domingo, 31 de maio de 2009

Stultifera Navis: a quelque chose malheur est bon



Faço, atualmente, uma série de anotações a respeito do hospital psiquiátrico. Aproveitei e peguei anotações antigas, incluindo algumas sobre o asilo psiquiátrico. Confesso que acho muito elucidativo rever anotações já velhas e carcomidas pelo tempo. Diz um bocado acerca de como pensava na época e de minha trajetória, digamos assim, causando aquela perplexidade ou estranhamento: "cacetada, eu tinha essa posição?". Mas, ao mesmo tempo, a descoberta de atavismos do passado pode me levar a, novamente, revisar posições. Com a comparação entre passado e presente, procuro um meio-termo visando o futuro.

Abaixo, de vez em quando, pontuo o texto, fazendo observações. De todo modo, dei uma recauchutada no escrito, embora preservasse seu conteúdo. Em suma, de tudo fica um pouco -- algumas vezes, a crítica roedora dos ratos; outras, a própria crítica.

Lá vai:

"Doutor, este enigma queira explicar:
Outros, a sua Física cura, mas eu reclamo
Comigo ela funciona exatamente ao contrário,
E me torna poeta, que eles dizem Louco.
A verdade é que meu Cérebro está em boas condições
Apolo sabe mais que o seu médico:
É doença de charlatão, não minha, minha poesia
É pelo cego Lunático tomada como loucura"

James Carnesse

(Essa frase estava no meio das anotações. Gostei dela... novamente. Serve para ilustrar o post)

Queremos, aqui, entender o asilo psiquiátrico ou, mais especificamente, o modo como ele se organiza na sociedade. A realização desse objetivo exigirá, a nosso ver, um caminho teórico que implemente uma dissecação do objeto de estudo, percorrendo uma trajetória que sai do asilo, enquanto totalidade ainda abstrata, indo até às suas partes constituintes ou às suas "estruturas" ― conjunto de relações mais significativas ―, para então retornar ao asilo, agora como síntese de múltiplas determinações.

(tá na cara que, aqui, estou embebido do velho Marx -- será a "Contribuição à Critica Da Economia Politica"? Onde está escrito aquele exemplo que vai de abstração em abstração, da população até a mercadoria?)

O asilo, antes uma totalidade não orgânica e oca, retorna da análise como uma totalidade concreta, dinâmica e "viva". Deixa de ser um nome para se transformar numa entidade teórica. Sua transformação num objeto de conhecimento exige, parodiando Hegel, a utilização do poder absoluto do pensamento: a divisão. Por isso, utilizamos a palavra "dissecar", para visualizar o que queremos fazer com o asilo. A "dissecação" é um trabalho meticuloso, lento, quase "arqueológico", que vai de camada em camada, até chegar ao fulcro do tecido. Com ela não queremos, propriamente, chegar ao núcleo causal formador do asilo, mas sim à sua determinação última, que ilumina a sua totalidade: a função repressiva institucional.

(agora, misturo tudo, dialética e "dissecação arqueológica", o escambau! E Hegel?! Pra que Hegel?!)

Mas, se o lado dominante do asilo é a ação repressiva institucionalizada, conseqüentemente ela necessita para a sua legitimação de um conjunto articulado de normas que realize uma determinada ordem acoplada a uma disciplina e uma hierarquia. Por isso, a prática repressiva sempre está sobre-determinada por algum fundamento ideológico, principalmente o reconhecimento social da necessidade de recluir o paciente. O efeito de legitimação do asilo, por sua vez, está ancorado e organizado pelo saber psiquiátrico ― entendido aqui, especificamente, como uma estratégia de poder. O saber psiquiátrico produz uma ação normativa que tem como função social legitimar a reclusão de determinados indivíduos cujas manifestações não podem ser toleradas.

