segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Aceleração tecnológica, consumismo e sofrimento


 Jonatas Ferreira
 Há alguns anos não pesquisava, nem discutia temas relacionados aos desenvolvimentos da nanotecnologia no Brasil e no mundo. O convite simpático de Wilson Engelmann, a partir de uma sugestão de Paulo Martins, creio, para participar deste XI Seminário Internacional Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente foi uma oportunidade de revisitar um tema que me é caro, como o é a nanotecnologia na contemporaneidade, relacionando-o à aceleração tecnológica e ao sofrimento que dela decorre. Participar deste Seminário, portanto, é uma forma de me reapropriar um pouco deste tema importante que mobiliza a todos aqui, aprendendo com as contribuições daqueles que a ele lhe devotaram uma atenção mais fiel que a minha. É também uma oportunidade de rever amigos. Agradeço, por tudo isso, a Wilson Engelmann e aos organizadores deste evento.
Deixem-me começar falando brevemente sobre o tema da aceleração. Diversos autores, com interesses variados que vão da sociologia, à antropologia, filosofia e teoria da técnica têm elegido a aceleração como um dos fenômenos modernos mais significativos na contemporaneidade. Hermínio Martins, por exemplo, tem falado recorrentemente de uma “aceleração da aceleração” - impulsionada pelas tecnologias da informação e pelas nanotecnologias - e dos tristes e inóspitos cenários em que uma adaptação pós-humana se tornaria cada vez mais inevitável. Paul Virilio nos remete a um contexto dromológico no qual já não podemos contar com sujeitos reflexivos capazes de se orientar racionalmente no mundo, um contexto no qual o projeto iluminista de controle sobre a vida humana e a realidade natural de modo amplo se torna impensável. Os aparatos tecnológicos nos fragmentam e recompõem sem que possamos imprimir um mínimo de identidade naquilo que fazemos. Jonathan Crary nos relata as implicações de um assalto ao sono, de um capitalismo que se programa para operar 24 horas por dia, 7 dias por semana. “Um ambiente 24/7 apresenta a aparência de um mundo social quando na verdade ele se reduz a um modelo associal de performance maquínica – uma suspensão da vida que mascara o custo humano de sua eficácia. Não se trata mais disso que Lukács e outros autores identificaram, no começo do século XX, como o tempo vazio e homogêneo da modernidade, tempo métrico ou calendário das nações, das finanças ou da indústria, de onde estavam excluídos tanto as esperanças quantos os projetos individuais. O que há de novo é o abandono a relento da própria ideia de que o tempo possa ser associado a um engajamento qualquer em projetos de longo prazo, incluindo aí fantasmas de ‘progresso’ ou de ‘desenvolvimento’ (Crary, p. 19). O instantâneo cada vez mais parece ser o nosso horizonte temporal, segundo podemos depreender das análise de Crary. O filósofo Peter Sloterdijk, por seu turno, fala-nos acerca dos aspectos niilistas de uma mobilização infinita dos seres que é promovida pelas tecnologias da velocidade. “Eis aí o que nos proporciona a fórmula dos processos de modernização: o progresso é movimento em direção ao movimento, movimento em direção a mais movimento, movimento em direção a uma maior aptidão para o movimento” (La mobilisation infini, p. 35). Nesta mobilização sem sentido de todas as coisas pelo imperativo da velocidade, nós somos capturados. Hartmut Rosa, de uma perspectiva mais sociológica, oferece uma análise interessante das tensões e intensidades entre diferentes âmbitos da aceleração, nomeadamente, no campo tecnológico, social e individual. “Experimentar a vida em todos os seus altos e baixos e em sua inteira complexidade se torna a aspiração central do homem moderno. As opções oferecidas sempre ultrapassam. Mas, ao fim e ao cabo, o mundo sempre parece ter mais a oferecer do que pode ser experienciado em uma vida individual”. E algumas linhas adiante, ele arremata: “A aceleração serve como estratégia para apagar a diferença entre o tempo do mundo e o tempo de nossa vida. A promessa eudemonista da aceleração moderna então parece ser um equivalente funcional das ideias religiosas da eternidade ou vida eterna, e a aceleração do ritmo da vida representa a resposta moderna ao problema da finitude e da morte” (Rosa, 2009, p. 91). Buscamos a intensidade do presente, sua aceleração e múltiplas possibilidades, como há alguns séculos se buscava um futuro, uma vida além da morte, que nos redimisse de nossa perecibilidade.
