terça-feira, 29 de abril de 2008

Marcuse, Horkheimer, Adorno, o expressionismo e cerveja Brahma



Enquanto escuto Dança da Cabeças , que não escutava havia uns vinte anos (o disco de Naná e Gismonti pertence agora a uma dessas multinacionais da vida e custa uma fortuna), termino os apontamentos para um seminário da pósgraduação sobre Marcuse (O Homem Unidimensional), Adorno e Horkheimer (Dialética do Esclarecimento) e o expressionismo alemão (uso como textos básicos para este último tema um texto de Mario Micheli (‘O protesto do expressionismo’) e outro de R. Sheppard (‘O expressionismo alemão). Pois então, continuo meu caminho, associando reflexão sociológica, filosófica e estética. Apesar de haver uma afinidade eletiva entre as críticas da Escola de Frankfurt à civilização tecnológica - à modernidade como projeto civilizador que levava fatalmente à vitória da razão instrumental, à ossificação das relações sociais, à mecanização da vida, por um lado - e o grito expressionista contra a sociedade burguesa - contra a acomodação impressionista, sua docilidade em ‘representar’ objetivamente essa sociedade sem criticá-la, por outro - a proposta do tal seminário não é traçar linhas de influência dos artista sobre os filósofos.

O nosso interessante mesmo é perceber esse ambiente cultural que antecede a primeira guerra mundial levantando questões que seriam tratadas pelo dadaísmo e surrealismo, mas também, e isso é o que nos interessa particularmente, problemas sobre os quais se debruçariam com uma esperança mínima Marcuse, Adorno e Horkeheimer. Entre os expressionistas e os frankfurtianos há um intervalo significativo de duas guerras terríveis.

[E neste ponto tive de parar para coordenar o tal seminário]

Volto um dia depois bastante impressionado com o seminário que apresentaram Manoel Sotero, Paula Santana e Henrique Miranda, e ainda sob o impacto da apresentação de Nuit et Brouillard, documentário (1955) de Alain Resnais, sobre os campos de concentração alemães. A projeção do documentário foi uma contribuição do trio. Esse é de fato um bom lugar para começar a pensar sobre A dialética do Esclarecimento e O Homem Unidimensional, de um lado, e obras de arte como o Despertar da Primavera (de Frank Wedekind), O Gabinete de Doutor Caligari (dirigido Robert Wiene), Golem (dirigido Paul Wegener, Carl Boese), Metrópolis (Fritz Lang), de outro. Esses dois momentos são separados por duas guerras mundiais. É bem verdade que há alguns ajustes quanto às datas que precisamos fazer: Wedekind escreveu o Despertar em 1891, mas os filmes mencionados foram realizados durante ou logo após a primeira guerra mundial – momento em que o expressionismo já mostra sinais de extenuação na literatura, artes plásticas. A primeira guerra mundial foi um acontecimento decisivo para que esse esgotamento fosse percebido.

“De certa forma, a política estética, os sonhos utópicos e o intelectualismo abstrato, que caracterizavam, por volta de 1916, o lado literário do movimento eram vistos como uma resposta inadequada e mesmo conservadora às realidades do século XX” (Sheppard, Richard. 1999. Modernismo. Guia Geral, p. 233).

O ódio dos expressionistas à sociedade burguesa, sua convicção de que “as instituições do capitalismo industrial mutilavam e distorciam a natureza humana, desenvolvendo o intelecto e a vontade a serviço da produção material, descurando da alma, dos sentimentos e da imaginação” (Sheppard, p. 225) será apropriado por várias outras vanguardas modernistas, como o dadaísmo e o surrealismo. Esse tom juvenil e iracundo irá se tornar, no pensamento dos frankfurtianos que tiveram de fugir da Alemanha nas décadas de 30 e 40, amargo e, não apenas pessimista, mas desesperado.

Uma tarefas centrais que essa geração de teóricos alemães passa a se propor é procurar expandir as promessas de liberdade do marxismo para pensar o problema da subjetividade. O materialismo histórico e dialético tinha se mostrado pobre para pensar esse problema e a importância revolucionária das idéias na história - ora, qual o sentido geral do Razão e Revolução, de Hebert Marcuse, senão tratar essa deficiência? Neste ponto, tanto o totalitarismo nazi-facista quanto o bolchevismo stalinista mostravam que a questão da liberdade do indivíduo era, mais que um problema do capitalismo, um problema da civilização industrial como um todo. Tanto na Dialética do Esclarecimento, quanto no Homem Unidimensional, o grande vilão é a tecnociência que provém do industrialismo, ou daquilo que Mumford chamará de megamáquinas. Porém, e esse é um ponto importante, já a defesa expressionista de uma subjetividade autêntica adiantava essa preocupação.

Nietzsche, um dos principais ancestrais do expressionismo, falara em Dioniso como um a energia amoral e anárquica, e, ao mesmo tempo, como uma energia auto-reguladora. Da mesma forma, e em período mais recente, Hebert Marcuse definiu Eros como aquilo que “não conhece nenhum valor, nem o bem nem o mal, nenhuma moral”, mas adiante sugere que existe uma “autocontenção natural” em Eros. (Sheppard, p. 227)


Marcuse, como de resto Horkheimer e Adorno, parecem ver pouca chance que uma saída para a modernidade técnica possa ser tentada; as perspectivas, esperanças de liberdade subjetivas parecem sepultadas. Afinal, o capitalismo, através de suas megamáquinas de produção cultural, invadira todos os espaços a partir dos quais o sujeito pudesse exercer crítica, clamar por liberdade. A liberdade no capitalismo maduro, dirá Marcuse, é apenas uma liberdade de escolha entre a marca A e a marca B. O capitalismo, acredita ele, promoveu a colonização do desejo. Essa esfera, no entanto, esteve comumente associada à possibilidade de uma tensão entre coletivo e individual. A produção em massa, entretanto, promove uma 'dessublimação repressiva', responde aos nossos anseios mais ocultos, mais íntimos, com uma resposta fácil: consuma. Em um texto famoso, Benjamin também dirá que o capitalismo projeta nossos sonhos e pesadelos em uma tela de cinema. Deste modo, poderíamos dizer, por exemplo que as propagandas brasileiras fazem com que os heterossexuais consumam cerveja pelo pinto – todas aquelas morenas, loiras, ruivas gelando nossas cervejas e esquentando nosso... coração. Marcelo Miranda disse no seminário algo ainda mais preciso: as propagandas de cerveja “bebem nosso pinto”. Essa é a cena triste, o pesadelo sobre o qual Marcuse procura refletir, e que corresponde ao triste diagnóstico que encontramos na Dialética do Esclarecimento: o destino da razão é se tornar instrumental, o destino da construção da subjetividade racional é controlar, dilapidar a natureza e dela se alienar.

O fatalismo da Escola de Frankfurt (desta que alguns chamam sua segunda geração) é bem conhecido. Evidentemente, ele pode ser criticado – trabalho que não farei aqui, esperando que os seminaristas de ontem completem meu pequeno texto nos comentários - uma sugestão: a relação que há entre o uso que Marcuse faz, mas também Horkheimer e Adorno, do conceito de mimesis e a incapacidade que eles mostram em pensar a comunicação a partir da recepção.

Acredito, todavia, ser imporante compreender aquele fatalismo também à luz da confluência entre “welfare State” e “warfare State” [Estado de Bem Estar e Estado de Guerra, para usarmos a expressão de Marcuse], da consolidação da “ciência e técnica como ideologia”, a disseminação do pressuposto de que o progresso técnico é um fim em si mesmo. Anos mais tarde, Hannah Arendt concluirá: já não podemos mais pensar o político: todas as questões que poderíamos fazer sobre a vida que acreditamos ser digna de viver foram transformadas em decisões sobre a melhor forma de administrar nossa vida biológica. Em outras palavras, poderíamos dizer que ela acredita que a economia comeu o político e tudo o que as democracias liberais ocidentais podem oferecer é uma pobre caricatura dessa que é uma abertura fundamental para a condição humana.

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(por editar)
Jonatas Ferreira

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Feminismos e Identidades



A problematização da identidade no movimento feminista vem duas vertentes. A primeira, de um questionamento ao feminismo radical que, segundo algumas teóricas feministas, está assentado sobre uma premissa universalista a partir da qual as mulheres são generalizadas com base na experiência particular de mulheres brancas, de classe média e universitárias dos países do norte. Dessa forma, o feminismo estaria repetindo aquilo que ele mesmo criticou na teoria social clássica e na política, consideradas como androcêntricas, isto é, tomar uma referência particular para definir uma categoria universal. A outra vertente vem do questionamento da distinção sexo/gênero, a qual propõe que doravante nem existe o gênero nem o sexo, e que tratar as identidades a partir dessas categorias é reproduzir a determinação da política hegemônica da heterossexualidade como norma.

Ambas as vertentes têm gerado um grande e criativo debate no meio das feministas acadêmicas, sobretudo entre as anglo-saxãs. Como parte das questões levantadas, coloca-se o problema da unidade do movimento feminista e de sua legitimidade para, no primeiro caso, representar a diversidade mulheres e, no segundo, considerar o sexo das mulheres, portanto um sexo que não existe, como um elemento de identidade.

Para tratar desta questão, consideramos que é importante fazer uma diferenciação entre identidade política e identidade social, pois, além de não serem a mesma coisa, estão sempre em tensão. A identidade social das mulheres, entendida como uma categoria genérica que define o que são as mulheres, é estabelecida a partir de um poder hegemonizado pelos homens na produção do saber e na política. Essa identidade atribuída é reproduzida como uma dimensão das relações sociais de desigualdade presentes na vida social. A identidade política, por seu turno, é construída na luta e na organização de um movimento contra essa definição atribuída e contra os meios materiais e simbólicos que a estruturam.

O feminismo é um movimento político e um pensamento crítico que se forjou na luta para transformar as relações sociais de poder que determinam a desigualdade entre homens e mulheres. É partir do feminismo que se coloca a historicidade da questão das mulheres e a dominação sobre seus corpos como um elemento estruturante das relações sociais, já que o corpo constitui uma base material e concreta sobre o qual se exerce poder e se constrói políticas de controle e de repressão. Foi também a partir do feminismo que as questões ligadas à diferença e à desigualdade entre as mulheres foram colocadas.

