antes e durante a Segunda Guerra. Os fatos são impressionantes e comparáveis aos feitos dos nazistas. Foram 13 anos de intensa GB. Segundo Martins, o Japão foi o primeiro país a levar a cabo uma biomedicina tanatocrática industrializada (p. 216). Todo o aparato biomédico japonês estava envolvido na GB. Houve um “utilitarismo” científico que facilitou ou teve uma afinidade eletiva com a experimentação humana. A guerra torna tal utilitarismo uma ideologia quase irresistível, que continua com alguma eficácia, mesmo em tempo de paz.

Deveriam os cientistas, por motivos éticos, descartar descobertas científicas que foram realizadas em condições abjetas, envolvendo seres humanos? Se, à primeira vista, a pergunta nos encaminha rapidamente a um retundo sim, as respostas dos cientistas tornam a discussão mais nuançada. Por exemplo, o bioeticista Arhtur Caplan tem a seguinte opinião sobre a experiência em que foi inoculada sífilis em prisioneiros negros, uma experimentação com seres humanos que durou quarenta anos e só acabou em 1972: “o que sabemos hoje dos efeitos devastadores da sífilis sobre o coração, o cérebro e as articulações é, em parte, baseado nesse estudo” (p. 221). Utilizar os resultados da pesquisa faz-nos cúmplices das experiências ou, ainda, aumentando o peso da pergunta, utilizar os resultados das experiências nazistas em humanos nos torna cúmplices do nazismo? Ou, como defendem alguns “praticantes da biomedicina” (p. 236), os dados devem ser utilizados pela ciência e, principalmente, pela medicina, para não serem desperdiçados? Podemos perguntar, nesse momento, quais são as pautas éticas que estão em jogo. Na defesa do aproveitamento, faz-se uma diferença utilitária entre a experiência (denunciada com vigor) e os resultados científicos (aproveitados, pois geram benefícios aos seres humanos). Se uma determinada experimentação com humanos, cujo protocolo de procedimentos parece mais com sevícias e torturas, resulta na descoberta da cura do câncer, devemos desperdiçar tal resultado por motivos éticos que não separam a experiência do resultado?

Por outro lado, aquém e além das querelas éticas, o mercado abre a possibilidade de aproveitar os resultados científicos de experiências inumanas. Por que não, principalmente no âmbito de uma medicina ultraprivatizada, logo, inserida nas lógicas econômicas do mercado capitalista? Numa nota de rodapé, Martins alerta sobre tal possibilidade e, weberianamente, pergunta-se sobre a pertinência de se pensar a “situação clínica” ou a “situação biomédica” como “situações de classe” – tais situações não implicam “oportunidades de mercado” e acessos a bens no mercado? E vai ainda mais longe no alcance de sua análise: o mercado capitalista da saúde, além de sobredeterminar a inovação tecnológica (vide a indústria farmacêutica), pode fazer o mesmo em relação à estratificação social. A produção biológica de seres pós-humanos (a “ciborgueficação” do humano, por exemplo) traria uma reconfiguração na hierarquia social, agora comandada por uma biologização da estratificação social – a desigualdade, antes social, seria enfim absolutamente naturalizada, ou melhor, seria artificialmente naturalizada.

Martins, nesse momento, aproxima-se da noção de vida nua de Agamben. Nesse mundo de horrores tecnocientíficos, a vulnerabilidade social ficaria passível de experimentação biomédica. Em nome da “experimentabilidade” (p. 222), os excluídos seriam sacrificáveis em prol da ciência e, claro, do bem-estar dos pós-humanos. Martins tenta mostrar que, entre a “tanatocracia” e a “biocracia”, as passagens são múltiplas e cotidianas. Há uma fabricação de microdistopias já no cotidiano da tecnociência biomédica – afinal, existem agora microeugenias de mercado (p. 286). Tais passagens indicam um sentido vocacional entre os tecnocientistas? Martins apenas insinua, mas alerta, por igual, que a dignidade é forte e volátil, ao mesmo tempo, no sistema ultra-abstrato e virtual do capitalismo contemporâneo. Radicalizando essa posição, pode-se indagar se o cientificismo torna rarefeita a dignidade ou se o cientificismo facilita a passagem, nas palavras de Martins, do “fanatismo da pesquisa” ao “fanatismo da transgressão”. Nesse sentido, não haveria limite ético ou mesmo humano, dada a sua infinita potência, à tecnociência.