(muito tempo depois dessas anotações, peguei o bonde do saber psiquiátrico e fui parar numa estação estranha, o saber profissional. Utilizei, claro, Foucault e sua noção de saber-poder. Inclusive, relativizei o alcance dessa noção. Aqui, nesse texto, minhas posições identificam-se com o movimento da anti-psiquiatria. O saber psiquiátrico só pode ser entendido como um poder de tutela sobre o louco -- por definição)

O asilo, nesse enfoque, seria uma instituição que, na sua ação repressiva, articularia saberes (aqui, como ideologia) e práticas (intervenções normativas). Assim, a análise do asilo não ficaria reduzida a um estudo de um conjunto de normas controladas por um sistema de valores, bem como não se resumiria a uma análise dos papéis institucionais, isto é, de suas práticas. Nesse sentido, concordamos com a sugestão de Madel Luz de, no estudo das instituições em geral, perceber
"o aspecto estrutural (conjunto de normas de conduta, de regras de organização dos comportamentos) e o aspecto da prática institucional (conjunto de relações sociais institucionais) como dois aspectos de um mesmo núcleo de poder, mediados por um discurso institucional" (Madel Luz, 1986, 33).
(a utilização de Madel Luz diz muito a respeito do que pensava na época. Teoricamente, misturava anti-psiquiatria, Foucault e... Gramsci -- e ainda tem uma pitada de estruturalismo marxista. Danou-se, eu já era um sarapatel teórico!)

O interessante nessa proposta é que o saber não se esgotaria nas normas (do asilo, por exemplo); ele seria, isto sim, "(...) o elo entre relações institucionais de poder e os regulamentos que asseguram a continuidade da dominação institucionalizada" (1986, 33). Nesse sentido, o saber suportaria as normas.

A necessidade de articular o campo repressivo (dominante) com o ideológico (sobre-determinante) tem a sua utilidade para captarmos a conexão, que o asilo possui na sua estrutura, de duas formas de institucionalização. Na primeira, o falso, o bem e o mal, o justo e o injusto; portanto, em tudo que remete à sua competência, o asilo demarca, reconhece e sanciona o que lhe é de direito. Na segunda forma de institucionalização, o asilo estrutura-se em torno de relações sociais que ali ocorrem e, por conseguinte, as definições entre o certo e o errado são baseadas nessas relações socais; logo, deve adotar-se de uma instância burocrático-administrativa para impor a soberania, isto é, deve existir um aparelho repressivo não autônomo (J. A Guilhon Albuquerque, 1977).

No asilo, o seu reconhecimento enquanto ordem não é assegurado pela parte fundamental de seus membros: os pacientes. O reconhecimento vem do exterior. Mas, ao mesmo tempo, o asilo está "separado" da sociedade e é um lugar de soberania, inclusive com todo o seu aparato cerimonial e ritualístico. A asilo, na verdade, para existir como ordem soberana, precisa ser reconhecido pelo sujeitos cuja soberania é, por sua vez, reconhecida por sua filiação à ordem, mas, como já dissemos, o efeito de reconhecimento não ocorre por parte dos pacientes. Portanto, é necessário um aparato repressivo, inscrito na organização terapêutico-administrativo do asilo, para regular e controlar a coletividade dos pacientes.

Porém, como garantir o "cimento" dessa repressão institucionalizada? Segundo Guilhon de Albuquerque, baseado nos estudos de Goffman, a reprodução ideológica da ação repressiva asilar passa pela constituição da imagem cindida do Outro (1977, 142). Assim, a auto-imagem que o paciente tem de si mesmo é fragmentada, feito um espelho que cai no chão e se estilhaça. Qualquer unificação dessa imagem, num ou noutro sentido, resolveria irreversivelmente a dominação institucional asilar. Mesmo assim, poder-se-ia dizer que esse tipo de efeito ideológico não é original ao asilo e às chamadas "instituições totalitárias" (E. Goffman, 1974): a originalidade do asilo e seus congêneres não é a ocultação da fragmentação da imagem, e sim justamente a transparência e a legitimação dessa clivagem.

(na época, entrei em contato com o interacionismo simbólico. Atualmente, sou muito influenciado por essa "postura metodológica". No estudo do saber psiquiátrico profissional, abusei do interacionismo de Anselm Strauss -- aqui -- e de Goffman)

Dessa forma, o paciente é submetido a uma despersonalização que nunca retira, entretanto, a sua capacidade de sujeito: é necessário que ele
"seja absolutamente Outro para que possa submetê-lo a certas práticas e esquivar-se às suas demandas, mas é preciso que ele seja o mesmo para que se possa até conceber certas exigências a que deve curvar-se, e ao mesmo tempo justificá-las e esperar que tais exigências sejam satisfeitas" (J. A Guilhon Albuquerque, 1977, 142)
O asilo, então, possui o seu ponto nodal na repressão institucionalizada, sobre-determinada por uma pratica ideológica que legitima a reclusão dos pacientes psiquiátricos -― seja no asilo (imagem cindida), seja socialmente ― através do poder um saber psiquiátrico sancionado por um mandato social.