A identidade política que caracteriza o feminismo não tem como objetivo reificar a identidade social que é tomada como base para construção do político. O político é lugar da transformação, e o fato de as mulheres se organizarem já altera a representação social dominante sobre as mulheres. Mas o movimento feminista não é um movimento de luta identitária: ele se identifica com a causa da emancipação, igualdade, libertação, seja lá a concepção adotada, das mulheres. Não há nem mesmo, nas diversas correntes, uma proposição na qual se possa identificar uma base de redefinição de uma identidade social particular. O que se busca é a construção de um campo comum de identificação de problemas. Além disso, falar em defesa da igualdade e emancipação das mulheres não significa falar em nome de todas as mulheres, mas falar para todas as mulheres. E também significa falar para todo mundo, colocando a identidade das mulheres como uma questão política.

(a ser editado)

Betânia Ávila (Pesquisadora do SOS Corpo: Instituto Feminista para a Democracia)

Entrevista com Edgar Morin



O FRANCÊS Edgar Morin é um dos últimos grandes pensadores vivos. Filósofo, historiador e sociólogo, aos 87 anos se empolga ao falar dos movimentos estudantis atuais e diz que uma das maiores conquistas de Maio de 68 foi a afirmação da adolescência como entidade social autônoma. Mas o intelectual acredita que a crise moral que provocou o levante de 40 anos atrás é hoje muito mais grave porque o mundo, segundo ele, perdeu totalmente a crença num futuro melhor.

SAMY ADGHIRNI
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Edgar Morin passou boa parte de sua trajetória intelectual defendendo a transdisciplinaridade, a idéia segundo a qual as ciências são complementares e o conhecimento só é válido quando colocado sob a luz da abrangência.
Convidado a abrir a segunda edição do ciclo de palestras "Fronteiras do Pensamento Braskem-Copesul", em Porto Alegre, Morin avisou que o tema de sua intervenção seria "1968-2008: o mundo que eu vi e vivi". Foi uma oportuna maneira de analisar os rumos da humanidade às vésperas do 40º aniversário da revolta francesa de Maio de 1968, o evento estudantil e operário que ultrapassou fronteiras, disseminando os valores que até hoje norteiam boa parte da modernidade ocidental. Horas antes da palestra, no último dia 14, Morin conversou por 40 minutos com a Folha no saguão de um luxuoso hotel da capital gaúcha. Os gestos frágeis e a voz definhante não condizem com o discurso vibrante e apaixonadamente engajado de um homem que dedicou a vida ao entendimento humano. Eis os principais trechos da entrevista.

FOLHA - Quarenta anos depois, o que ficou dos acontecimentos de Maio de 68?

EDGAR MORIN - 1968 foi, antes de mais nada, um ano de revolta estudantil e juvenil, numa onda que atingiu países de naturezas sociais e estruturas tão diferentes como Egito, EUA, Polônia... O denominador comum é uma revolta contra a autoridade do Estado e da família. A figura do pai de família perdeu importância, dando início a uma era de maior liberdade na relação entre pais e filhos.

A revolta teve um caráter mais marcante nos países ocidentais desenvolvidos. Teóricos achavam que vivíamos numa sociedade que resolveria os problemas humanos mais fundamentais. E, de repente, percebeu-se que havia uma insatisfação na parte mais privilegiada dessa sociedade, que é a juventude estudante. Jovens de classes privilegiadas que desfrutavam de bens materiais preferiram buscar uma vida comunitária, num sinal de que o consumismo da sociedade ocidental não resolvia os problemas e aspirações humanas. Muitos desses jovens trocaram a cidade pela vida com as cabras, em busca de felicidade. Esses grupos não duraram, porque não conseguiram resolver os problemas e conflitos -só perduram comunidades que têm o cimento religioso.

Mas o importante é que houve um processo de auto-afirmação da adolescência como entidade social e cultural. O rock, muito além da música, consiste em agrupamentos de jovens. É uma maneira de se vestir e se comportar. É a autonomização da adolescência, que se afirma por oposição ao mundo adulto dos professores e pais.
Depois disso, a poeira baixou e tudo pareceu voltar ao que era antes. Mas houve mudanças, sim. Foi depois de 68 que os homossexuais e as minorias étnicas se afirmaram e que o novo feminismo se desenvolveu. A imprensa feminina francesa pré-68 dizia: "sejam bonitas e façam uma boa comidinha para agradar aos seus maridinhos".
Depois de 68, essa mesma imprensa passou outro recado: "vocês estão ficando velhas, seus filhos foram embora e seus maridos as traem, então resistam". Foi uma verdadeira crise da idéia de felicidade, que é a grande mitologia da sociedade ocidental.

FOLHA - Um levante semelhante seria possível hoje em dia?

MORIN - Fatos históricos dificilmente se repetem, mas eu me pergunto se a comemoração de Maio de 68 não vai estimular jovens a seguirem o mesmo caminho. Na França, houve recentemente uma pseudo-reforma do ensino que despertou mais uma vez movimentos estudantis consideráveis. Claro, não tem nada a ver com Maio de 68, mas é alguma coisa.

Hoje em dia, movimentos estudantis se generalizam rapidamente e prosseguem mesmo quando o governo satisfaz os seus pedidos. É a alegria de estar juntos na rua, de desafiar os professores e a polícia. Até quando as reivindicações são ridículas, o fenômeno é importante, pois permite ao jovem tornar-se cidadão, escapando assim da crescente tendência ao apolitismo.

FOLHA - Mas o mal-estar que causou Maio de 68 permanece...

MORIN - Não só permanece, como agravou-se. Onde há vida urbana e desenvolvimento, há estresse e ritmos de trabalho desumanos. A poluição causa males terríveis, e nossa civilização é incapaz de impedir a criação de ilhas de miséria. Mas o que piorou mesmo foi o fato de termos perdido a fé no progresso. O mundo ocidental dava como certa a idéia de que o amanhã seria radioso. Mas, nos anos 90, percebeu-se que a ciência trazia também coisas como armas de destruição em massa e que a economia estava desregulada, enterrando de vez a promessa de que as crises haviam deixado de existir.

O sentimento de precariedade é agravado pelo fato de os pais não saberem se seus filhos terão um emprego. Tampouco há esperança vinda da esfera política. Os políticos hoje se contentam em pegar carona no crescimento econômico. Não bastasse a ilusão de que esse crescimento da economia resolveria os problemas, eis que agora impera a estagnação. O mal-estar está mais profundo, inclusive nas classes que têm acesso ao consumo. E quando não há mais futuro, a gente se agarra a um presente desprovido de sentido ou ao passado -nação e religião.

FOLHA - O senhor acredita no choque das civilizações?

MORIN - Parece cada vez mais grave a confrontação entre os mundos árabe-islâmico e ocidental. Mas isso não é um choque de civilizações, até porque boa parte do mundo muçulmano está amplamente ocidentalizada. O problema é que os países árabe-islâmicos estão tomados por um desespero ligado ao fracasso da democracia e do socialismo naquela região e à imensa corrupção trazida pelo capitalismo. Diante disso, parte da população torna-se ultra-religiosa e pensa que a salvação está numa interpretação integrista da sharia, a lei islâmica.

O choque das civilizações é uma profecia que se auto-realiza. Acreditar nela é estimulá-la. Além disso, islã, cristianismo e judaísmo têm um tronco comum. São fés monoteístas muito parecidas. Por isso me tranqüiliza saber que grandes civilizações como a China e a Índia tiveram a felicidade de escapar disso. Muitos males advêm dos monoteísmos.

Olhe o que acontece com a questão israelo-palestina. Nos dois lados impera cada vez mais a visão religiosa de um problema fundamentalmente nacionalista. Repare na força dos evangélicos nos EUA, berço da sociedade mais materialista do mundo e onde a teoria do criacionismo não pára de se espalhar. Tudo isso é uma grande regressão. Não acredito no choque das civilizações, acredito na volta da barbárie em suas mais diversas formas.

FOLHA - Uma das maiores mudanças mundiais das últimas décadas, a internet, na sua opinião, afastou ou aproximou as pessoas?

MORIN - Se considerarmos o fato de a internet ser um instrumento polivalente, que serve até aos interesses do crime, acho que a rede aproxima as pessoas. A internet tornou-se um sistema nervoso artificial que tomou conta do planeta. É algo que ajuda muito na hora de desenvolver afinidades, encontrar amigos, amores ou parceiros de hobby. A internet é um fato universal importantíssimo.

Mas os sistemas de comunicação não criam compreensão. A comunicação apenas transmite informação. É preciso estimular o surgimento de uma consciência planetária. Se a internet não desenvolver a idéia da comunidade de destinos da humanidade, terá apenas uma função limitada e parcelar.

FOLHA - Que papel restou para o intelectual hoje?

MORIN - O intelectual é alguém que toma a palavra em público para levantar problemas fundamentais. Infelizmente, os intelectuais foram levianos quando se tornaram stalinistas ou maoístas. Eles enganaram as pessoas.

Por outro lado, é ruim quando nos deparamos com um mundo entregue a peritos, especialistas e economistas, que são incapazes de enxergar a abrangência dos problemas essenciais e globais.

Intelectuais são necessários, mesmo quando eles se enganam. Quanto mais o mundo acha que não precisa deles, mais eles fazem falta (risos).

Folha de São Paulo, 28 de abril de 2008

terça-feira, 22 de abril de 2008

Simmel e os sujeitos da modernidade




O pessoal da TCS (a revista Theory, Culture & Society) parece ter um interesse particular na obra de Simmel. Ao longo dos anos, ensaios sobre este importante cientista social, ou traduções de textos de sua obra, têm aparecido regularmente na prestigiosa revista. Em 2007, especificamente, a TCS publicou um número especial (Vol. 24, Nos. 7 e 8) com tradução para o inglês de ensaios menos conhecidos de Simmel, como ‘Individualismo’, ‘Estilo germânico e românico clássico’, ‘Kant e Goethe. Sobre a história da visão de mundo Moderna’ e o impressionante ‘Para uma metafísica da morte’, entre outros. Retornar a Simmel é uma necessidade na formação de jovens cientistas sociais e na reforma dos antigos.

Não fosse pelo interesse que Simmel despertou na Escola de Chicago, no começo do século XX, a recepção desta contribuição ímpar poderia ser ainda mais discreta do que tem sido. Naquele contexto, o ensaísmo, o impressionismo simmeliano parecia ser um antídoto para a hegemonia macroestrutural do funcionalismo parsoniano. A ênfase simmeliana na ação adequava-se plenamente com as convicções interacionistas da EC.