Esses autores e suas ideias me ajudarão ao longo dessa exposição. Mas gostaria de principiar minha fala me reportando ao livro de Bernard Stiegler, Para uma nova crítica da Economia Política, um livro não diretamente relacionado ao tema aqui em foco, mas que certamente pode contribuir para lançar algumas luzes sobre este contexto amplo que nos interessa, ou seja, a aceleração da produção científica e tecnológica no plano nanométrico. O objetivo filosófico inicial de Stiegler nesta pequena é reclamar para a filosofia o campo da economia política para dali, não atualizar uma crítica marxista ao capitalismo contemporâneo, mas proceder a deconstrução - aqui no sentido que Derrida outorga a esse termo - de algumas das ideias fundamentais do velho pensador alemão. Mediante esse recurso, ele pretende analisar o papel fundamental que o consumo tem para entendermos a dinâmica acelerada do capitalismo contemporâneo.
A sociedade do consumo, ou mais propriamente, o consumismo contemporâneo é uma forma de lidar com as crises crescentes do capitalismo que resultam de uma tendência a diminuição da taxa de lucratividade, já observada por Marx no século XIX. Esta saída - que depende obviamente de uma aceleração no tempo de consumo das mercadorias, na perecibilidade de tudo o que nos cerca - no entanto, constitui uma falsa solução para o problema. Como já observava David Harvey, em A Condição Pós-Moderna, a aceleração proporcionada pelas tecnologias da informação, pela crescente financeirização das relações econômicas, pelo surgimento de modos flexíveis de gestão, constituiriam o conjunto de remédios encontrados pelo capitalismo para gerir crises que este produz inevitavelmente. A inovação sem tréguas e a obsolescência perpétua e programada de bens e serviços - às quais o impulso inovador está associado – apresentam uma afinidade eletiva clara com a propensão crescente ao consumo que conhecemos tão bem e a ação conjunta dessas forças salvaria o capitalismo de sua tendência à crescente diminuição das margens de lucro a que a própria concorrência levaria. Nestes cenários desoladores empregos, lucratividade, crescimento econômico não podem ser sustentados a longo prazo e para o conjunto da economia global. Ao produzir a perecibilidade, e portanto a aceleração do giro dos capitais, a inovação e aceleração da vida constituem uma resposta técnica para o problema político e social mais amplo que diz respeito à sustentabilidade, em sentido amplo, do capitalismo e do mundo em que vivemos.
Para Stiegler, as catástrofes ambientais que se anunciam e se realizam seriam, por exemplo, evidência da insustentabilidade de tal modelo. O desenvolvimentismo sem preocupações ambientais e sociais que conhecemos é uma evidência disto – pensemos na alternativa privada encontrada para o problema da mobilidade urbana que adotamos, para ficarmos num exemplo menos controvertido. Poderíamos falar também das soluções energéticas encontradas para promover nosso crescimento econômico, mas fiquemos por aqui. O consumismo, pois, é a lógica da devastação, do extenuação dos recursos e do próprio ser humano, mas sem ele o capitalismo parece incapaz de mitigar sua crise contemporânea. “´A política de investimento’, que não tem outro objetivo além da reconstituição do modelo consumista, é a tradução de uma ideologia moribunda, tentando desesperadamente prolongar a vida do modelo que se tornou autodestrutivo, negando e ocultando por tanto tempo quanto possível o fato de que o modelo consumista é agora massivamente tóxico" (Stiegler, p.5). O consumismo é necessariamente baseado no curto prazo, no descartável, na especulação, na aceleração da aceleração, tanto da produção como do uso dos bens e serviços, e esta última é intrinsecamente “tóxica”, para voltarmos ao termo usado por Stiegler, tanto para o ser humano quanto para o seu ambiente. Os desastres ambientais, o aumento de doenças relacionadas ao stress da vida contemporânea não são efeitos colaterais da aceleração tecnológica - desajustes que poderiam ser contornados mediante a racionalização dos cálculos de risco -, mas sua própria essência. O consumismo é uma expressão consumada do niilismo ocidental.