A ênfase no aspecto repressivo do asilo induz-nos, de certa forma, a esquecer que ele é uma organização terapêutica. Talvez, um dos maiores paradoxos do asilo psiquiátrico seja a combinação de um "instituição totalitária" com uma organização terapêutica. O asilo, de fato, surgiu primeiramente como uma instituição de reclusão e de repressão, e depois foi apropriado pela saber psiquiátrico como um espaço terapêutico por excelência da psiquiatria. Tal diferença cronológica ― primeiro repressão, depois terapia -― pode questionar ou, pelo menos, flexibilizar a concepção que relaciona, como causa e efeito, uma visão nosológica com um modo de organização terapêutica respectivo. Isto é, o saber determinaria a forma de organização na qual se cristaliza.

(nesse momento, já começo a diminuir o alcance das críticas da anti-psiquiatria, isto é, começo a questionar a redução da psiquiatria a um mero dispositivo de poder e de controle sobre a loucura. Contudo, não nego a pertinência dessa redução; na verdade, o que sempre fiz foi diminuir seu alcance)

Aparentemente, a repressão e a terapia não combinam. Se uma visão psiquiátrica de doença mental naturaliza e reifica o doente, talvez a bipolaridade repressão / terapia, simplesmente, não exista ou nem seja percebida pelos psiquiatras. Mas, se inferimos, por exemplo, que a doença mental é uma enfermidade da comunicação distorcida patologicamente e que, principalmente, seu tratamento envolve a restauração plena da capacidade comunicativa do sujeito-doente, fica assim impossível combinar repressão e terapia.

(descubro aqui, num misto de perplexidade e hilariedade, que adorava feijoada e paella: misturava tudo! Conceituar a doença mental como "uma enfermidade da comunicação distorcida patologicamente" é... Habermas -- aqui! Olhando as anotações, essa aproximação visava uma crítica ao asilo a partir da teoria habermasiana da ação comunicativa)

Por outro lado, combinar repressão com terapia seria uma forma institucional de se tratar uma rejeição social ― os loucos ― considerada como uma patologia mental, passível, portanto, de ser apropriada pelo discurso psiquiátrico. Mesmo assim, ficaria a dúvida sobre qual a razão de os psiquiatras não tomarem consciência da bipolaridade repressão / terapia ou de, simplesmente, absorverem-na de forma acrítica.

De novo, voltamos ao discurso organicista nos psiquiatras. Com efeito, olhar um paciente como uma objetividade natural ― uma doença orgânica ― evita o contato comunicativo com o paciente; evita tomar consciência de que, apesar da doença, ele é um "sujeito comunicativo". Na verdade, a neutralidade do psiquiatra evita seu envolvimento com o intenso sofrimento psíquico do paciente, seja pela sua doença, seja pela sua reclusão numa instituição asilar. A função do discurso organicista seria silenciadora. Na nossa opinião, o discurso organicista estabiliza a instabilidade estrutural da relação psiquiatra – paciente, mas a estabiliza para o primeiro pólo. Qualquer outra visão de doença mental que considere o doente como um sujeito implode em mil pedaços essa relação e a estrutura que a sustenta: o asilo.

(não sei bem o que queria dizer com essa noção de "sujeito comunicativo", mas vejo que queria utilizar Habermas, seja em relação a uma crítica ao asilo, seja em relação ao discurso organicista ou biomédico da psiquiatria. Politicamente, queria defender uma relação intrínseca entre o discurso biomédico da psiquiatria e o asilo (uma defesa, digamos assim, "anti-psiquiátrica"). Essa posição não foi confirmada na minha pesquisa do doutorado. O discurso biomédico pode estar associado a um discurso anti-asilo e a outras formas de tratamento que não o exclusivamente medicamentoso, por exemplo).

Já, já, continuo...