A iniciativa da TCS deve, portanto, ser louvada - e parece coerente com sua orientação mais pós-estruturalista. Tomo os textos ‘Individualismo’ e ‘Estilos germânico e românico clássico’, como exemplo. Há ali uma importante fonte de reflexão para aqueles que operam formulações demasiado esquemáticas da idéia de subjetividade na modernidade. Parece ser um efeito não pretendido da emergência de um discurso pós-moderno, no começo da década de 1980, o fato de a noção moderna de subjetividade ter sido reduzida a algo monolítico: autonomia, racionalidade, postura calculadora diante do mundo, disciplina, oposição cognitiva com respeito ao mundo natural etc. Afinal, não se aprendeu com Bauman que a modernidade é a exclusão da ambigüidade, o império da razão, a defecção da incerteza etc etc? Se quiser conferir, recomendo uma olhadinha no Modernidade e Ambivalência, mas Bauman é obstinado em sua tese central - qualquer outro livro, dos que eu li, produz o mesmo efeito.

Já na década de 70, no entanto, Marshall Berman alertava para a necessidade de distinguir entre uma modernidade sólida (racionalizadora) e outra diluidora, entre modernidade e modernismo. Se tomarmos essa lição com alguma atenção, é possível perceber que a modernidade tem sido não apenas o lugar de realização dos sonhos iluministas, mas da crítica romântica; não apenas o império do positivismo científico, mas da hermenêutica filosófica; não apenas a mesa da dissecação, da razão instrumental, mas o grito do desejo dadaísta ou surrealista; não apenas a busca de controle sobre o mecanismo das coisas, mas a busca do significado da existência.

De modo semelhante ao texto de Berman, Simmel ajuda a perceber na formação do projeto moderno duas noções bastante distintas de individualidade e subjetividade, tipificadas na oposição entre caráter latino e caráter germânico, entre a subsunção do primeiro a um estilo, a uma totalidade que o limita, e a resistência do segundo tipo a qualquer estilização predeterminada. Em um post antigo deste CAZZO,"O Romantismo e as Ciências Sociais", já havia aproveitado um excelente texto de Gerd Bornheim (In Guinsburg, O Romantismo) para discutir uma oposição semelhante. Ali tratava-se de pensar dentro da própria tradição romântica alemã dois romantismos: um nórdico, irracional, apegado a idéias como genialidade e ímpeto pessoal, cultura local, e outro kantiano, latino, mais sensível ao discurso iluminista, mais universalista. Acho que vale reler pois lança certa luz sobre o que afirmo a partir de Simmel: assim como o "projeto moderno" é mais complexo do que alguns querem, também acredito que não haja apenas uma idéia de subjetidade neste contexto histórico, mas várias em constante negociação. No "Individualismo", ou no "Kant e Goethe", por exemplo, Simmel delineia através de uma oposição duas dessas possibilidades.

“Subjacente a modos de vida românicos [...] há uma luta básica pelo geral, pelo tipo. Aqui o ‘geral’ não significa a coletividade ou um amalgamar prático em uma figuração totalizadora, ou a fusão de indivíduos em uma totalidade de algum modo maior; significa antes a generalidade do conceito, implicando uma forma ou lei que determinam um número indefinido de vidas levadas de modo individual, em cujo contexto cada indivíduo é mais ou menos um representante, quer por natureza ou por esforço da vontade. Toda liberdade individual, distinção e excelência são buscadas dentro desses limites, e não são de fato nada além de manifestações particularmente puras e fortes de atributos típicos nomeáveis”. (Simmel, Individualismo)


A tradução da tradução (acima) poderia ser melhor realizada, se eu tivesse algum tempo para melhorá-la. Não obstante, caro(a) leitor(a), o trecho citado ajuda a formular algo que para o pensamento iluminista (francês, latino, em grande medida) parece claro: entre o indivíduo livre e a totalidade há uma interseção virtuosa que pode ser elaborada na idéia de uma lei universal que é válida para todos os seres humanos ‘verdadeiramente livres’. Todo indivíduo livre (livre de suas necessidades animais, plenamente sintonizado com sua espiritualidade) é necessariamente ético, o que vale também dizer que ele é racional e afinado com a vontade universal. Kant, dessa perspectiva, era para Simmel um latino, como a leitura do “Kant e Goethe” nos ajuda a depreender.

Em oposição ao estilo românico, a arte de Rembrandt, Herder, dos românticos em geral, são portadores de outra idéia de subjetividade. “Esses últimos procuram individualidade apenas no self único, e são profundamente indiferentes se isso porventura implica um tipo de alguma espécie ou se, num sentido numérico, indivíduos podem existir mais de uma vez no mundo”. Parece claro, e Simmel mesmo o indica, que, romântico e não românico, esse último tipo de individualidade é, por definição, portador dos valores estéticos que poderíamos associar com mais facilidade a um certo ímpeto vanguardista que encontramos no modernismo, do que de valores universais facilmente associáveis ao projeto ético do iluminismo.

Tomemos o “Metrópole e vida mental” para complementar essas observações. Ora, a oposição que há ali entre “cultura subjetiva” e “cultura objetiva”, o temor de que, sob condições modernas, a mecanização das formas da cultura estaria impedindo a vida (individual) de se expressar plenamente, não apenas recoloca a tensão entre duas formas de individualização, mas ajuda a entender como Simmel se posiciona diante deste quadro.

“A atrofia da cultura individual e a hipertrofia da cultura objetiva está na raiz do ódio amargo que os pregadores do mais extremo individualismo, nas pegadas de Nietzsche, nutriram contra a metrópole. Mas ela também é a explicação porque eles são de fato amados com paixão e aparecem de fato para os seus residentes com salvadores de seus desejos insatisfeitos”(Simmel, Metrópole e vida mental).


Há evidentemente muitas outras formas de abordar a questão da subjetividade na modernidade: Novalis, por exemplo, apresentou em vários de seus escritos uma idéia interessante de subjetividade como produtividade poética; Freud, esse romântico, desloca a idéia de auto-conhecimento como forma de libertação para a esfera da desrazão - a verdade do ser humano não é seu mundo consciente, os sentidos racionais que ele elabora. Os dois tipos ideais definidos por Georg Simmel, que constituem como que duas grandes tenazes em sua vida intelectual, ou seja, sua admiração por Kant, de um lado, e por Goethe, de outro, são apenas duas maneiras clássicas de tratar esse tema.

Os ensaios traduzidos pela TCS devem ser lidos por esse motivo. Mas também por ser uma fonte importante de reflexão sobre a importância do vitalismo no pensamento alemão do final do século XX. A esse respeito falarei no próximo post.


(por revisar)
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Jonatas Ferreira

Feminismo e outras aberrações



Para Christine Dabat

Impressionante o poder dos estereótipos. Goffman já havia alertado para este fenômeno ao sugerir que, quando os sinais de status não são suficientemente claros para que possamos definir uma situação, frequentemente fazemos uso de visões extremamente rígidas e preconceituosas acerca do comportamento alheio – os estereótipos. Assim, sinais que supostamente possibilitariam o fluxo das interações sociais transformam-se em verdadeiros empecilhos à comunicação. No médio prazo, entretanto, isso não é necessariamente ruim. Como defendem os pragmatistas, a dúvida e a reflexão só ocorrem realmente quando o fluxo das nossas ações é interrompido e somos forçados a redefinir o nosso conhecimento ou visão de mundo. Isso já aconteceu comigo diversas vezes, mas creio que uma das mais significativas foi a que me levou a pensar acerca de mim própria como feminista.

Havia recém-chegado do Canadá, onde tinha passado um ano. Certo dia, antes do início de uma reunião da Comissão Pró-Biblioteca do CFCH, uma colega do curso de história, Christine Dabat, entregou-me um button de plástico azul, com um alfinete atrás, escrito com letras pretas: “tapinha dói e é crime”. Como tinha passado o ano anterior fora do país, não tinha idéia do que aquilo poderia significar. Christine me explicou que era parte de uma campanha contra a violência contra a mulher e que as palavras faziam referência a uma música muito popular no ano anterior. Peguei o button e disse “ah, legal. Mas não vou usar, senão podem pensar que sou feminista”. A resposta caiu como uma bomba, mas lenta, muuuito lentamente: “e daí?”. O tom era de dúvida genuína, o que serviu para plantá-la em mim. Não na hora, claro. Na hora, devo ter pensado algo como “olha, eu simpatizo com a sua causa e sou contra a violência contra a mulher, mas não me identifico com essas figuras pouco femininas que queimam sutiãs em praças públicas, gostam de colecionar pêlos no corpo e cultivam um apreço especial pela vitimologia, apesar de se julgarem superiores ao resto da humanidade”.

Visão mais estereotípica, impossível. E olha que eu já era professora universitária há alguns anos e, o que é pior, de sociologia! Tinha diversas amigas e amigos feministas, mas nunca havia pensado que, assim como Christine, não se encaixavam no meu estereótipo. Não é sem um grande constrangimento que hoje reconheço ter sido necessário uma mulher bonita, perfeitamente enquadrada nos padrões convencionais de “feminilidade” e, ainda por cima, uma grande intelectual, para que eu pudesse rever minha posição. O duro é reconhecer as implicações disso: se tivesse sido uma mulher feia, destoante do padrão feminino convencional e da noção acadêmica de intelectualidade, provavelmente eu estaria na mesma. Gostaria de poder dizer que a pergunta de Christine teve um efeito imediato em relação à tomada de consciência dos meus preconceitos, mas, infelizmente, esse não foi o caso. Afinal de contas, vim de uma família em que as mulheres nunca deixaram de exercer sua liberdade, eram todas profissionais competentes e, aparentemente, nunca foram discriminadas por serem mulheres. Até mesmo a resposta dos meus pais à minha pergunta - por que, dado que os dois haviam se formado quase no mesmo ano e exerciam a mesma profissão, minha mãe ganhava quase três vezes menos que meu pai? - parecia absolutamente lógica: porque ela nunca quis assumir os cargos de chefia que ele assumiu ao longo de sua carreira e que lhe garantiram enormes vantagens salariais. Nunca me ocorreu, na época, perguntar sobre as escolhas dela. Também nunca me ocorreu perguntar ao meu pai por que ele se sentia na obrigação de dar plantões de 24h, duas vezes por semana, durante toda a minha infância e adolescência. Era tudo muito natural: minha mãe era mãe, afinal de contas, e sempre que um de nós adoecia ou tinha problemas na escola, era ela que dividia a atenção entre os seus pacientes no hospital e os filhos, ou reduzia suas consultas no consultório para nos acompanhar. E isso significava que o meu pai tinha que assumir uma jornada de trabalho cada vez mais longa – e passar cada vez menos tempo com os filhos. Isso foi feito de comum acordo e, ao que tudo indica, são felizes em relação às escolhas que fizeram. Claro que isso não explica a culpa ocasional que a minha mãe expressa sempre que diz algo como “eu fui uma mãe muito irresponsável: deveria ter passado mais tempo com vocês”. Ou o fato de que nós, os filhos, talvez tivéssemos gostado de conviver mais com o nosso pai.