Seria palpável a concatenação lógica da discussão de Martins. Da análise do risco, ele passa à experimentação em humanos e, como possível desdobramento geral, desemboca justamente no capítulo VII, “Para uma sociologia das calamidades” (p. 255). Não se negue a lógica desse caminho, pois a calamidade está presente na potência mesma da tecnociência – os impactos tecnológicos, no nosso mundo, rodopiam o pião da dialética entre o céu e o inferno. E, como tais calamidades não são “naturais” e sim “antropogênicas”, são assim, para utilizar uma linguagem construtivista, “construções sociais”, logo, faz-se presente a necessidade de uma abordagem sociológica. Nesse momento, voltamos ao debate sobre a visão fáustica da tecnologia. Seriam tecnologias puras, sofisticadas e belas, “não subordinadas a baixas finalidades utilitárias do bem-estar banal das grandes massas, mas a grandes missões coletivas” (p. 259). Seria a visão nazista, pois a tecnologia como vontade de poder, sem fins humanitários. Fausto, no caso, seria o Prometeu Transgressor (o tecnocientista defensor do “fanatismo da transgressão”) e não o Prometeu benfeitor da humanidade.

Faz parte da tradição alemã (Spengler, Jünger e Heidegger) o medo do Fausto, talvez porque só exista, na verdade, um Prometeu, justamente o Transgressor. Seria o domínio tecnológico da Natureza, prescindindo de qualquer fundamentação ética – a tecnologia, na sua potência, seria um movimento infinito. A subordinação da tecnologia ao bem comum e à emancipação da espécie (visão do Prometeu Benfeitor) seria atrelá-la à finitude humana – daí a necessidade da visão fáustica de ultrapassar o demasiado humano. Martins não é alemão, mas também tem medo de Fausto. Como já vimos, relaciona o complexo tecnocientífico aos ditames do mercado capitalista. Está embutida, nessa relação, a afinidade eletiva entre a visão fáustica e a acumulação ampliada do capital. Afinal, os dois mecanismos têm como mira o infinito, isto é, a abstração ou “neutralização” (p. 274) de qualquer limite humano. A experimentação transmutou-se em empreendimento, cuja conotação tecnocientífica ou mercantil misturam-se, a ponto de serem indiscerníveis. A biotecnologia torna-se, assim, a engenharia biológica dos seres humanos – a natureza humana torna-se, enfim, completamente artificial.

A visão fáustica impõe um ritmo normativo impossível. A ética não consegue se antecipar ou regular a tecnologia (p. 260); na verdade, a ética está sempre correndo atrás, adaptando-se às novas conjunturas tecnológicas. A ética de Fausto é a adaptação ou, num sentido mais prosaico, posterior à catástrofe. Como afirma Martins: “se prosseguirmos na trajetória atual e o pior acontecer (e nunca termos a certeza ou uma alta probabilidade confiável de que não vai acontecer) será demasiado tarde” (p. 261). Seria o “dilema do zero e do infinito” – não seria arriscado dizer que não há resolução ética a esse dilema, exceto a sua superação. Por isso, a tecnociência fáustica, ao colocar a ética ao seu reboque, pode também impor “neutralizações”, “adiaforizações” (ou mesmo, no sentido agambeniano, “profanizações”) a tudo que era ou é sagrado e intocável – assiste-se a tal fenômeno na bioética, sempre a reboque das biotecnologias reprodutivas, por exemplo.

Como evitar essas novas calamidades e, ao mesmo tempo, combater a tecnociência fáustica? Martins discute a relação entre o “dever fazer” e o “poder fazer”. Critica o dever de se fazer tudo que seja tecnologicamente possível (p. 270). É o Princípio de Plenitude Tecnológica (PTT): tudo que é tecnologicamente possível será um dia realizado – não se deve combater a inovação tecnológica; não se deve lutar contra o progresso. Insinua uma ética do “não fazer” de Hans Jonas ou da “vontade” de Renouvier (p. 272). Mas, aparentemente, tais éticas não o satisfazem – afinal, provavelmente o problema não se esgote na ética.