Referência Bibliográfica:

ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon, Instituição e Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1986
GOFFMAN, Erving, Manicômio, Prisões e Conventos, São Paulo, Perspectivas, 1974
LUZ, Madel T., As instituições médicas no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, Terceira Edição, 1986


Artur Perrusi

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Notas sobre "futebol e violência" -- IV



Ufa! Cheguei ao fim, juro, juro...

Ainda mais, espírito de porco persecutório, gordinho esdrúxulo, gatinho histriônico, bem... er... entendi o recado.

Do futebol (terceiro clichê)...

Talvez, de todos os clichês, o agora analisado seja o mais preconceituoso em relação ao futebol -- atualmente é aquele que está se tornando o mais popular, provavelmente por causa do recrudescimento da violência nos estádios. É um clichê que tem suas raízes na psicologia social do século XIX, sendo uma espécie de atualização do famoso estudo de Gustave Le Bon: "A psicologia das multidões" (ver Gustave Le Bon, "Psychologie des foules", Paris, Retz, 1975). Seria a "demonização" da multidão, entendida como uma horda anárquica e desorganizada, movida basicamente por instintos, personificando, como tal, a morte dos laços sociais. Seria como se, a partir da multidão, a interação social deixasse de existir. E, uma vez que os instintos, nessa psicologia racionalista, são vistos de uma forma "negativa", significando mais uma perversão da razão do que outra coisa, a violência tornar-se-ia, como instinto típico, o leitmotiv da multidão.

E como ficaria o indivíduo na horda?

Nada bem. Ele sofreria um processo de regressão cognitiva, com a conseqüente perda do seu controle volitivo, sendo comandado pelo caos impessoal da multidão. O indivíduo perderia sua individualidade e sua identidade, pois seria vítima de uma fusão entre sua personalidade e a massa. O resultado de todo esse processo é aterrador: perdendo sua individualidade, o indivíduo perde sua razão, afasta-se da "civilização" e se inunda de "instintos básicos", principalmente os mais pavorosos, a começar pela violência. Sim, ele se torna muito violento...

Tal visão seria um clichê de matiz conservador, atestando um conhecido medo de base: o medo das massas, tão característico do século XIX e de várias "elites" de nossa época. Seria a defesa desesperada da integridade do indivíduo diante do poder de fusão da multidão. Pode-se até conceber uma situação em que ocorra tal fusão; pode-se até pensar em alguns exemplos concretos de fusão, principalmente nos casos cujo "tema", que move e interpela a turba, seja "negativo" e de fácil assimilação emocional; contudo, tais situações são bem específicas e não podem funcionar como paradigma para outras situações que envolvam "multidões".

Sociologicamente, "a multidão como horda ensandecida" seria uma interpretação de tipo irracional da ação coletiva. Ainda que se possa conceber determinadas ações coletivas irracionais, geralmente a ação coletiva, mesmo quando ocorrem explosões de violência, é inteligível e a violência motivada, sendo dificilmente assimilada a explosões irracionais.

O clichê pode ser conservador, mas não é monopólio de intelectuais assumidamente conservadores. Pode-se encontrar a utilização do clichê, até mesmo com mais virulência, entre intelectuais de esquerda, principalmente na análise do fenômeno do hooliganismo (Ver Jean-Marie Brohm, "Une violence cannibale", Manière de voir -- Le monde Diplomatique --, n°39, maio-junho 1998. O título do artigo, sem dúvida, é extremamente sugestivo; já o título de um livro do autor, praticamente diz tudo: Les meutes sportives. Critique de la domination. Lembrar que "meutes" em francês significa uma tropa de cachorros treinados para a caça...). E, de fato, as torcidas organizadas são vistas, não apenas no meio acadêmico, mas também no "senso comum", como hordas babando sangue (e, muitas vezes, a violência das torcidas a isso se assemelha). O clichê emigrou de uma avaliação geral de toda multidão e de toda ação coletiva, para uma consideração específica de um fenômeno social particular: as torcidas organizadas.

Contudo, seria difícil considerar a torcida organizada como uma horda anárquica e desorganizada; ao contrário, ela parece ser "ultraorganizada" -- vide o exemplo de hooligans alemães utilizando meios sofisticados de comunicação e de organização durante a copa do mundo na França. A torcida organizada não é uma "horda", embora seja violenta -- ao menos, os rituais que "guiam" as condutas dos indivíduos na torcida organizada parecem estimular as relações de agressividade e, consequentemente, a transformação desta em violência.