Mas o verdadeiro problema não é esse, já que, qualquer que seja o acordo, ninguém vai estar cem por cento seguro de que fez a escolha certa. O problema é quando esse tipo de acordo é compulsório, quando reflete um padrão muito mais geral do que seria de se supor, caso se baseasse simplesmente em escolhas individuais. Como afirmou Helena Hirata, numa conferência que deu em Recife no ano passado, grande parte das mulheres, individualmente, não são oprimidas ou discriminadas. Eu mesma me enquadro entre essas, pelo menos na imensa maioria do tempo: nunca sofri violência sexual, não ganho menos do que os meus colegas no mesmo nível que eu, meus amigos são homens sensíveis e super gente-fina e, minhas amigas, independentes e emancipadas. No nível coletivo, no entanto, a história é outra.

Embora os homens estejam mais sujeitos a crimes como o homicídio, por ex., a tendência é que sofram violência no espaço da rua e por pessoas desconhecidas. As mulheres, por seu turno, tendem a sofrer violência, inclusive o assassinato e o estupro, no espaço doméstico e por pessoas conhecidas. O assédio sexual também é mais freqüente entre mulheres do que entre homens. As desigualdades salariais entre homens e mulheres são bem documentadas e, quanto maior o nível de escolaridade, maior a desigualdade de renda. A dupla jornada de trabalho ainda é a realidade da grande maioria das mulheres. A lista de desigualdades poderia continuar e continuar. Mas claro que qualquer estudante de ciências sociais já sabe dessas coisas. Ou deveria saber. Eu sabia, quando Christine jogou aquela pergunta-bomba no meu colo. A questão não era a simples ignorância e nem mesmo a falta de empatia com o movimento feminista. O problema era me identificar com o que eu achava que era o feminismo. Era uma questão de auto-identidade.

Como a maioria das pessoas, eu era contra as desigualdades: de classe, de gênero, de raça. E como a maioria das pessoas, eu achava que o feminismo era, ele próprio, uma forma de desigualdade, já que supostamente pregava a superioridade feminina e a vitimologia. E isso, a simples presença de Christine não foi suficiente para desfazer. A ficha só caiu de verdade quando me dei conta de que feminismo não é o oposto de machismo. Enquanto que o machismo é uma ideologia de justificação da dominação masculina, o feminismo busca a igualdade de direitos, inclusive do direito de ser diferente. Enquanto que o machismo está a serviço da manutenção dos privilégios masculinos, o feminismo busca uma vida menos opressiva para homens e mulheres. Em suma, reconhece que as relações de gênero não são um jogo de soma-zero, mas algo em que todo mundo pode sair ganhando.

Talvez já esteja mais do que na hora de mais gente mergulhar fundo nos seus preconceitos e estereótipos. Nem sempre é fácil, mas vale a pena.

Cynthia Hamlin

sábado, 19 de abril de 2008

Profissionalização, autoformação e pesquisa: sociologia dialógica versus ideologia de boteco II



A sociologia profissional seria instrumental na medida em que se refere à resolução de problemas estabelecidos como “relevantes” pela comunidade sociológica. Em outros termos, refere-se a programas de pesquisa, a um tipo de atividade que diz respeito a métodos testados; a um corpo de conhecimento acumulado; a perguntas que orientam a pesquisa; e a quadros conceituais compartilhados. Longe de ser um programa único e homogêneo, entretanto, a sociologia profissional consiste em “programas (...) múltiplos que se intersectam, cada um com seus pressupostos, exemplares, questões definidoras, aparatos conceituais e teorias” (Ibid.: 10).

Esta peculiaridade da sociologia imediatamente põe em relevo o caráter ideal-típico, no sentido weberiano, da tipologia de Burawoy: a fim de que não degenere em visões estanque e incomensuráveis da realidade, existe uma dimensão crítica que é mobilizada sempre que se faz necessário o questionamento de seus pressupostos e da sociedade mais ampla. É ao considerar que os tipos construídos por Burawoy não se apresentam de forma pura na realidade que se torna possível caracterizar o ensino da sociologia nas escolas como uma espécie de sociologia pública. Vejamos.

De acordo com o autor, a sociologia pública estabelece uma conversação entre a sociologia e diversos tipos de público. Um público deve ser entendido como pessoas envolvidas em uma conversação, e o principal desafio que se coloca a uma sociologia deste tipo é o de engajar múltiplos públicos, de múltiplas formas. A sociologia torna-se, assim, o veículo de uma discussão pública acerca da natureza da sociedade. Quais as implicações de se considerar os alunos do ensino médio como um tipo de público? Para Burawoy, ao se referir aos estudantes universitários como um dos públicos dos sociólogos profissionais (Ibid.: 9), considerá-los como uma espécie de público:

“não significa tratá-los como recipientes vazios nos quais introduzimos nosso conhecimento profundo. Em vez disso, devemos pensar acerca deles como portadores de uma rica experiência vivida que nós transformamos em um auto-entendimento mais profundo a partir dos contextos históricos e sociais que os tornaram quem são”.

Mas para que a sociologia no ensino médio possa ser caracterizada como uma série de diálogos estabelecidos no terreno da sociologia, há que se relativizar o próprio tipo ideal de sociologia pública definido por Burawoy. No caso específico do ensino médio, acredito que, diferentemente de sua dimensão reflexiva, é sua dimensão instrumental que deve ser priorizada (ainda que não de forma exclusiva). Isto significa relacioná-la firmemente aos fins estabelecidos nos currículos escolares. A ênfase, portanto, é deslocada do aspecto reflexivo ao instrumental, ainda que o primeiro esteja dado de forma implícita ao se considerar que o conhecimento sociológico tem um aspecto crítico e emancipatório, já que está intrinsecamente ligado à idéia da formação de uma consciência crítica e relacionado a elementos como cidadania e democracia. Acredito que esta visão é compatível com as Orientações Curriculares estabelecidas pelo Ministério da Educação.

Enfatizar o aspecto instrumental da sociologia pública aplicada ao ensino médio implica também aproximar o professor deste nível de ensino do sociólogo profissional, cujo fim é o desenvolvimento ou a aplicação de programas de pesquisa. Em outros termos, significa socializá-lo a partir de uma sociologia profissional, o que envolve não apenas o domínio de esquemas conceituais compartilhados, mas também de métodos e técnicas de pesquisa. Apenas desta forma o professor do ensino médio será capaz de traduzir e adaptar um corpo de conhecimento gerado na academia, valorizando aquelas práticas específicas à sua atividade de trabalho, ao mesmo tempo em que evita a degeneração de tais práticas em simples produção e reprodução de ideologias.

Encarar a atividade do professor de ensino médio desta forma implica ainda considerar que o tipo de legitimação de sua atividade é diferente da do sociólogo profissional: enquanto que o primeiro deve se guiar pela relevância de sua atividade para a transmissão dos conteúdos curriculares, o segundo justifica sua atividade por meio de normas de produção científica que incluem elementos como o uso controlado de métodos e técnicas de pesquisa e a publicação de seus trabalhos visando o escrutínio público por parte de seus pares. Sendo assim, acreditar que o professor de ensino médio tem como objetivo a pesquisa sociológica nas escolas é desvirtuar não apenas o seu trabalho, mas também a própria atividade de pesquisa, que é regida por critérios específicos de legitimação, voltados para a minimização de uma produção ideológica no sentido convencional do termo, e que não podem ser aplicados no ambiente das escolas.

Isto significa que o professor do ensino médio não produz conhecimento? Certamente que não. Apenas que o conhecimento que ele produz é diferente do conhecimento produzido pelos sociólogos profissionais. Longe de representar uma desvalorização do trabalho do professor, acredito que considerá-lo como uma espécie de sociólogo público é estender o poder da sociologia para além dos muros acadêmicos, uma das principais limitações da sociologia profissional, conforme ela vem sendo desenvolvida no Brasil. Além disso, significa tornar visíveis questões que não estão diretamente acessíveis aos sociólogos profissionais. Neste sentido, uma divisão do trabalho como a proposta aqui possibilita que a educação venha a se tornar “uma série de diálogos no campo da sociologia” (Burawoy, 2005:9): um diálogo entre os sociólogos profissionais e os professores do ensino médio; entre os professores e seus alunos; entre os próprios alunos e, por fim, e não menos importante, entre os alunos e outros públicos que se encontram além dos muros das escolas.

Referências Bibliográficas

BOUDON, Raymond (1981[1974]). A Desigualdade das Oportunidades. Brasília: Ed. UnB.
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, J. C. (1970) La Reproduction: Éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris, Éd. de Minuit.
BURAWOY, Michael (2005). For Public Sociology. Presidential Address. American Sociological Review, vol 70, fev, p. 4-28.
CHOMBART DE LAUWE, Paul-Henry (1976). Argument (I). In: Chombart de Lauwe (org.) Transformations de L’Environnement, des Aspirations et des Valeurs. Paris, Éditions du CNRS.
DURKHEIM, Émile (1981). As Regras do Método Sociológico. Lisboa, Presença.
FERNANDES, Florestan (1977). A Sociologia no Brasil: Contribuição para o Estudo de sua Formação e Desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.
LEWIS, Richard; SMITH, David (1980). American sociology and pragmatism: Mead, chicago sociology, and symbolic interaction. Chicago: University of Chicago Press.
OELKERS, Jürgen (2008). Some Historical Notes on George Herbert Mead’s Theory of Education. In: Michael Taylor, Helmut Schreier e Paulo Ghiraldelli Jr. (eds). Pragmatism, Education, and Children: International Philosophical Perspectives. Amsterdam e Nova York: Rodopi. Disponível em: https://www.uzh.ch/paed/ap/downloads/oelkers/english_lectures/Meadtranslationfirst.pdf
WEBER, Silke (1976). Modèle Dominant en Éducation. In: P. H. Chombart de Lauwe (org.) Transformations de L’Environnement, des Aspirations et des Valeurs. Paris, Éditions du CNRS.
YOUNG, Michael (2007). Para que Servem as Escolas? Educação e Sociedade, Campinas, vol 28, no. 101, set./dez, p. 1287-1302. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v28n101/a0228101.pdf


Obrigada a Silke Weber e a Bruno França pelos diálogos que tornaram essas reflexões possíveis.