Para Stiegler, um elemento fundamental de todo modo tecnológico é constituir uma forma de “gramatização”, isto é, grosso modo, de automatização, formatação e reprodutibilidade da vida social. Sem ela não há propriamente formas sociais previsíveis a partir das quais nós possamos nos relacionar, evidentemente, mas sempre podemos, e é este o caso agora, perguntar a que tipo de gramática submetemo-nos quando aceitamos sem mais este modelo da aceleração e do consumo desenfreado, quais são seus pressupostos. Toda “gramática social” diz-nos sempre o que é importante que retenhamos na memória - que gestos, movimentos e atitudes devemos tomar, em quais circunstâncias - e segundo que tipo de prioridade e acessibilidade devemos preservar um evento do esquecimento. O poder sempre se estabelece como gramática, como memória acessível de algum tipo de comportamento esperado e esquecimento daquilo que compromete sua lógica de reprodução. Um dos pressupostos das tecnologias de aceleração contemporâneas (isto é, da aceleração da aceleração) é, todavia, o fato de promover o esquecimento, isto é, elas promovem o esquecimento do que já sabemos das coisas (o nosso saber-fazer, nosso know-how) e da forma como aprendemos a viver (nosso savoir-vivre). Para conseguir esses objetivos, as tecnologias de aceleração que lastreiam a sociedade do consumo se baseiam em um tipo específico de gramatização, nomeadamente, a de nossos desejos.
O velho Marcuse já nos dizia algo parecido em vários de seus livros, em O Homem Unidimensional, por exemplo. No contexto em que vivemos, é preciso não apenas formatar os nossos desejos em direção ao consumo de produtos disponíveis, mas estimular o próprio impulso de desejar. É preciso que desejemos desejar, pois essa é a regra segundo a qual nos tornamos funcionais num mundo acelerado, da instantaneidade. Nossa energia libidinal, portanto, deve ser domada ou, para usarmos o novo sentido que Stiegler dá a esse termo, proletarizada pelos aparatos de produção e consumo capitalistas. A aceleração tecnológica só é concebível nestes termos. Ouçamos Stiegler: “Marx não pôde, entretanto, antecipar o papel da exploração e funcionalização de uma nova energia, que não é a energia do proletário produtor (o labor como pura energia laboral), nem a energia motriz de um novo aparato (tal como óleo ou eletricidade, que são colocados a serviço da indústria do aço e das indústrias da cultura), mas antes a energia do consumidor proletarizado – quer dizer, a energia libidinal do consumidor” (p. 25). Nosso modo de vida é, portanto, vertiginosamente desejante e, por isso mesmo, ansioso, incapaz de gozar a partir das competências cognitivas, estéticas, práticas que conquistamos ao longo do tempo, fundamentalmente destruidor de todo saber viver que eventualmente essas competências ajudam a constituir. Poderíamos neste ponto recordar do livro de Richard Sennett acerca do que ele denomina “corrosão do caráter”, ou seja, como as relações profissionais, humanas são minadas diuturnamente num contexto de aceleração tecnológica e da flexibilização ampla (das relações laborais e entre os seres humanos) que lhe é imprescindível.
Se aceitamos a argumentação de Bernard Stiegler, parece evidente que as nanociências e nanotecnologias desempenham hoje um papel importante na constituição desta gramática da destruição programada, da mobilização e aceleração constantes dos ‘fatores produtivos’, da energia libidinal que predispõem ao consumismo e seus efeitos tóxicos. Esta aceleração pode ser traduzida em números que não podem deixar de ser considerados pelos gestores de ciência, tecnologia e inovação. Entre as poucas informações que oferece sobre nanociências e nanotecnologias, o site do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação traz as seguintes: ““Dados recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e empresas de consultoria indicam que o mercado de produtos nanotecnológicos movimenta cerca de US$ 350 bilhões e, em 2020, estima-se que esse valor será superior a US$ 3 trilhões”[1]. Em termos mais concretos e atuais, a nanotecnologia já aparece em um número considerável de produtos comercializados em todo o mundo, que vão de protetores solares, a componentes de computadores ou implementos agrícolas.
