Faço, atualmente, uma série de anotações a respeito do hospital psiquiátrico. Aproveitei e peguei anotações antigas, incluindo algumas sobre o asilo psiquiátrico. Confesso que acho muito elucidativo rever anotações já velhas e carcomidas pelo tempo. Diz um bocado acerca de como pensava na época e de minha trajetória, digamos assim, causando aquela perplexidade ou estranhamento: "cacetada, eu tinha essa posição?". Mas, ao mesmo tempo, a descoberta de atavismos do passado pode me levar a, novamente, revisar posições. Com a comparação entre passado e presente, procuro um meio-termo visando o futuro.
Abaixo, de vez em quando, pontuo o texto, fazendo observações. De todo modo, dei uma recauchutada no escrito, embora preservasse seu conteúdo. Em suma, de tudo fica um pouco -- algumas vezes, a crítica roedora dos ratos; outras, a própria crítica.
Lá vai:
"Doutor, este enigma queira explicar:
Outros, a sua Física cura, mas eu reclamo
Comigo ela funciona exatamente ao contrário,
E me torna poeta, que eles dizem Louco.
A verdade é que meu Cérebro está em boas condições
Apolo sabe mais que o seu médico:
É doença de charlatão, não minha, minha poesia
É pelo cego Lunático tomada como loucura"
James Carnesse
(Essa frase estava no meio das anotações. Gostei dela... novamente. Serve para ilustrar o post)
Queremos, aqui, entender o asilo psiquiátrico ou, mais especificamente, o modo como ele se organiza na sociedade. A realização desse objetivo exigirá, a nosso ver, um caminho teórico que implemente uma dissecação do objeto de estudo, percorrendo uma trajetória que sai do asilo, enquanto totalidade ainda abstrata, indo até às suas partes constituintes ou às suas "estruturas" ― conjunto de relações mais significativas ―, para então retornar ao asilo, agora como síntese de múltiplas determinações.
(tá na cara que, aqui, estou embebido do velho Marx -- será a "Contribuição à Critica Da Economia Politica"? Onde está escrito aquele exemplo que vai de abstração em abstração, da população até a mercadoria?)
O asilo, antes uma totalidade não orgânica e oca, retorna da análise como uma totalidade concreta, dinâmica e "viva". Deixa de ser um nome para se transformar numa entidade teórica. Sua transformação num objeto de conhecimento exige, parodiando Hegel, a utilização do poder absoluto do pensamento: a divisão. Por isso, utilizamos a palavra "dissecar", para visualizar o que queremos fazer com o asilo. A "dissecação" é um trabalho meticuloso, lento, quase "arqueológico", que vai de camada em camada, até chegar ao fulcro do tecido. Com ela não queremos, propriamente, chegar ao núcleo causal formador do asilo, mas sim à sua determinação última, que ilumina a sua totalidade: a função repressiva institucional.
(agora, misturo tudo, dialética e "dissecação arqueológica", o escambau! E Hegel?! Pra que Hegel?!)
Mas, se o lado dominante do asilo é a ação repressiva institucionalizada, conseqüentemente ela necessita para a sua legitimação de um conjunto articulado de normas que realize uma determinada ordem acoplada a uma disciplina e uma hierarquia. Por isso, a prática repressiva sempre está sobre-determinada por algum fundamento ideológico, principalmente o reconhecimento social da necessidade de recluir o paciente. O efeito de legitimação do asilo, por sua vez, está ancorado e organizado pelo saber psiquiátrico ― entendido aqui, especificamente, como uma estratégia de poder. O saber psiquiátrico produz uma ação normativa que tem como função social legitimar a reclusão de determinados indivíduos cujas manifestações não podem ser toleradas.