(A ser editado)
Cynthia Hamlin

Profissionalização, autoformação e pesquisa: sociologia dialógica versus ideologia de boteco I



Os estudos sobre educação da década de 1970 representaram uma espécie de revolução copernicana nesta área. Embora a educação sempre tenha sido, em maior ou menor grau, relacionada a processos sociais mais amplos, como a democracia, o desenvolvimento econômico, a urbanização, a mobilidade social etc (Fernandes, 1977), é apenas nesta década que outra de suas dimensões começa a se tornar visível: a educação como um mecanismo de reprodução das desigualdades sociais, especialmente as de classe. Na França, por exemplo, trabalhos de autores tão heterogêneos como Pierre Bourdieu e Passeron (1970) e Raymond Boudon (1981 [1974]) começaram a apontar para esses mecanismos, seja em função de uma cultura escolar definida a partir da cultura familiar das classes dominantes, seja de desigualdades de acesso à educação devido às diferenças entre essas duas culturas. Trabalhos como o de Foucault e Althusser enfatizaram ainda o aspecto disciplinante e de controle das escolas, com vistas à formação de uma classe trabalhadora dócil o suficiente para se ajustar à lógica de produção capitalista (Young, 2007). Como resultado, começou-se a refletir sobre formas de romper o ciclo vicioso que a educação formal engendra.

Uma dessas formas é pensada por meio do conceito de autoformação, criado por Chombart de Lauwe (1976) a partir do trabalho pioneiro de Silke Weber (1976) que, sob sua orientação, demonstrava em sua tese de doutoramento que as aspirações à cultura e à educação no Brasil eram definidas a partir de valores das classes dominantes, e não simplesmente a partir de processos como a urbanização, que supostamente homogeneizariam tais aspirações. De maneira geral, a autoformação pode ser definida como a valorização e a incorporação daquilo que os professores criam em suas atividades, em seu processo de trabalho. A idéia por trás disso é romper com a simples reprodução do conhecimento produzido e testado em outros ambientes, levando a uma reflexão por parte dos atores envolvidos que possibilite a construção de algo novo e mais contextualmente relevante. De uma perspectiva mais ampla, este processo aponta para uma dimensão democrática dupla: por um lado, pressupõe uma concepção de conhecimento como uma construção coletiva. Em termos pragmáticos, poderíamos afirmar que o que está em jogo aqui é o embasamento dos processos cognitivos em situações problemáticas concretas e uma busca cooperativa pela verdade, no sentido de se tentar resolver problemas reais de ação (Lewis e Smith, 1981; Oelkers, 2008). Por outro lado, pressupõe que os atores envolvidos na construção de um conhecimento deste tipo são agentes sociais competentes e não simples receptáculos de idéias pré-concebidas. Neste sentido, a discussão pública gerada por esses atores pode contribuir efetivamente para a reflexão e para mudanças na construção de aspirações, assim como na cultura escolar e familiar que dão sustentação aos mecanismos de reprodução de desigualdades anteriormente mencionados.

Embora estas questões devam ser levadas a sério e, como tal, devam estar presentes na concepção de educação de qualquer professor, acredito que elas devam ser relativizadas. Como argumenta Michael Young (2007), ao se focar o aspecto disciplinante e reprodutor da educação, uma questão importante foi negligenciada nas últimas quatro décadas: qual o papel específico das escolas? O que ela tem de único em relação à família, às prisões, aos hospitais e a outras instituições a que foram comparadas? A resposta, de uma simplicidade desconcertante, é que as escolas “capacitam ou podem capacitar jovens a adquirir o conhecimento que, para a maioria deles, não pode ser adquirido em casa ou em sua comunidade, e para adultos, em seus locais de trabalho” (Ibid.:1294). Importa sublinhar, no entanto, que, ao resgatar o papel da escolaridade como transmissão de conhecimento, Young enfatiza que a palavra “transmissão” pressupõe de forma explícita o envolvimento ativo do aprendiz neste processo. Sendo assim, a questão da autoformação e a dimensão coletiva e contextual da produção do conhecimento não devem ser percebidas nem como um empecilho à sua transmissão, nem como o objetivo último da educação, mas como algo que está a seu serviço.

As reflexões de Young são importantes porque, dentre outras coisas, nos permitem pensar na autoformação como algo intrínseca e primordialmente ligado ao papel específico da educação. Em outros termos, ainda que consideremos os aspectos pragmáticos envolvidos na idéia de autoformação, é necessário considerar que eles devem estar subordinados à noção mais ampla de transmissão de um tipo de conhecimento que não pode ser adquirido em outras instituições. Isto significa reconhecer que:

1)O conhecimento escolar é diferente do não-escolar por ser especializado. Ele é independente do contexto, no sentido específico de que não simplesmente diz às pessoas como resolver problemas do cotidiano, mas é geral, teórico (Young, 2007).
2)Os atores envolvidos no processo de construção do conhecimento têm competências diferenciadas. Antes de tudo, o professor é, ou deve ser, profissionalizado na área em que atua.

O que pretendo argumentar aqui é que não reconhecer estes dois pontos abre a possibilidade de que a autoformação degenere numa simples produção/reprodução ideológica, numa espécie de “glorificação” do senso-comum sob a ilusão de um conhecimento especializado. Isto é especialmente verdadeiro no caso da sociologia, pois, como todos sabemos, os atores sociais devem ter algum tipo de conhecimento acerca do funcionamento da vida social a fim de que possam viver em sociedade. Parafraseando Schütz, somos todos sociólogos espontâneos. Mas é preciso reconhecer que a sociologia é também um tipo de conhecimento especializado e, como coloca Durkheim (1981), relativamente opaco ao entendimento espontâneo da vida cotidiana. É este tipo de conhecimento especializado que deve ser ensinado nas escolas na disciplina sociologia.

A partir destas considerações, algumas questões imediatamente se colocam: que tipo de especialista deve ser o professor de sociologia? Que tipo de conhecimento ele deve estar apto a transmitir? Que tipo de conhecimento ele produz em sua atividade de ensino? A fim de nos ajudar a refletir sobre essas questões, efetuarei agora uma leitura não muito ortodoxa da distinção entre sociologia profissional e sociologia pública efetuada por Michael Burawoy (2005). Pretendo sugerir que o professor de sociologia do ensino médio é uma espécie de sociólogo público e, como tal, sua atividade é guiada por objetivos distintos da sociologia profissional. Além disso, as normas de validação e justificação desta atividade também têm algumas especificidades. Conforme argumentarei, esta distinção entre a sociologia profissional e a sociologia pública implica relações distintas com a pesquisa empírica e com a investigação científica, de forma mais geral.

Em uma conferência presidencial da Associação Americana de Sociologia, em 2004, Burawoy (Ibid.) estabelece uma divisão do trabalho sociológico no qual distingue quatro tipos principais de sociologia: 1) uma sociologia profissional, voltada para uma audiência acadêmica e cujo conhecimento se caracteriza como instrumental; 2) uma sociologia crítica, também voltada para o público acadêmico, mas de caráter reflexivo; 3) uma sociologia pública, de caráter também reflexivo, porém voltada para um público extra-acadêmico; 4) uma sociologia aplicada a políticas públicas e sociais (policy sociology), destinada a uma audiência extra-acadêmica e de caráter instrumental.

Esta divisão do trabalho de forma alguma deve ser entendida em termos de uma separação estanque entre as diversas atividades desenvolvidas pelos sociólogos, mas como uma ênfase maior ou menor em dois eixos principais: o tipo de público ou de audiência a que se destina, por um lado; a natureza instrumental ou reflexiva da atividade, por outro. A distinção entre uma audiência acadêmica e extra-acadêmica é óbvia o bastante para não requerer nenhuma explicação detalhada. Já a distinção entre um conhecimento instrumental e um conhecimento reflexivo merece alguma elaboração. Partindo da distinção weberiana entre racionalidade axiológica e racionalidade instrumental ou técnica, Burawoy entende por conhecimento reflexivo aquele voltado para o questionamento dos próprios fins da sociedade e da sociologia. O conhecimento instrumental, por seu turno, diz respeito às formas mais eficazes de se alcançar aqueles fins.

(continua...)

Cada Macaco no Seu Galho: A Sociologia no Ensino Médio e na Academia



Em meados dos anos de 1970, Roman Jacobson, lingüista que colaborou enormemente com Lévi-Strauss, deu uma conferência no Departamento de Antropologia Social da Universidade de Harvard. Heraldo Souto Maior, memória viva do PPGS da UFPE, estava lá (veja comentário). Segundo nos conta, após a conferência, um estudante perguntou como antropólogos e lingüístas poderiam cooperar. A resposta do sábio professor foi a de que a cooperação só era possível se os lingüístas continuassem a fazer lingüística e, os antropólogos, antropologia. A história é instrutiva: a cooperação e a troca pressupõem diferenças, especificidades. Criar monstrengos supostamente híbridos, longe de enriquecer as interações sociais, as empobrece.

Acabo de voltar do I Seminário Nacional de Educação em Ciências Sociais, em Natal. Foi um evento importante e senti falta de uma participação maior de estudantes de outros estados. Fui convidada para participar de uma mesa com um título enorme: a dupla dimensão da investigação no ensino de sociologia: autoformação do professor e transmissão de conhecimentos de pesquisa para os estudantes de nível médio. Não participei de muitas atividades, pois só pude ir no penúltimo dia do evento e tive que voltar antes do seu término. Parte do que vi, no entanto, me lembrou essa estória de Lévi-Strauss e, para ser honesta, me deixou preocupada.

Posso estar enganada, mas senti nas entrelinhas de grande parte das discussões um certo embate entre os sociólogos acadêmicos, por um lado, e os estudantes de ciências sociais, sindicalistas e professores do ensino médio, por outro. Sou capaz de apostar que uma análise de conteúdo simples dos debates que assisti mostrariam que as palavras de ordem eram “aparelhos ideológicos do Estado”, “neoliberalismo ultra-liberal” (assim mesmo) e “mercado de trabalho”. Talvez falar de embate seja um exagero, já que a postura de parte dos sociólogos acadêmicos era de uma concordância envergonhada com muitas das colocações dos estudantes e dos professores do ensino médio. Em linhas gerais, a idéia era a de que as escolas eram simples aparelhos ideológicos de Estado, que a verdadeira luta dos professores do ensino médio era contra o tal do neoliberalismo ultra-liberal e que o ensino da sociologia nas universidades deveria, acima de tudo, formar os estudantes para o mercado de trabalho. Também foi cobrada uma intervenção mais direta dos sociólogos acadêmicos nas escolas, especialmente por meio do trabalho voluntário e solidário. Contradições à parte - como combater o neoliberalismo enfatizando a dimensão mercadológica da profissão ou o trabalho voluntário como forma de solucionar as lacunas deixadas pelo Estado? Como defender o ensino da sociologia nas escolas se elas são percebidas apenas sob sua dimensão de alienação e apaziguamento das classes trabalhadoras? – acho que o que realmente deixou a desejar foi uma reflexão mais profunda acerca dos papéis específicos de cada uma dessas categorias profissionais (da academia e do ensino médio) e as formas possíveis de cooperação entre ambas.