“Ao menos 1.600 produtos para o consumo entraram o mercado apenas nos últimos, e isso é apenas uma fragmento dos produtos e processo já em uso e em desenvolvimento – todos medidos em unidades 90.000 vezes menores que a largura de um cabelo humano. Por volta de 2020, seis milhões de pessoas ao redor do mundo podem trabalhar com nanomateriais, revolucionando o tratamento da saúde, tecnologia da informação, sistemas de energia e outros campos. As corporações agora contribuem com metade dos fundos para pesquisa em fronteiras nano, alcançando os governos, liderados pelos Estados Unidos (com U$ 21 bilhões investidos desde 2001) e 60 outros países, mais proeminentemente a Alemanha, França, Japão, Coreia e China) (Nanotechnology and the S&P 500: Small Sizes, Big Questions, By Susan L. Williams)
Que não existam marcos de regulação da produção e comercialização destes produtos a partir de pesquisas robustas de impacto ambiental e de saúde significa apenas isto: o investimento maciço em inovação realizado pelas companhias precisa ser traduzida em lucros que realimentem as condições de competitividade e reinvestimento . O tempo aqui, por tudo o que dissemos, é uma questão vital. Em outras palavras, assim como a indústria de armas não pode subsistir sem produzir guerras e uso cotidiano de armas de fogo, os US$ 21 bilhões investidos pelo governo estadunidense, somados aos outros tantos bilhões que foram investidos por empresas daquele país, de 2001 a 2013, precisam se traduzir em produtos que gerem receitas capazes ao menos de recuperar aqueles aportes. Para as companhias, a diferença entre o curtíssimo e o curto prazo pode significar prejuízos consideráveis, donde a pressão pela aceleração. Por isso mesmo: “Uma crítica recente feita pelo National Research Council (NRC) concluiu que ‘esforços de investigação ambiental, de saúde e segurança não etão conseguindo acompanhar as aplicações de nanotecnologia, em seu crescimento e desenvolvimento, e os potenciais efeitos destes materiais sobre os humanos e ecossistemas não são ainda completamente entendidos” (Ibid, p. 26). Não repisarei o óbvio para vocês: as propriedades da matéria em nanoescala e sua interação com o mundo que conhecemos estão longe de serem compreendidas satisfatoriamente. Acrescentarei apenas que a desmaterialização a realidade, o fato de que nossas intervenções tecnológicas ganhem o nível molecular em áreas como a física, química e biologia guarda uma afinidade clara com a aceleração sobre as quais falamos. A lógica parece ser: se a matéria resiste, podemos desmaterializá-la e reconfigurá-la de acordo com as necessidades cinéticas de nosso modo de vida.
Aqui, evidentemente, não se trata de fazer uma análise das nanociências e nanotecnolgias in abstracto, mas no contexto dos compromissos político e econômicos que a pesquisa científica nessa área não pode deixar de estabelecer com essas forças mais amplas. Qualquer cientista que se dedique a uma pesquisa pela produção de novos materiais, a partir de sua manipulação em escala manométrica, terá necessariamente que se confrontar com essa realidade. Há alguns anos, quando entrevistei investigadores brasileiros da Rede Nacional de Nanobiotecnologia, o depoimento de uma cientista mineira me chamou a atenção precisamente por evidenciar as pressões dromológicas com as quais a pesquisa em nanotecnologia convive. Ora, existe em toda pesquisa que objetiva desenvolver novos fármacos uma restrição com a qual os laboratórios têm de conviver, se essa pesquisa se destina a promover a saúde humana. Todos sabemos que neste campo a inovação é particularmente demorada. Mesmo quando um fármaco teoricamente mostrou sua eficácia, ainda é necessário um período considerável com testes com seres humanos para dimensionar seus possíveis efeitos colaterais. Parte do grupo que se dedica a nanobiotecnologia em Minas Gerais havia decidido dedicar suas atividades de pesquisa à promoção da saúde animal precisamente porque ali o processo poderia ser acelerado sem as restrições éticas que encontramos quando tratamos de testes de medicamentos em seres humanos. Segundo a mesma cientista, a decisão de pesquisar cosméticos também teria esse como um fator importante: controles biológicos de segurança mais brandos no campo dos cosméticos, se o comparamos aos medicamentos, naquele momento, hoje já não saberia dizer, distintamente da produção de medicamentos para seres humanos, significavam uma aceleração do processo inovador.