Tal violência seria irracional? Acredito que não. Boa parte da violência das "organizadas" é nitidamente premeditada, motivada e dirigida contra seu pior inimigo: uma outra organizada. E, na maioria das vezes, a violência das organizadas nunca se concretiza, realizando-se num complexo aparato de mise-en-scène, no qual o teatro e a simulação de violência -- a "exibição" da torcida -- parecem ser mais importantes do que propriamente o confronto físico entre as torcidas.

Pode-se fazer a hipótese de que a "ultra-organização" das organizadas surja justamente a partir de um meio "anômico", isto é, de um meio social onde as normas e as regras perderam boa parte de sua legitimidade e de sua eficácia; onde as pessoas não sabem mais quais são os direitos e os deveres de um convívio social contratual e institucional; onde não sabem mais a quem recorrer porque a legitimidade de toda sanção foi por água abaixo. As organizadas se nutrem então da anomia? Talvez. Da insegurança social generalizada? Pode ser. No entanto, mesmo que tais hipóteses sejam falsas, acredito que as "organizadas" são, de fato, organizadas e que sua violência, quando acontece, não é "instintiva" ou "irracional", e sim desejada e, muitas vezes, premeditada.

Inconclusões

Depois de todo esse périplo, confesso que termino a viagem um tanto insatisfeito. Na verdade, meu desagrado recai justamente na divisão básica do artigo: a violência do e a violência no futebol. Inicialmente, pensei que tinha sido um bom insight e, de fato, tal divisão ajudou-me a perceber algumas questões; mas com o transcorrer da análise fui enredando-me em algumas dificuldades teóricas. O que quero dizer é o seguinte: várias teorias examinadas no artigo analisam a violência como sendo no futebol e, também, do futebol. E, provavelmente, a realidade da violência está no e vem do futebol; afinal de contas, ela pode perpassar toda e qualquer instituição social. No fundo, enredei-me nas aporias do dualismo entre o externo e o interno, entre o "dentro" e o "fora", entre o no e o do...

Como superar tais aporias?

Sinceramente, não sei bem... Talvez uma das formas seja reavaliar o papel do futebol na sociologia e na antropologia. O futebol sempre aparece explicado por outras realidades, como a religião e a política. Sua verdade está sempre deslocada de si mesmo, em outro lugar que não o do futebol. O ponto de referência para compreendê-lo sempre está fora de si mesmo, como se, somente através da política ou religião, por exemplo, o futebol pudesse realmente ser entendido. Como tal, não seria inteligível; como derivação de outra instância, enfim seria compreendido.

Talvez devêssemos compreender o fut como um fato social total; isto é, como um "campo" ou uma "instituição" relativamente autônoma. Mais: não só autônoma, mas que também condensasse várias outras determinações sociais. O futebol também serviria como ponto de referência para se entender outros fenômenos sociais como a religião, a política e, no caso do tema desse artigo, a violência. Ao invés de explicarmos o fut pela violência, faríamos a viagem inversa: explicaríamos várias facetas gerais da violência via o futebol. Imaginem explicar detalhes da missa do padre Marcelo via o espetáculo futebolístico? Em suma, a sociologia do esporte deveria reivindicar, por exemplo, um status epistemológico semelhante ao adquirido pela sociologia ou pela antropologia da religião (para uma defesa admirável dessa tese, ver Alain Ehrenberg, "Le culte de La performance", Paris, Calmann-Lévy, 1991).

Não acho que esteja exagerando. O futebol tem uma importância fundamental para o brasileiro; entender nossos valores e nossos processos de identificação passa necessariamente pelo futebol. Parodiando o antigo técnico irlandês do Liverpool, Bill Shankly: o futebol, para o brasileiro, não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante do que isso. Como desprezar esse ponto de referência básico para compreendermos a nós mesmos?