Para dar um exemplo relativamente prosaico do tipo de embate que estava em questão, eu própria e outra participante da mesa começamos nossa exposição mencionando nossa experiência com a formação de professores do ensino médio em nossos respectivos estados. Quando a mesa foi aberta para debate, uma das primeiras coisas que ouvimos dizia respeito à forma como nós, “PhDeuses” que odiávamos dar aulas na graduação, deveríamos estar nos sentindo em dar aulas para “simples professores do nível médio”. Não sei a partir de quê essa criatura inferiu que odiávamos dar aulas na graduação, mas o que ficou claro para mim foi uma auto-desvalorização de sua própria atividade como professor. Não acredito que esta seja uma postura generalizada no meio acadêmico – caso contrário, por que tantos de nós estaríamos lutando pela obrigatoriedade da sociologia no ensino médio e dividindo nosso tempo, já tão escasso, entre a pesquisa, a formação de alunos universitários e os professores daquele nível de ensino?

Creio que a verdadeira questão por trás de colocações como esta diz respeito à profissionalização e ao reconhecimento do professor daquele nível de ensino. O que é preciso defender é uma cooperação mais estreita entre os sociólogos acadêmicos e os professores do ensino médio, reconhecendo as competências específicas de cada um. Um dos papéis dos sociólogos acadêmicos é formar professores competentes; outro, não menos importante, produzir pesquisas, inclusive sobre educação. Qualquer coisa além disso, como supor que devamos sair da academia e invadir as salas de aula das escolas, é desconhecer a natureza do trabalho acadêmico, a competência e responsabilidade dos professores do ensino médio e a obrigatoriedade do Estado em oferecer educação pública de qualidade. Que fique claro: não tenho nada contra a solidariedade e o voluntariado. Pelo contrário. O que não concordo é que um debate num nível institucional deva focar essas questões. Como paliativo a uma política neoliberal esta é uma boa solução. Como política pública ou social, uma contradição, já que acaba fortalecendo o próprio mal que tenta combater. Aliás, tenho cá minhas dúvidas de que todos os professores universitários tenham a competência necessária para atuar nas escolas e acredito que não tem voluntariado que substitua um bom profissional, nem as obrigações e responsabilidades que decorrem de sua inserção específica.

Além disso, é necessário estabelecer que o ensino da sociologia é uma questão para cientistas sociais – neste sentido, discordo radicalmente da posição de parte dos sindicalistas, que defendem uma reserva de mercado para sociólogos, parecendo ignorar que, de acordo com as normas que regem a profissão, licenciados em ciências sociais não são sociólogos. Atualmente, está em andamento a criação do Conselho Federal de Sociologia, que visa incluir antropólogos e cientistas políticos e assim criar a possibilidade do registro profissional de todos os cientistas sociais, no sentido estrito. Mas independente disso, o papel dos professores universitários é formar esses profissionais.

Profissionais são pessoas que tiveram uma socialização especializada em determinada área do saber. Isto gera a necessidade de uma reflexão mais profunda acerca dos cursos de licenciatura e em que medida a academia está profissionalizando adequadamente os alunos desta área. Felizmente, esta é uma questão que está mobilizando grande parte dos acadêmicos no país e a experiência da UFRN é exemplar. Em vez de reduzir as disciplinas de pesquisa e de teoria, este aspecto do currículo foi enfatizado, possibilitando uma formação extremamente sólida e um grau de profissionalização até mais forte que no bacharelado. Mas essas são questões para serem desenvolvidas em outra ocasião.

Cynthia Hamlin

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A Ironia Musical de Erik Satie



Erik Satie (1866-1925)

Satie é um dos poucos compositores que não se encaixa em um estilo musical definido. Iconoclasta, morreu na miséria e sua ironia pode ser comparada à arte pop de Andy Wahrol, talvez sem o "pop" e mais radical, dado que anterior à influência dos meios de comunicação de massa. Freqüentemente é considerado o precursor da música minimalista, embora tenha influenciado diversos compositores impressionistas, como Claude Debussy e Maurice Ravel. Gostava de se referir à sua música como "música mobília", algo que devia ser considerado parte do ambiente no qual as pessoas se moviam. Meio esquisita a criatura. Mas absolutamente genial. Melhor conhecê-lo por ele mesmo:

O que sou

Todos lhe dirão que não sou um músico. Isto é correto. Desde o início de minha carreira eu me classifico como um fonometrógrafo. Minha obra é completamente fonométrica. Considere meu Fils des Étoiles, ou meu Morceaux en forme de Poire, meu En habit de Cheval ou meu Sarabande – é evidente que as idéias musicais não jogaram papel algum em sua composição. A ciência é o fator dominante.

Além do mais, eu gosto muito mais de medir um som do que de escutá-lo. Com o meu fonômetro na mão, trabalho alegre e confiantemente.

O que não pesei ou medi? Fiz tudo de Beethoven, tudo de Verdi etc. É fascinante.

A primeira vez que usei um fonoscópio, examinei um Si bemol de tamanho médio. Posso lhe assegurar que nunca vi algo tão revoltante. Chamei meu amigo para vê-lo.

Em minhas fono-escalas, um um fá sustenido comum obteve 93 quilos. Saiu de um tenor gordo, a quem também pesei.

Você sabe como limpar um som? É um negócio imundo. Esticá-los é mais limpo; indexá-los, uma tarefa meticulosa que demanda uma boa visão. Aqui, estamos no reino da pirofonia.

Para escrever minhas Pièces Froides, usei um gravador caleidoscópico. Levou sete minutos. Chamei meu amigo para ouví-las.

Acho que posso dizer que a fonologia é superior à música. Existe mais variedade nela. O retorno financeiro também é maior. Devo minha fortuna a ela.

Em todas as situações, com um motodinamofone, mesmo o fonometrologista mais inexperiente pode facilmente perceber mais sons do que o músico mais experiente na mesma situação, com a mesma quantidade de esforço. Foi assim que eu consegui compor tanto.

O futuro, portanto, está na filofonia.

Retirado de Erik Satie, Compositeur de Musique. Disponível em: http://www.af.lu.se/~fogwall/satie.html

Cynthia

domingo, 13 de abril de 2008

Borges não joga dados com o universo: uma crítica anti-pós da ironia vazia (parte II)



Os processos anteriormente descritos apontam para uma mudança importante na forma como o humor é socialmente percebido e utilizado. O uso do humor em áreas que tradicionalmente se pretendem sérias e a representação de atores anteriormente excluídos desta prática podem sugerir um processo de reflexividade social segundo o qual valores tradicionais ligados à ética, à estética, ao conhecimento e à própria lógica da produção capitalista são questionados e modificados. Para alguns autores, esta maior tolerância tem relação com mudanças culturais mais amplas que vêm tomando forma desde os anos de 1970 e que têm possibilitado a hegemonia de um tipo específico de humor: a ironia. De maneira geral, a ironia pode ser caracterizada como um tipo de discurso cuja implicação intencional é o oposto do sentido literal das palavras ou, dizendo de maneira mais simples, um discurso no qual se profere justamente o oposto do que se quer dizer (Rappoport, 2005: 68).

Como todo discurso a ironia não se reduz ao discurso verbal: a arte pop de um Andy Warhol ou de um Roy Lichtenstein podem ser interpretadas como afirmações extremamente irônicas sobre o significado da arte e da “alta cultura” em geral; a anti-epistemologia de Richard Rorty é definida por ele próprio como uma forma de ironia que coloca em evidência o caráter supostamente pragmático (e utilitário) do conhecimento.

A genialidade de um ironista como Borges reside justamente em sua capacidade de arrancar gargalhadas de pensadores como Foucault e, dessas gargalhadas, dar à luz obras como As Palavras e as Coisas. Ao servir de espelho aos nossos pressupostos, a ironia de Borges reflete significados que escapam à irreflexão do observador. Mas, além da reflexão por parte de quem observa, é preciso ser capaz de gerar a imagem, o que nem sempre é fácil. Isto porque a ironia é um tipo de humor cerebral, plena de jogos de linguagens. Por ser cerebral, uma de suas condições de possibilidade está intimamente ligada à existência de um cérebro (funcional), o que, convenhamos, nem sempre é o caso. Segundo, e dada a existência do cérebro, é preciso ter a capacidade de sair do próprio jogo de linguagem e refletir outras formas de vida.

Mas há esperança! A teoria da modernização reflexiva, desenvolvida por autores como Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Beck (1994), radicaliza as conseqüências da modernidade ao estender para a esfera cotidiana o questionamento acerca dos fundamentos da modernidade. Este tipo de reflexividade, inicialmente institucional, é acompanhado por uma reflexividade individual que deriva da própria diminuição das restrições culturais impostas pela religião, pela tradição e pela moral convencional, e das restrições estruturais relativas a classe, status, nação, gênero etc. Em outros termos, à medida que as formas de vida tradicionais perdem parte de sua força, os indivíduos podem, em princípio pelo menos, refletir sobre a vida que gostariam de levar e tomar uma série de decisões (Vandenberghe, 2005). Nada de decisões com base num lance de dados, portanto: a modernização reflexiva é a imagem perfeita de Borges segurando o espelho para Foucault.

Mas o espelho de Borges nos mostra outras incongruências. Entre a reflexividade e a cegueira, existem diversas formas de ironia (e também de ceticismo) geradas pela erosão da credibilidade e da autoridade de instituições tradicionais como é o caso da ciência, da medicina, da arte, da religião etc. Este fenômeno é central àquilo que muitos autores denominam de pós-modernidade e que, segundo Fredric Jameson (1993: 27), refere-se a:

um conceito periodizante cuja função é correlacionar a emergência de novos aspectos formais da cultura com a emergência de um novo de tipo de vida social e com uma nova ordem econômica – aquilo que muitas vezes se chama, eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou de consumo, sociedade da mídia ou dos espetáculos, ou de capitalismo multinacional.