(muito tempo depois dessas anotações, peguei o bonde do saber psiquiátrico e fui parar numa estação estranha, o saber profissional. Utilizei, claro, Foucault e sua noção de saber-poder. Inclusive, relativizei o alcance dessa noção. Aqui, nesse texto, minhas posições identificam-se com o movimento da anti-psiquiatria. O saber psiquiátrico só pode ser entendido como um poder de tutela sobre o louco -- por definição)
O asilo, nesse enfoque, seria uma instituição que, na sua ação repressiva, articularia saberes (aqui, como ideologia) e práticas (intervenções normativas). Assim, a análise do asilo não ficaria reduzida a um estudo de um conjunto de normas controladas por um sistema de valores, bem como não se resumiria a uma análise dos papéis institucionais, isto é, de suas práticas. Nesse sentido, concordamos com a sugestão de Madel Luz de, no estudo das instituições em geral, perceber
"o aspecto estrutural (conjunto de normas de conduta, de regras de organização dos comportamentos) e o aspecto da prática institucional (conjunto de relações sociais institucionais) como dois aspectos de um mesmo núcleo de poder, mediados por um discurso institucional" (Madel Luz, 1986, 33).(a utilização de Madel Luz diz muito a respeito do que pensava na época. Teoricamente, misturava anti-psiquiatria, Foucault e... Gramsci -- e ainda tem uma pitada de estruturalismo marxista. Danou-se, eu já era um sarapatel teórico!)
O interessante nessa proposta é que o saber não se esgotaria nas normas (do asilo, por exemplo); ele seria, isto sim, "(...) o elo entre relações institucionais de poder e os regulamentos que asseguram a continuidade da dominação institucionalizada" (1986, 33). Nesse sentido, o saber suportaria as normas.
A necessidade de articular o campo repressivo (dominante) com o ideológico (sobre-determinante) tem a sua utilidade para captarmos a conexão, que o asilo possui na sua estrutura, de duas formas de institucionalização. Na primeira, o falso, o bem e o mal, o justo e o injusto; portanto, em tudo que remete à sua competência, o asilo demarca, reconhece e sanciona o que lhe é de direito. Na segunda forma de institucionalização, o asilo estrutura-se em torno de relações sociais que ali ocorrem e, por conseguinte, as definições entre o certo e o errado são baseadas nessas relações socais; logo, deve adotar-se de uma instância burocrático-administrativa para impor a soberania, isto é, deve existir um aparelho repressivo não autônomo (J. A Guilhon Albuquerque, 1977).
No asilo, o seu reconhecimento enquanto ordem não é assegurado pela parte fundamental de seus membros: os pacientes. O reconhecimento vem do exterior. Mas, ao mesmo tempo, o asilo está "separado" da sociedade e é um lugar de soberania, inclusive com todo o seu aparato cerimonial e ritualístico. A asilo, na verdade, para existir como ordem soberana, precisa ser reconhecido pelo sujeitos cuja soberania é, por sua vez, reconhecida por sua filiação à ordem, mas, como já dissemos, o efeito de reconhecimento não ocorre por parte dos pacientes. Portanto, é necessário um aparato repressivo, inscrito na organização terapêutico-administrativo do asilo, para regular e controlar a coletividade dos pacientes.
Porém, como garantir o "cimento" dessa repressão institucionalizada? Segundo Guilhon de Albuquerque, baseado nos estudos de Goffman, a reprodução ideológica da ação repressiva asilar passa pela constituição da imagem cindida do Outro (1977, 142). Assim, a auto-imagem que o paciente tem de si mesmo é fragmentada, feito um espelho que cai no chão e se estilhaça. Qualquer unificação dessa imagem, num ou noutro sentido, resolveria irreversivelmente a dominação institucional asilar. Mesmo assim, poder-se-ia dizer que esse tipo de efeito ideológico não é original ao asilo e às chamadas "instituições totalitárias" (E. Goffman, 1974): a originalidade do asilo e seus congêneres não é a ocultação da fragmentação da imagem, e sim justamente a transparência e a legitimação dessa clivagem.
(na época, entrei em contato com o interacionismo simbólico. Atualmente, sou muito influenciado por essa "postura metodológica". No estudo do saber psiquiátrico profissional, abusei do interacionismo de Anselm Strauss -- aqui -- e de Goffman)
Dessa forma, o paciente é submetido a uma despersonalização que nunca retira, entretanto, a sua capacidade de sujeito: é necessário que ele
"seja absolutamente Outro para que possa submetê-lo a certas práticas e esquivar-se às suas demandas, mas é preciso que ele seja o mesmo para que se possa até conceber certas exigências a que deve curvar-se, e ao mesmo tempo justificá-las e esperar que tais exigências sejam satisfeitas" (J. A Guilhon Albuquerque, 1977, 142)O asilo, então, possui o seu ponto nodal na repressão institucionalizada, sobre-determinada por uma pratica ideológica que legitima a reclusão dos pacientes psiquiátricos -― seja no asilo (imagem cindida), seja socialmente ― através do poder um saber psiquiátrico sancionado por um mandato social.