Aproveitando meu entusiasmo, diria que o futebol é uma das instâncias sociais brasileiras que encarna o que tem de mais “moderno” no povo brasileiro. O fut é competição, epopéia individual, ascenso e descenso, mobilidade social, mérito, fim dos status de nascença, de etnia, social e de renda, afirmação de soberania nacional -- o fut é a encarnação do desejo igualitário do povo brasileiro. O fut é trabalho em equipe, divisão de tarefas, planificação de todos, projeto em comum, união de cores e de sentido, organizador de corações e mentes, êxito coletivo -- o fut é a encarnação do desejo de solidariedade do povo brasileiro. O fut é contingência, destino incerto, o imponderável, estando entre o certo e o errado (bola na mão ou mão na bola? Foi falta ou não?), o justo e o injusto (mereceu a vitória?), o legítimo e o ilegítimo (o juiz roubou?) -- o fut é a encarnação do desejo de justiça e liberdade do povo brasileiro.

Ufa!, fim do ufanismo (fiz isso para impressionar Cynthia)... mas vocês não acham que a fenomenologia do drible do jogador brasileiro diz tanto de nosso "caráter" quanto o candomblé e o carnaval?

Enfim, o futebol encarna e produz valores caros às sociedades democráticas... para o bem ou para o mal. Pois a epopéia futebolística também nos avisa que, na modernidade, onde tem vencedor, tem perdedor; onde tem mérito, tem "jeitinho"; onde tem altruísmo, tem egoísmo; onde tem um, tem outro. O fut nos avisa que, no nosso mundo, entre o êxito e o fracasso, há uma incerteza fundamental -- assim, ele nos consola, pois, numa sociedade onde a exigência do sucesso é absoluta e o fracasso significa depressão, pelo menos ficamos sabendo que o acaso, de vez em quando, abre uma ferida no Destino. O fut encarna, definitivamente, uma das leis cotidianas da nossa modernidade: "a interdependência complexa dos destinos na busca da felicidade" (Christian Bromberger, "Le révelateur de toutes les passions", Manière de voir -- Le monde Diplomatique --, n°39, maio-junho 1998, página 35).

Que assim seja!

Notas sobre "futebol e violência" -- III
Notas sobre "futebol e violência" -- II
Notas sobre "futebol e violência" -- I

Artur Perrusi

Referências Bibliográficas

- ACTES de la recherche en sciences sociales. (1994). Actes de la recherche en sciences sociales - Les enjeux du football(103).
- BROHM, Jean-Marie. (1983). Les meutes sportives: critique de la domination. Paris: L'Harmattan.
- COSTA, Jurandir Freire. (1984). Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal.
- EHRENBERG, Alain. (1991). Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lévy.
- ELIAS, Nobert & DUNNING, Eric. (1986). Sport et civilisation. Paris: Fayard.
- LE BON, Gustave. (1975). Psychologie des foules. Paris: Retz.
- LE MONDE Diplomatique. (1998). Le Monde Diplomatique - Manière de Voir - Football et passions politiques (39).
- PERELMAN, Marc. (1998). Le stade barbare, la fureur du spectacle sportif. Paris: Éditions Mille et Une Nuits.
- SEBRELI, Juan José. (1998). La era del fútbol. Buenos Aires: Sudamericana.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Os Arquivos Erving Goffman ou a Arte de Tornar-se um Pé-no-Saco


Os Arquivos Eving Goffman (Erving Goffman Archives) consistem numa coleção de estudos críticos e materiais biográficos sobre Erving Goffman (1922-1982) e sua era. Esse projeto funciona como um site de referência para aqueles interessados na perspectiva dramatúrgica na sociologia e em métodos biográficos de pesquisa. O site está dividido em diversas seções sobrepostas: "documentos e papers", "publicações de Goffman", "Goffman na mídia", "materiais biográficos", "ensaios críticos" e "comentários e diálogos".

Fundado pelo sociólogo russo radicado nos EUA Dmitri Shalin, o projeto tem por base aquilo que Shalin denomina de Hermenêutica Biocrítica, ou "um desdobramento da sociologia pragmatista que enfoca as formas sociais corporificadas e os fundamentos biográficos da pesquisa sociológica". Ao contrário da biografia tradicional, a hermenêutica biocrítica "examina o enquadramento do self como um processo somático-afetivo-discursivo marcado pela indeterminação e pela criatividade".

Partindo desta perspectiva teórico-metodológica, Shalin analisa a relação entre a teoria e a biografia de Goffman, sugerindo que este último era um "estudioso da civilidade cujos padrões ele desrespeitava, que seu comportamento era por vezes intencionalmente degradante, que sua deferência era voluntariamente deferida e que sua incivilidade era duramente óbvia para aqueles que estavam presentes". E conclui, afirmando que as infrações de Goffman em relação à ordem da interação eram "estratégicas, sistemáticas, teoricamente significativas e valiam a pena serem estudadas de perto por sociólogos interacionistas".