Para Jameson, este período perdeu seu senso de humor porque, no pastiche, sua forma cultural dominante, impera uma espécie de “ironia vazia” (Ibid.: 29). De fato, diversos autores têm se referido à sociedade contemporânea ou pós-moderna como uma sociedade do entretenimento, da estetização da vida social, da política espetáculo e da ditatura do riso (Minois, 2003). A “sociedade humorística” descrita por Gilles Lipovetski em seu A Era do Vazio é caracterizada como:

um novo estilo descontraído e inofensivo, sem negação nem mensagem (...) Ele caracteriza o humor da moda, do texto jornalístico, dos jogos radiofônicos e televisivos, do bar, de numerosos BD. O cômico, longe de ser a festa do povo ou do espírito, tornou-se um imperativo social generalizado, uma atmosfera cool, um meio ambiente permanente que o indivíduo suporta até em sua vida cotidiana. (Lipovetski, apud Minois, 2003: 620).

Em oposição à ironia vazia da dimensão cultural da sociedade contemporânea, a idéia de reflexividade pressupõe um tipo de ironia prenhe de significados. Longe de ser apenas um joguinho inocente e desprovido de significado, o banal muitas vezes é o político.

Ai. Essa deve ter doído. Depois eu sopro a ferida...

Referências

DWYER, Tom. Humor, Power and Change in Organizations. Human Relations, Vol. 44, n.1, 1991.
GIDDENS, Anthony; LASCH, Scott; BECK, Ulrich. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e Estética na Ordem Social Moderna. São Paulo: Unesp, 1994.
JAMESON, Fredric. “O Pós-Modernismo e a Sociedade de Consumo”. In: E. Ann Kaplan (org.). O Mal-Estar no Pós-Modernismo: Teorias, Práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1993.
KOLLER, Marvin R. Humor and Society: Explorations in the sociology of humor. Houston: Cap and Gown Press, 1988.
KOTTHOFF, Helga. Gender and Humor: An introduction. Journal of Pragmatics. Special Issue: Humor. Vol 37, no. 9, 2003.
KUPERMAN, Daniel; SLAVUTZKY, Abrão. Seria Trágico se não fosse Cômico: Humor e Psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Unesp, 2003.
MORAN, Carmen; MASSAM, Margaret. An Evaluation of Humor in Emergency Work. Australasian Journal of Disaster and Trauma Studies, vol 3, Nova Zelândia, 1997.
PROVINE, Robert. Laughter: A Scientific Investigation. Harmondsworth: Penguin, 1996.
RAPPOPORT, Leon. Punchlines: The Case of Racial, Ethnic, and Gender Humor. Westport CT e Londres: Praeger, 2005.
SHIBBLES, Warren. Humor Reference Guide: A Comprehensive Classification and Analysis.
VANDENBERGHE, Frédéric. Modernité et Reflexivité. Trabalho não publicado. Universidade Federal de Pernambuco, 2005.
ZIJDERVELD, Anton C. The Sociology of Humour and Laughter. Current Sociology, Vol 31, no. 3, pp. 1-103, 1983.

Cynthia Hamlin

Borges não joga dados com o universo: uma crítica anti-pós da ironia vazia



Valha-me Deus, eu deveria estar escrevendo outra coisa, mas tem hora que a gente não resiste a uma provocação! O que eu pretendo aqui é dar continuidade às minhas reflexões sobre humor, agora por um viés mais sociológico do que filosófico. A idéia é mostrar algumas mudanças na produção contemporânea do humor e sugerir que, embora abra a possibilidade e uma maior reflexividade social e individual, ela tem caminhado para uma noção de ironia vazia que reflete uma visão de mundo extremamente cínica, apolítica e desencantada. A sociologia será utilizada aqui de acordo com a imagem memorável de Peter Berger: ela nos permite confrontar uma visão precária da realidade e os sociólogos aparecem como os bobos da corte que, de acordo com a tradição, seguravam um espelho e mostravam às pessoas aquilo que elas realmente eram, sem justificativas ou ideologias pomposas (Zijderveld, 1983).

Ao enfatizar a irracionalidade, mecanização dos corpos (Bergson, 1993 [1900]), a distorção das faces, o feio e o ridículo (Aristóteles, 1959), o cômico foi não apenas cuidadosamente interditado a categorias sociais nas quais se valoriza o controle e a racionalidade, o belo e a modéstia, como é o caso de alguns grupos profissionais, no primeiro caso, e das mulheres, no segundo, mas também dirigido a essas categorias como expressões de poder dominação.

Até recentemente, diversas categorias profissionais eram instadas a excluir o humor de suas práticas, considerado inadequado diante da seriedade de seus propósitos. Assim, em sintonia com o consenso hegemônico da era da ética da produção taylorista, Claude Hopkins, pioneiro da racionalização do conhecimento publicitário, condenava a utilização do humor em qualquer tipo de publicidade, argumentando que “o negócio do cliente é uma coisa séria para ser vendida por um palhaço”. Nos últimos anos, entretanto, é possível observar uma grande quantidade de anúncios que fazem uso do humor, inclusive de um humor mordaz, que ridiculariza o produto, o consumidor, ou ambos. Diversos profissionais da área argumentam que o humor é um método praticamente infalível para se chamar a atenção dos consumidores. Muitos estudos contemporâneos confirmam este fato – embora os artigos publicados nesta área sejam praticamente unânimes em alertar os publicitários para os riscos envolvidos nesta estratégia, já que eles ignoram solenemente os mecanismos envolvidos na produção do humor.

Um processo semelhante vem ocorrendo na área de saúde. É bem documentado na literatura sociológica o uso do humor entre profissionais desta área, seja como forma de se lidar com situações de estresse, seja como forma de se delimitar o status dos diferentes atores envolvidos em uma organização. Em um estudo clássico sobre o riso entre o staff de um hospital psiquiátrico, Lewis Coser (1960) mostra que a distribuição do humor e do riso obedece a um padrão hierárquico rígido. Com base na observação de uma série de reuniões de trabalho, Coser contabiliza uma média de 7,5 chistes proferidos por psiquiatras, 5,5 por residentes e meros 0,7 por outros profissionais de saúde, os chamados para-médicos. Apesar disso, o caráter de racionalidade, seriedade e sobriedade conferido às profissões de saúde fazia com que o uso do humor fosse excluído das relações entre aqueles profissionais e os pacientes e, muito embora reconhecidamente utilizado entre os membros do staff, não era deliberadamente utilizado como parte de sua socialização ou treinamento (Moran e Massam, 1997; Koller, 1988). Nos últimos anos, no entanto, o uso do humor vem sendo enfatizado não apenas como um importante elemento de socialização profissional para aqueles envolvidos em atividades consideradas especialmente estressantes (como os serviços de emergência), mas também seu uso terapêutico em pacientes (Kuperman e Slavutzky, 2005).

A hierarquia que estrutura as relações de gênero também está relativamente bem documentada nos estudos sobre humor, embora não necessariamente de uma perspectiva sociológica. Robert Provine, um psicólogo evolucionário que tem dedicado parte substancial de suas pesquisas ao estudo do riso, identificou padrões muito interessantes de distribuição social do riso entre homens e mulheres. Com base na observação da conversação de 1.200 díades em ambientes públicos, Provine e seus assistentes de pesquisa mostraram que as mulheres riam mais do que os homens, quer estivessem falando, quer estivessem ouvindo. Mais especificamente, “as mulheres que falam riem 127% mais do que sua audiência masculina. Em contraste com isto, homens que falam riem cerca de 7% menos do que sua audiência feminina. Nem homens nem mulheres riem tanto de mulheres que falam quanto riem de homens que falam” (Provine, 1996: 41). Como o próprio Provine sugere, o trabalho das comediantes não é fácil, independentemente do fato de sua audiência ser masculina ou feminina.

As descobertas de Provine são compatíveis com aquilo que Helga Hotthoff (2003) denomina de “dupla marginalização” do humor feminino. No passado, as mulheres eram com freqüência o objeto, mas não o sujeito do humor, especialmente em público. Havia uma discriminação objetiva em relação ao lado “bobo” ou bufão das mulheres, em parte, associada à falta de controle do corpo. A própria noção de feminilidade estava intimamente ligada a valores como a beleza, a modéstia, a decência, e o riso dirigido a elas era, como autores de Platão a Bergson, passando por Aristóteles e Hobbes, enfatizam, o riso do dominador sobre o dominado. Além do controle social exercido por meio desta política do corpo, da ética e da estética que efetivamente reduzia a participação humorística das mulheres na esfera pública, essas atividades eram tornadas invisíveis à medida que elas eram ainda excluídas de antologias literárias sobre humor, de exibições de caricaturas e de reflexões por parte de autores importantes nesta área, como é o caso de Bergson ou de Freud.

Apesar de este ainda ser o padrão dominante, segundo Hotthoff (2003), nos últimos quinze ou vinte anos o modelo corrente do homem produtor de humor e da mulher sorridente e receptiva de humor tem perdido terreno. Uma maior visibilidade das atividades humorísticas produzidas por e para mulheres tem sido garantida por uma variedade de métodos de pesquisa que possibilitam a apreensão do caráter dialógico do humor em seus contextos naturais (isto é, em situações sociais concretas). Por outro lado, a própria política de gênero do humor tem mudado, revelando um declínio da incompatibilidade tradicional entre a expressão de feminilidade, por um lado, e a produção ativa de humor, particularmente de tipo agressivo. Um caso interessante disso é o que se tem chamado de “novo humor feminino”, cujo exemplo mais bem acabado no Brasil é o delicioso “Eu Sento, Rebolo e Ainda Bato um Bolo”, de Andréa Cals e Marcela Catunda. Sério.

Pressupor que as mulheres não têm senso de humor ou que devem continuar rindo de coisas que, para nós, não têm a menor graça, implica não apenas perpetuar a imagem da mulher sorridente e abobalhada, mas ignorar que muito do “humor” produzido para as mulheres não preenchem os requisitos necessários para que os caracterizemos como humor. Levar algo “a sério” significa, com freqüência, interpretá-lo literalmente, expurgar toda e qualquer ambigüidade, desordem, caos. É não atentar para significados duplos, desviantes, que fogem ao controle ou que têm por base outros quadros de referência. Em contraste com isto, a idéia de que existe algo como um “erro aceitável” é essencial à presença do humor (Shibbles, 2006). A questão pura e simples, portanto, é que onde não existe ambigüidade ou erros aceitáveis, não existe humor: muitas vezes existe violência simbólica, dominação, agressão; outras, a mera expressão de algo entre a oligofrenia e a idiotia. Simples assim.

(continua...)

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Para não dizer que não falei de flores


Henri Bergson (1859-1941)

Pense num cidadão atarefado, este sou eu. Isso tem me impedido de empunhar as responsabilidades do Cazzo com a firmeza e a assiduidade com que desejaria. E uma das coisas que me ocupam no momento é o tal debate cultura-natureza. Essa conversa, que é tão importante para a legitimação de um discurso das ciências sociais, sempre me fez cochilar em aulas e palestras. Deve ser algo como praga de avó eu estar me envolvendo com essa conversa toda (minha avó seria bem capaz de me desejar algo assim. Lembro-me bem que aos 9 anos, olhando atentamente para as suas rugas, comentei acerca de quão velha ela era. “Se você tiver sorte, ficará velho assim”, foi a resposta, meio-praga, dela).