Seria nesse instante que talvez percebamos o momento de desespero (logo, num sentido trágico, de esperança) de Martins. Inicialmente, é propedêutico: “o Prometeanismo iluminista precisa ser corrigido e reformado porque se confunde cada vez mais, na prática, paradoxalmente, com o faustianismo anti-iluminista” (p. 296). Depois, vai muito além das fronteiras desse mundo, ao defender uma nova Era Axial (período histórico no qual surgiram as grandes religiões). Ora, Martins faz uma relação entre as inovações tecnológicas (a agricultura, por exemplo) e a Era Axial. Há, aqui, a sugestão de que inovações tecnológicas de longo alcance colocam ou reconfiguram profundamente os valores de toda uma época. Como estamos no meio de incríveis transformações tecnológicas, cujo foco, inclusive, é a própria natureza humana, talvez ocorra (ou exista a possibilidade de) uma Nova Era Axial que consiga uma rearticulação ética global, reconfigurando “prometeicamente” as relações entre o humano e a tecnologia. É preciso interpretar essa esperança como uma aposta. É um desafio de grande alcance – não devemos negar sua sedução como utopia. Talvez, por isso, Martins quase peça a Deus pela resolução do Grande Impasse da Tecnologia (GIT): “Oxalá, os tempos sejam propícios a uma cristalização ética e axiológica comparável à da Época Axial, em que certamente a ética, a estética e a filosofia ambientais, a sensibilidade ambientalista, como a reconsideração urgente e fundamental da antropologia filosófica e da zoologia filosófica dos limites do humanum e das nossas relações com os (outros) animais terão um papel importante na clarificação da ordo amoris” (p. 291).

III
Sob o título “Passagem para o Pós-Humano”, a terceira parte do Experimentum Humanum abriga um conjunto de ensaios dedicados a pensar alguns temas-chave das transformações que a ciência e a tecnologia vêm impondo à humanidade – até o ponto de que alguns teóricos venham a pensar acerca de uma superação técnica do humanismo. Um dos temas que compõem as reflexões sobre a eventualidade de nosso presente pós-humano é certamente o da aceleração. A esse respeito, há muito o que aprender com Martins. Procedendo a uma importante genealogia daquilo que Paul Virilio chamaria de dromocracia, três “variedades de aceleracionismo” são identificados entre os teóricos que já se dedicaram a este tema. A primeira delas diz respeito à identificação que existe entre as novas tecnologias de informação e comunicação e a aceleração. E aqui não se está falando apenas de Paul Virilio, do “tom apocalíptico” que ele impõe mediante diagnósticos de crise da subjetividade, impossibilidade de reflexão na “dromoscopia”. O economista sueco Staffan B. Linder, ao teorizar sobre a “fome do tempo”, já a partir da década, via na preferência por produtos descartáveis um aspecto importante do aceleracionismo. Nas “três últimas décadas”, considera Martins, “vivemos numa economia-mundo de maximização de fluxos – energéticos, informacionais, materiais, virtuais, financeiros […] e, conversamente, de minimização dos stocks” (p. 307).

Em oposição à aceleração da vida, do consumo, das “guerras do tempo”, de que fala Jeremy Rifkin, Martins considera também o surgimento de movimentos de resistência, tais como o “slow food movement”, ou o “slow cities”. A “aceleração da aceleração”, ou seja as transformações sociais e culturais que sobrevêm à “mudança técnica”, tal como propõe o sociólogo Hornell Hart, ou a ideia de “ortogênese tecnológica”, “como um momento dos processos de aceleração cósmicos e biológicos”, de que nos fala o filósofo François Meyer, constituem, entre outros, momentos importantes desse primeiro tipo de percepção da aceleração. Um segundo modo de perceber essas transformações é dado por aqueles que defendem que “o crescimento exponencial do conhecimento tecno-científico e do progresso tecno-econômico é indispensável para suportar as dificuldades que decorrem da crise ambiental generalizada e das alterações climáticas sem paralelo nos últimos 10.000-12.000 anos” (p. 310). A tese aqui é claramente acelerar a aceleração para solucionar os problemas acarretados pela aceleração tecnológica – Martins, recorrendo a uma metáfora já usada ao longo de seu livro, qualifica esse tipo de postulação de “panglossianismo dinâmico”, o que nos parece justo. A terceira variedade do aceleracionismo corresponde à percepção de que os avanços nas tecnologias da computação, na robótica, na nanotecnologia, abrem a possibilidade de um futuro pós-humano, um futuro em que as limitações de nossa condição biológica seriam superadas. Variação do panglossianismo dinâmico, posto que a aceleração tecnológica parece não nos dar alternativa que não seja reconhecer e aprofundar nosso destino ciborgue, os transhumanistas parecem não estar muito distantes de uma antiga tradição do pensamento ocidental, e de seu sentido religioso, para quem, afinal, nossos limites biológicos sempre foram um entrave para a realização plena do espírito.