Quem quiser saber mais, pode ler seu artigo "Goffman e a ordem da interação: um estudo em hermenêutica biocrítica". E para deixar todo mundo com água na boca, traduzo abaixo a citação que abre o artigo de Shalin:

Nessas questões, os hippies americanos e, mais tarde, os "Sete de Chicago", eram amadores interessantes; os grandes terroristas das formas de contato eram os Quakers da Inglaterra de meados do século XVII... aquele sólido bando de meros falantes deve sempre figurar diante de nós como um exemplo do maravilhoso poder destrutivo da impolidez sistemática, lembrando-nos mais uma vez as vulnerabilidades da ordem da interação. Não há dúvidas: os discípulos de Fox elevaram a uma altura monumental a arte de se tornar um pé-no-saco. (Erving
Goffman).
Cynthia Hamlin

sábado, 23 de maio de 2009

Notas sobre "futebol e violência" -- III



Pode-se imaginar o seguinte raciocínio: digamos que vivemos numa sociedade ultraviolenta; melhor ainda: digamos que nossa sociedade seja intrinsecamente violenta, seja por atavismo, seja por Destino, seja-lá-por-qual-motivo-for. Sim, digamos tudo isso e, a partir disso, fiquemos um tanto embatucados em saber como nossa sociedade se equilibra ou resolve, de alguma forma, o problema da violência, já que intuitivamente sabemos que ela é um grande perigo para a manutenção da "vida social" -- deixo de lado, por ora, esse mal-estar (ou aporia) básico de uma sociedade naturalmente violenta, tendo que lutar contra sua própria natureza, mas não conseguindo evitar de se manter como tal, isto é, violenta.

Uma das prováveis soluções para a reprodução de uma sociedade intrinsecamente violenta seria a existência de instituições de sublimação, isto é, instituições sociais que sublimem ou purifiquem a violência. Assim, através de um processo de sublimação ou de purificação, a violência seria eliminada ou diminuída, permitindo que a sociedade reproduza-se e controle sua própria "fúria" interna. Tais instituições funcionariam à semelhança da tragédia grega, cuja "função" era "aliviar" a "tensão" social através da encenação dramática de situações terríveis, ou seja, de coisas de nunca mais se ver, mesmo com o tanto de coisas passíveis de nunca serem vistas que tinham lugar na vida e no imaginário gregos; assim, ao trazer à tona os mais entranhados sentimentos e emoções, a tragédia proporcionava ao homem grego antigo uma espécie de purgação e alívio dos mesmos.

Tal interpretação da tragédia grega (pelo menos, uma das interpretações) foi dada por Aristóteles, via sua conhecida teoria da catarse. Podemos imaginar, caso tal interpretação seja correta, o grego antigo como um ser humano atormentado por sentimentos de extrema intensidade e violência, necessitando de uma instituição, como o teatro, que aplacasse ou diminuísse o poder desagregador do seu próprio pathos. Contudo, vale assinalar que Aristóteles considerava também o teatro grego como uma instituição que formava e educava o indivíduo, perfazendo o que se chamava, naquela época, de paidéia.

Pode-se discutir por que os modernos apropriaram-se muito mais do lado estético ou psicológico (por exemplo: teoria da sublimação da violência) da teoria aristotélica da catarse do que do seu lado ético ou pedagógico. Os motivos dessa apropriação unilateral são vários e, infelizmente, não há tempo nem espaço para discutir tal assunto aqui; de todo modo, o que importa nesta discussão é que a teoria da catarse foi identificada a uma teoria de "purificação" ou "sublimação" de algumas potencialidades humanas, como a violência, por exemplo.

Pois bem, se na Grécia Antiga o teatro tinha um papel de sublimação, quais seriam as instituições modernas que cumpririam tal função? Pode-se especular sobre muitas, mas uma das principais certamente seria o esporte e, em particular, o futebol. A prática do futebol e, principalmente, o espetáculo futebolístico representariam no mundo moderno o que a tragédia teria sido na antiga Grécia. A catarse do futebol eliminaria, diminuiria ou purificaria a violência que todo torcedor ou espectador traz, de forma implícita ou explícita, do meio onde vive e trabalha ou mesmo do seu próprio fórum íntimo.