Nos dois casos, obviamente outros fatores estavam em jogo: dedicar-se a um nicho de mercado onde teríamos condições de competição privilegiadas, por exemplo. Nos dois casos, havia na época em que realizei as entrevistas uma discussão acalorada sobre o controle do percurso de nanopartículas na natureza e organismo humano, quer esse percurso principie no organismo de um animal, ou na pele de alguém que comprou um protetor solar com componentes nanoestruturados. O fato é que os desafios para a ciência realizada em países em desenvolvimento, como o Brasil, no que concerne à velocidade são ainda mais radicais e contraditórios. A lógica é a seguinte: se não quisermos pagar por uma tecnologia que vai ser mesmo hegemônica, precisamos acelerar mais que os países desenvolvidos e, no processo, abandonando alguns cuidados que retardam o desenvolvimento. As discussões sobre a produção e energia no Brasil aqui se colocam numa lugar político e econômico particularmente tenso. O fato é que, se pensarmos no que havia de conhecimento acumulado no campo das nanociências no Brasil há vinte anos e hoje, é impossível não perceber a velocidade com que a pesquisa nessa área se tem desenvolvido no Brasil, em especial nas áreas de química, farmácia e medicina e física.
“O último levantamento da PINTEC, feito em 2008, reporta que existiam 608 empresas envolvidas com nanotecnologia. No entanto, não diferenciou aquelas que apenas incorporaram a tecnologia daquelas que fizeram P,D&I. Levantamento conduzido pela CGNT mostra que aproximadamente 130 empresas desenvolvem P&D em nanotecnologia. Foram contabilizadas as empresas contempladas nas Chamadas Públicas à Subvenção Econômica de 2006 a 2010, RHAE – Pesquisador na Empresa de 2007 a 2009 e ICT–Empresas de 2006 e 2009”. (http://nano.mct.gov.br/a-nanotecnologia-no-brasil/)
Se considerarmos as empresas que receberam ou recebem algum tipo de benefício econômico em nanotecnologia, ainda parece expressivo o impulso que setores como fármacos, saúde e odontologia recebeu: 27% dos investimentos nas 130 empresas que desenvolvem pesquisa e desenvolvimento em nanotecnologia tiveram esses destinos. No âmbito do turbocapitalismo, a aceleração tecnológica, em cujo âmbito as nanociências e nanotecnologias desempenham um papel destacado, entretanto, age na contramão dos interesses pela saúde humana ou animal. As estatísticas de aumento de doenças psíquicas, como depressão, síndrome de burnout, diversas formas de ansiedade, dão bem uma ideia das demandas a que somos submetidos pelos intensificação dos ritmos sob a égide do consumo. Para esse novo quadro, evidentemente, o capitalismo tem também a sua solução, e ele significa medicalização. Pais sem tempo para dedicar aos seus filhos tendem a medicá-los, como comprovam as estatísticas de consumo de Ritalina nos Estados Unidos da América e na Alemanha. Entre cientistas, músicos, entre os nossos estudantes, também parece haver uma tendência crescente ao uso de antidepressivos e ansiolíticos como forma de lidar com as pressões crescentes a que somos submetidos. Os números de consumo desses produtos no Brasil, quando são divulgados, são preocupantes. Esses produtos permitem que continuemos em nosso ritmo vertiginoso sem nos perguntarmos acerca do sentido de acelerar tanto, sem nos indagarmos acerca dos pressupostos da gramática mais geral a que somos submetidos.
Ao cientista, todavia, não deve ser dada a concessão da ingenuidade do não exercício da crítica. Falar sobre inovação tecnológica, e especificamente sobre nanotecnologias, cujas perspectivas são tão revolucionárias, hoje significa nos indagarmos sobre os compromissos mais amplos dentro dos quais exercemos nossa atividade.
 