A ênfase no aspecto repressivo do asilo induz-nos, de certa forma, a esquecer que ele é uma organização terapêutica. Talvez, um dos maiores paradoxos do asilo psiquiátrico seja a combinação de um "instituição totalitária" com uma organização terapêutica. O asilo, de fato, surgiu primeiramente como uma instituição de reclusão e de repressão, e depois foi apropriado pela saber psiquiátrico como um espaço terapêutico por excelência da psiquiatria. Tal diferença cronológica ― primeiro repressão, depois terapia -― pode questionar ou, pelo menos, flexibilizar a concepção que relaciona, como causa e efeito, uma visão nosológica com um modo de organização terapêutica respectivo. Isto é, o saber determinaria a forma de organização na qual se cristaliza.
(nesse momento, já começo a diminuir o alcance das críticas da anti-psiquiatria, isto é, começo a questionar a redução da psiquiatria a um mero dispositivo de poder e de controle sobre a loucura. Contudo, não nego a pertinência dessa redução; na verdade, o que sempre fiz foi diminuir seu alcance)
Aparentemente, a repressão e a terapia não combinam. Se uma visão psiquiátrica de doença mental naturaliza e reifica o doente, talvez a bipolaridade repressão / terapia, simplesmente, não exista ou nem seja percebida pelos psiquiatras. Mas, se inferimos, por exemplo, que a doença mental é uma enfermidade da comunicação distorcida patologicamente e que, principalmente, seu tratamento envolve a restauração plena da capacidade comunicativa do sujeito-doente, fica assim impossível combinar repressão e terapia.
(descubro aqui, num misto de perplexidade e hilariedade, que adorava feijoada e paella: misturava tudo! Conceituar a doença mental como "uma enfermidade da comunicação distorcida patologicamente" é... Habermas -- aqui! Olhando as anotações, essa aproximação visava uma crítica ao asilo a partir da teoria habermasiana da ação comunicativa)
Por outro lado, combinar repressão com terapia seria uma forma institucional de se tratar uma rejeição social ― os loucos ― considerada como uma patologia mental, passível, portanto, de ser apropriada pelo discurso psiquiátrico. Mesmo assim, ficaria a dúvida sobre qual a razão de os psiquiatras não tomarem consciência da bipolaridade repressão / terapia ou de, simplesmente, absorverem-na de forma acrítica.
De novo, voltamos ao discurso organicista nos psiquiatras. Com efeito, olhar um paciente como uma objetividade natural ― uma doença orgânica ― evita o contato comunicativo com o paciente; evita tomar consciência de que, apesar da doença, ele é um "sujeito comunicativo". Na verdade, a neutralidade do psiquiatra evita seu envolvimento com o intenso sofrimento psíquico do paciente, seja pela sua doença, seja pela sua reclusão numa instituição asilar. A função do discurso organicista seria silenciadora. Na nossa opinião, o discurso organicista estabiliza a instabilidade estrutural da relação psiquiatra – paciente, mas a estabiliza para o primeiro pólo. Qualquer outra visão de doença mental que considere o doente como um sujeito implode em mil pedaços essa relação e a estrutura que a sustenta: o asilo.
(não sei bem o que queria dizer com essa noção de "sujeito comunicativo", mas vejo que queria utilizar Habermas, seja em relação a uma crítica ao asilo, seja em relação ao discurso organicista ou biomédico da psiquiatria. Politicamente, queria defender uma relação intrínseca entre o discurso biomédico da psiquiatria e o asilo (uma defesa, digamos assim, "anti-psiquiátrica"). Essa posição não foi confirmada na minha pesquisa do doutorado. O discurso biomédico pode estar associado a um discurso anti-asilo e a outras formas de tratamento que não o exclusivamente medicamentoso, por exemplo).
Já, já, continuo...
Referência Bibliográfica:
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon, Instituição e Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986
GOFFMAN, Erving, Manicômio, Prisões e Conventos, São Paulo, Perspectivas, 1974
LUZ, Madel T., As instituições médicas no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, Terceira Edição, 1986
Artur Perrusi