Mas, de que me serve este tal debate? A filosofia clássica era pouco sensível a esse tipo de oposição, embora houvesse em Aristóteles, por exemplo, uma diferença clara entre a coisa viva e o produto da técnica, da ação humana, por exemplo. A natureza, dizia, ele tem seu princípio de produção em si mesmo, o que significa dizer que ela tem uma dignidade ontológica fundamental: ninguém precisa ensinar um pé de jabuticaba a crescer e se reproduzir. Os produtos da técnica, os instrumentos técnicos, não. Seus princípios de produção são heterônomos a si mesmos. E isso significa dizer que um martelo só faz algum sentido no mundo se alguém o usa. Aquilo que ele produz não possui qualquer autonomia, ele está sempre submetido a desígnios e regras que não são as suas. Quanto à cultura, digamos que ela era imaginada como o caminho para a idéia, para aquilo que há de eterno no mundo natural. Por essa razão, idéias como equilíbrio, proporção, ponderação são qualidades morais tão aprecisadas pelo grego, por exemplo: a natureza em sua essência revela esse equilíbrio e proporção.

Não é nenhuma novidade que a modernidade inaugure uma outra concepção do que seja natureza. Hans Jonas em seu livro, O Princípio da Vida, entre muitos outros autores, propõe que a natureza perde uma dimensão simbólica, que ela tem também sob a tradição judeu-cristã, pois ela era projeto divino e fazia parte de seu projeto para o ser humano. Quando Descartes elabora o supremo dualismo de descolar a alma humana do mundo natural, abriu também a possibilidade de um monismo mecanicista: pois se a natureza entendida como conjunto de engrenagens, como autômato, foi um passo fundamental para a ciência moderna, para sua busca de medir, calcular, prever os fenômenos naturais, essa mesma compreensão fez com que a ciência começasse a se questionar se o corpo humano teria uma dignidade mais elevada que o resto da natureza.

Pensadores como La Mettrie, mas também físicos como Leduc, biólogos como Claude Bernard, D'Arcy Thompson passaram a assumir não apenas o mecanismo como parâmetro para explicar o vivo, mas acreditar que a explicação deste mecanismo é da ordem do matemático. Se vocês acham isso um exagero, ao menos para o século XIX, onde esses cavalheiros se formaram, é bom dizer que Claude Bernard e Leriche, por exemplo, são figuras importantes para a constituição de uma medicina preocupada em medir nossa saúde através de exames como taxa de glicose, nível de colesterol no sangue etc.Ora, muito antes destes, kant, seguindo Descartes, já dizia: "Eu afirmo apenas que em toda particular doutrina da natureza só se pode encontrar verdadeira ciência [eigentiliche Wissenschaft] tanto quanto há na matemática" (Citado por Evelyn Fox-Keller em Making Sense of Life).

E qual a relação que isso tudo tem com o debate cultura-natureza? Bem, para começo de conversa aceitamos o ponto de vista de Jonas que diz que o progresso dessa visão da natureza e da vida, ao reduzi-las ao mecânico, ao inanimado, foi capaz de responder a questões acerca de seu funcionamento – ou aquilo que Jonas chama o “como?” das coisas. Mas deixou de fora, como temas metafísicos, indagações tradicionais acerca do sentido da vida e da natureza. Essas questões que Hans Jonas chama de “para quê?”. Para ele, seguindo aqui o seu mestre, Marin Heidegger, esse seria o grande impensado no processo de matematização da natureza. A natureza, neste processo, deixa de ser concebida como algo que tem o princípio de si em si, ela é um conjunto de engrenagens que posso reconfigurar segundo minhas necessidades. Mas produzir grãos transgênicos, aumentar a expectativa de vida, para quê? A resposta parece clara: para termos mais vida. Porém, como a vida parece ter se tornado algo sem sentido, reduzida ao puro mecanismo, essa mesma ciência pode também produzir armas biológicas sem que qualquer contradição interna pareça afetar sua prática.

Hans Jonas esqueceu em sua reflexão, entretanto, de encontrar um espaço para o vitalismo nas ciências humanas e nas ciências da vida. E isso é facilmente explicável. O vitalismo foi sempre considerado como obscurantista, procurando impedir o progresso da ciência possível (da descoberta do mecanismo da natureza) com suas postulações religiosas. Ora, esse não seria o caso, por exemplo de Bergson? Este não se recusou, seja na Evolução Criadora, em O Riso, em Matéria e Memória, a aceitar que a vida pudesse ser pensada segundo os mesmos critérios que a natureza inanimada? Este valor especial, essa dignidade particular que ele confere aos viventes não é resquício de uma religiosidade que o impede de aceitar o caminho natural da ciência?

Pensemos também, e mais recentemente, em Gerges Canguilhem ou Lewontin. A recusa desses autores em aceitar que a vida possa ser desvelada como mecanismo, como conjunto de engrenagens, não é o resultado de um mesmo vitalismo semi-religioso? No caso de Canguilhem, há um certo acordo em seus críticos. Em artigo escrito para a revista Theory, Culture & Society, todavia, Mônica Grecco alerta para a importância crítica do vitalismo. A verdade é que ele foi uma arma muito eficiente para conter um determinismo mecanicista nas ciências da vida. Quando nada isso ajudou a aperfeiçoar as primeiras intuições ingenuamente ‘quantativizadoras’ de um Leduc ou de um Claude Bernard.

O que seria da psicanálise, da fenomenologia, da ontologia radical de Martin Heidegger, se Bergson não tivesse se recusado a pensar a consciência a partir da idéia de tempo que a física newtoniana propôs - como uma sucessão de pontos em uma linha do tempo, onde o que é passado não pode ser recuperado, está para sempre consumado como um evento químico? Bergson, em oposição a isso, afirma na Evolução Criadora:
A duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e infla ao avançar. A partir do momento que o passado aumenta sem cessar, infinitamente também ele se conserva. A memória, [...] não é uma faculdade de classificar lembranças numa gaveta ou de registrar num arquivo. [...] Em realidade o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. Por inteiro, sem dúvida, ele nos acompanha a cada instante; [...] Essas lembranças, mensageiras do inconsciente, nos advertem do que arrastamos conosco sem o saber. Mas sentiríamos vagamente que nosso passado continua presente conosco mesmo não tendo a idéia distinta das lembranças". [Bergson, Evolução Criadora, p. 16)


E o debate cultura-natureza? Creio que ele é fruto do cenário descrito por Jonas. Porém, descrito de modo incompleto: há de falar do importante papel dos ‘vitalistas’ de um modo geral para quem o pensamento ocidental não pode deixar de se perguntar acerca do sentido da vida: para quê? Mesmo que o façam de modo acanhado, nas entrelinhas.

Jonatas Ferreira
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(por editar)

domingo, 6 de abril de 2008

O homem-objeto da Lebensphilosophie



Outro dia falamos na Lebensphilosophie, ou filosofia da vida, numa aula sobre Schütz. A idéia era esclarecer o conceito de durée de Henri Bergson. Não vou falar disso aqui, mas de homens-objeto. Ou melhor, vou falar da comédia como uma forma de reificação do outro, que é a tese de Bergson.

Assim como Dilthey e Simmel, Bergson concebe a vida como um fluxo contínuo de um ser que envelhece sem cessar. Na vida, não há repetições, não há um “voltar atrás”. Os seres vivos caracterizam-se por uma mudança contínua, uma individualidade perfeita, dado que são irreversíveis. A repetição e a reversibilidade é própria dos seres mecânicos, determinados por séries causais externas e independentes. Por isso, a rigidez mecânica de corpo, de espírito e de caráter seria contrária à vida, pois impede a maleabilidade, a sociabilidade, a adaptação, o próprio fluxo da vida.

Ao trazer essas idéias para o fenômeno cômico, Bergson concebe a comédia como um jogo que imita a vida. Nesta imitação, perde seu caráter de fluxo, de singularidade. Daí sua definição de cômico: “todo arranjo de actos e acontecimentos que nos dá, inseridos uns nos outros, a ilusão da vida e a sensação nítida dum arranjo mecânico” (Bergson, 1993 [1900]: 58). De acordo com esta perspectiva, o riso gerado pelo fenômeno cômico seria um mecanismo de correção da rigidez e da inflexibilidade que impedem o fluxo da vida. A causa do cômico é algo que atenta contra a vida social e à qual a sociedade reage com o riso, que é nada menos do que uma reação de defesa: “o riso é, antes de tudo, uma correção. Feito para humilhar, deve dar à pessoa que é objeto dele uma impressão penosa. Através dele se vinga a sociedade das liberdades praticadas contra ela” (Ibid.: 134).

Por se manifestar como uma espécie de vingança, de repressão da insociabilidade e das tendências separatistas que surgem no seio de grupos de uma sociedade mais ampla, o riso não poderia se basear na simpatia ou na bondade, mas na humilhação e na intimidação de quem não é flexível o bastante para se adaptar ao fluxo da vida. Neste sentido, à insociabilidade do personagem deve se juntar a insensibilidade do espectador, cuja atenção é dirigida ao mero gesto do outro. Diferentemente da ação, o gesto não exprime uma personalidade total do ator, mas apenas uma parte isolada de sua pessoa. Isto gera o desconhecimento ou o afastamento da consciência do outro, reificando-o.

Contrariamente ao que afirmam autores como Verena Alberti (1999:95), para quem o sujeito bergsoniano não ri por superioridade ou por orgulho, a tese da superioridade está implícita em seu estudo sobre o riso: a insensibilidade, a ausência de emoção e de empatia reduz o outro a um mero objeto, a uma vida defeituosa. De fato, para Bergson, a insensibilidade (dos que riem) seria um dos indicadores fundamentais da presença do humor. É por esta razão que aquele que ri “afirma-se mais ou menos orgulhosamente ele próprio e tende para considerar a pessoa de outrem como um fantoche do qual segura os cordelinhos” (Bergson, 1993 [1900]: 135).

A sociologia é mesmo fascinante. E eu, que nunca tinha pensado em Mr. Bean como homem-objeto... Smoooooth!

Cynthia

Referências

ALBERTI, Verena (1999). O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BERGSON, Henri (1993[1900]). O riso: ensaio sobre o significado do cómico. Lisboa: Guimarães editores.