Bibliografia
 
Crary, Jonathan. 2014. 24/17. Le capitalism à l’assault du sommeil. Paris, Zones.
 
Gasman, Lawrence. 2006. Nanotechnology applications and markets. London, Artech House.
 
Martins, Hermínio. 2003. “Aceleração, progresso e experimentum humanum”. In Hermínio Matins e José Luís Garcia (coord.), Dilemas da Civilização Tecnológica. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.
 
Rosa, Hartmut. 2009. “Social acceleration: ethical and political consequences of a desynchronized high-speed society”. In Harmut Rosa e William E. Scheuerman (org.) High-Speed Society: social acceleration, power, and modernity. Pennsylvania, Pennsylvania University Press.
---------------------. 2005. Accélération. Une critique social du temps. Paris, Éditions La Découverte.
 
 
Sloterdijk, Peter. 1999. Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária: conversa com Carlos Oliveira. Lisboa, Fenda.
---------------------. 2000. La mobilisations infini. Vers une critique de la cinétique politique. France, Christian Bourgois Éditor.
---------------------. Cólera e Tempo. Ensaio político-psicológico. Lisboa, Relógio D’Água.
 
STIEGLER, B. 1994. La techique et le temps. T. 1, La faute d’Epimethée, Paris, Galilée.
---------------. 2010. For a new critique of political economy. Cambridge, Polity Press.
 
Virilio, Paul. 2001. Velocidade e Política. São Paulo, Estação Liberdade.
 
 

2 comentários:

Tâmara disse...

Jonatas,
Seu texto faz articulações cruciais: novo capitalismo/tecnologia/aceleração/consumo.E quando você fala na inovação sem tréguas como solução destrutiva à tendência à queda da taxa de lucro sob o capitalismo, remeteu-me a um dossier de Philosophie Magazine, onde um célebre defensor de projetos transhumanistas, Peter Thiel, afirma que a competição é incompatível com o capitalismo, exatamente porque a acumulação sob forte concorrência é lenta ou impossível. E aí, alegremente, esse rapaz defende o monopólio como modo eficiente do capitalismo, estando convicto de que o sentido da vida é a inovação. Sabe o título do dossier desse Magazine? LIBERTÉ, INÉGALITÉ ET IMMORTALITÉ - LE MONDE QUE VOUS PRÉPARE LA SILICON VALLEY. E sabe como uma filósofa ex-derridiana sintetiza sua crítica a esses projetos? Distinguindo o conceito de plasticidade (de Hegel) do de flexibilidade (transhumanista/repressivo) e afirmando que as ciências humanas precisam superar a dicotomia natureza/cultura para enfrentar processos e projetos repressivos como os que você descreve sobre a nanotecnologia e a aceleração da aceleração da vida sob a ordem capitalista.
Essa moça, Ctherine Malabou, mergulhando nas neurociências, parece confirmar uma visão do pragmatismo contemporâneo:a natureza pode ser um excelente guia para criticarmos/enfretarmos a concepção turbocapitalista do homem e da sociedade. Richard Sennet assim diz.
Parabéns pelo texto.

Le Cazzo disse...

Oi, Tâmara. E por que você não me envia esse dossiê? Abraço. Jonatas