Um dos méritos do oitavo capítulo do Experimentum Humanum, “Aceleração, progresso e Experimentum Humanum”, é propor a questão populacional, tal como ela surge sobretudo a partir de Malthus, ou seja, no século XVIII, como âmbito crucial das discussões sobre aceleração. Martins não faz muito estardalhaço acerca de seu gesto teórico, mas o que temos aqui, como a própria estruturação do capítulo ajuda o leitor a depreender é uma confluência entre considerações sobre aceleração e 'biopolítica' (o autor não usa o jargão foucaultiano). E isso é em si teoricamente auspicioso. Que os elementos teológicos, em cujo bojo surgem essas discussões, sejam também apresentados, é um bônus considerável. “Em uma primeira fase, esta problemática foi tratada por teólogos cristãos nos séculos XVII e XVIII, tanto luteranos alemães como anglicanos, e a demografia surgia como uma demoteologia em que o papel da Providência como deus arithmeticus, que dispõe, na frase bíblica, de “peso, número e medida” […] foi crucial” (p. 315). Se é possível dizer que as postulações malthusianas sobre uma contradição entre a tendência de crescimento geométrico das populações humanas e o crescimento aritmético dos recursos necessários à sua subsistência como problema central, em torno do qual serão formulados os ideais de progresso e perfectibilidade iluministas, não há também como negligenciar o quanto elas foram importantes para que Wallace e Darwin chegassem, por vias separadas, à ideia de uma concorrência geral entre os seres vivos (p. 316). Economia, biologia e teologia, portanto, amalgamam-se em uma mesma discussão. Em 1864, destes elementos, Wallace concluía que a extinção de raças humanas “inferiores” seria algo desejável – tese aceita em termos gerais por Darwin, como o demonstra sua correspondência com Wallace (p. 317). Esse conjunto de ideias, por seu turno, a defesa da “sobrevivência dos mais aptos”, tem uma influência decisiva no utilitarismo de Herbert Spencer, formulação que vem, por seu turno, reforçar o darwinismo, ao conferir-lhe um sentido ético, e transcendente. Assim é que, para o utilitarista William Paley: “a maximização da soma algébrica de prazeres e dores no mundo vital tornava patente a arte sábia do legislador divino” (p. 319).
A argumentação deste capítulo é concluída com uma reflexão acerca da singularidade humana diante da aceleração tecnológica, reflexão que passa em revista especulações transhumanistas, acerca de uma transformação ontológica radical da condição humana; ou a expansão tecnológica em nível molecular – e a constituição desse terreno novo de investigação que Drexler chamou de nanotecnologia e que resulta da confluência entre a genética, a física, as ciências da informação e as neurociências – e a disseminação dos inúmeros fantasmas ali albergados, que vão da nanopoluição à destruição da vida na Terra; ou ainda os discursos acerca da nossa nova condição ciborgue. Martins retoma, assim, argumentos já expostos em outros momentos de sua coletânea de ensaios. O interessante é perceber que, ao longo de todo o texto, em seu diagnóstico das novas tecnologias e da aceleração, Hermínio Martins sublinha constantemente a importância da análise de elementos econômicos, científicos, ou mesmo dos que provêm da ficção científica, mas também de influências culturais escatológicas, ou seja, a presença de um discurso religioso conferindo um sentido particular a todas essas especulações sobre o inevitável de nosso destino pós-humano. Assim: o que fazer da perspectiva de uma “segunda antropogênese”, da constituição deste “Novo Adão”? “Poderá deixar de ser um mero homo faber […] e tornar-se finalmente o faber homininis, […], e não por qualquer processo de desenvolvimento espiritual, embora um Homem de certo modo tacitamente autodeífico” (p. 344).

No capítulo XIX, sob o título “Biologia e política: eugenismos de ontem e de hoje”, Martins se debruça sobre a condição humana convertida em um problema técnico e científico, mas sobretudo político. De certo modo, o que assusta o leitor não é a existência de um discurso historicamente datado sobre os cuidados positivos ou negativos a serem tomados pelo Estado para corrigir o que seria uma tendência biológica dos menos inteligentes serem mais férteis que os mais inteligentes, aqui considerados como geneticamente superiores, mas a permanência desse discurso entre cientistas na contemporaneidade. Assim, em 1996, Richard Lynn argumenta que a “deterioração genética” nos países industrializados é algo bem real, que é apenas contrabalançado no curto prazo por fatores ambientais (como uma melhor alimentação das raças ditas “inferiores” – p. 259-260). Para Martins, a manipulação genética surge para alguns cientistas como possibilidade de um “novo eugenismo” em que os “mais inteligentes” poderiam ser clonados em massa, e um melhoramento da espécie humana passaria a ser possível. “O eugenismo sempre partilhou alguma coisa da dicotomia fundamental do apocalipticismo religioso, ou das ideologias seculares catastrofistas: ou o abismo, ou a ascensão, tertium non datur” (p. 366).

Largamente concebido como uma prerrogativa do Estado, o eugenismo clássico é hoje superado por algumas tecnologias reprodutivas que colocam nas mãos dos cidadãos a possibilidade de decidir, mediante genetic screening, ou diagnóstico genético pré-implantação, entre muitas outras tecnologias, acerca de que tipos de fetos são desejados, e quais deveriam ser descartados. “As tecnologias em questão também tornam possível o feticídio em massa de fetos do sexo feminino” (p. 367) em países como a Índia e China. E, neste caso, estamos falando de biotecnologias simples e baratas, o ultrassom e a amniocentese.

O décimo capítulo, que conclui o Experimentum Humanum, intitulado “Verdade, Realismo e Virtude”, discorre sobre o estatuto das ciências modernas diante do ceticismo que, antes de ser uma falha em sua trajetória, parece estar intimamente relacionado às suas trajetórias. Neste contexto, todo ceticismo epistemológico, na medida em que reduz o problema da verdade a uma adequação entre intelecto e coisa, ou entre sujeito e objeto, traz sempre à tona a questão da finitude e impotência humana diante de um mundo que já encontramos constituído. E se o movimento da ciência moderna é em grande medida de superação ou suspensão dessa dificuldade epistemológica, a própria ideia de um conhecimento infinitamente aperfeiçoável dá uma noção do quão pessimista é a consciência científica acerca da perspectiva de uma superação definitiva do ceticismo. A “novidade epistêmica do mundo moderno, as ciências matemático experimentais” (p. 408), não são páreo para esse elemento mais fundamental da própria cultura ocidental, posto que, mesmo que cheguemos a postulados matematicamente universais e seguros, a dificuldade é sempre, como diria Kant recorrentemente em suas três Críticas, como aplicar a lei geral ao caso particular, ao objeto que temos diante de nós. Assim, “Para Popper, nenhum enunciado pode ser 'justificado' e a verdade, compreendida no sentido da Teoria da Verdade como Correspondência, numa versão semântica, supostamente tarskiana, da vetusta tese da verdade como adequatio rei et intellectus, neste falibilismo, como um ideal regulativo imprescindível para a ciência, e todo conhecimento objetivo, e nunca como um fato consumado” (p. 409).

Assim, o “relativismo adverbial” de Nelson Goodman, sua crença no caráter irredutivelmente plural das visões de mundo que compõem o que chamamos de realidade, e aqui também nos recordaríamos de Weber, é um elemento estruturante da própria dinâmica científica. Martins acredita, na verdade, que o relativismo epistemológico não é apenas um traço da ciência moderna, mas também de sua ética e estética. Em todos esses âmbitos, o ceticismo é condição de surgimento de uma sociedade de indivíduos, acrescentaríamos. E se ele também foi entendido como companheiro inevitável de soluções autoritárias de poder, pois que, neste caso, verdade e poder parecem se referenciar mutuamente, parece não haver dúvida de que o “relativismo ético”, por exemplo, pode ser postulado, na obra de Hans Kelsen, por exemplo, como um convite à democracia.

É como reflexão que solicita constantemente uma politização, ou seja, que pode ser facilmente convertida numa discussão sobre poder que as ciências modernas, no âmbito de seu ceticismo estrutural, apelam à técnica. Num certo sentido, o que temos aqui é uma rearrumação de um postulado da filosofia medieval segundo o qual conhecer, ter acesso à verdade das coisas, é poder produzi-las - postulado reelaborado por Vico, no século XVII. Deus, como artífice do universo, tudo conhece. Para a tecnociência, assim, conhecer o real está diretamente associado à capacidade de criar realidade. Evidentemente, essa resposta traz em seu bojo questões éticas dificilmente contornáveis quando nos apercebemos do ceticismo também neste âmbito.

Vivemos numa época em que a questão da autonomia da ciência não se coloca já no plano da sua relação com o poder político, com as ideologias oficiais, como na ideocracia soviética, ou com os grandes sistemas de crenças tradicionais, pelo menos no Ocidente. Na conjuntura atual, os processos potencialmente subversivos da autodeterminação ou auto-regulação científica, que no passado pelo menos eram da primeira importância para os cientistas, decorrem, em primeira instância, da desdiferenciação e interpenetração da ciência e da tecnologia, da tecnociência e da economia, da “capitalização do conhecimento”, do novo modo de produção do conhecimento científico, coletivizado, finalizado, industrializado e comercializado do princípio ao fim (p.429).