Sendo várias as teorias que se nutrem do paradigma da teoria da catarse, reuni-las-ei, no intuito de simplificar, em dois grupos:

  1. o primeiro diz respeito às teorias "terapêuticas" da catarse -- mesmo que seja redutor colocar a teorização de Elias no grupo das teorias "terapêuticas" da catarse, pois ela é muito mais complexa e abrangente, preferi correr o risco; afinal de contas, o dito "processo de civilização" que refina, sofistica e suaviza, ao longo do tempo, a agressividade primeva dos seres humanos transforma, através do esporte, a violência concreta em violência simbólica, isto é, faz justamente o que apregoam as teorias da catarse (ver Nobert Elias e Eric Dunning, "Sport et Civilisation", Paris, Fayard, 1986);
  2. o segundo, às teorias "perpetuadoras" da catarse (ver, por exemplo, Ingnacio Ramonet, "Le football, c'est la guerre", Manière de voir - Le Monde Diplomatique -, No 39, maio-junho, 1998).

As teorias "terapêuticas" da catarse, no geral, subentendem o seguinte: a catarse oferecida pelo espetáculo futebolístico "purga" a violência potencial ou real do torcedor; nesse sentido, a catarse possui uma função terapêutica, pois aliviaria e "trataria" a violência potencial ou real do indivíduo.

Já as teorias "perpetuadoras" da catarse julgam o espetáculo futebolístico como reprodutor ou mesmo reforçador da violência latente ou concreta do torcedor; nesse caso, a catarse seria "negativa", mais parecida com um êxtase propagador de um estado potente ou real de um indivíduo.

De todo modo, as teorias "perpetuadoras", assim como as "terapêuticas" afirmam que o espetáculo futebolístico substitui uma violência real e concreta por uma outra simbólica, quase sempre virtual e imaginária. A "função" principal da catarse seria justamente evitar a realização da violência real, substituindo-a por um violência simbólica. Seria tal assertiva que uniria as teorias "terapêuticas" e "perpetuadoras"...

Nesse sentido, as teorias "terapêuticas" seriam otimistas, visto implicarem que o torcedor sairia do espetáculo futebolístico, pelo menos temporariamente, sublimado da violência; já as teorias "perpetuadoras" seriam pessimistas, pois não é garantido que o torcedor saia purificado da violência -- na verdade, o mínimo que se garante é a realização simbólica da violência potencial ou real do torcedor. Tenta-se prevenir, assim, o risco da explosão concreta da violência, que colocaria em perigo o tecido social. Pode-se traduzir pragmaticamente tal visão da seguinte forma: diante do risco de violência concreta, é preferível a violência simbólica. E como se daria a catarse? Em outras palavras: qual seria a "metodologia" da purificação e/ou da perpetuação?

As respostas são variadas...

Talvez as mais comuns - tanto do lado das teorias "terapêuticas quanto do das "perpetuadoras" – sejam aquelas que relacionam o espetáculo futebolístico com o fenômeno da guerra; isto é, o futebol seria uma espécie de "guerra ritual" (Ver, por exemplo, Marc Perelman, "Le stade barbare, la fureur du spectacle sportif", Paris, Éditions Mille e une nuits, 1998). Assim, no espetáculo futebolístico, o torcedor faria parte ou assistiria a uma mimesis simbólica da guerra e, a partir dos rituais desse processo mimético e simbólico, purgaria ou reproduziria a violência social. E, de fato, não é difícil encontrar exemplos da mimesis: gritos de guerra das torcidas; metáforas guerreiras: atacante, ataque, contra-ataque, artilheiro, etc.; investimentos simbólicos em signos, tais como bandeiras, emblemas, insígnias; explosão de sentimentos e emoções de intensa carga agressiva, externados geralmente por expressões e gestos chulos, e por aí vai.

O futebol, desse modo, purgaria ou reproduziria a violência através da reprodução simbólica da atividade mais violenta da espécie humana: a guerra! O fut seria a "guerra realizada por outros meios"! "Terapêuticas" ou "perpetuadoras", as teorias da catarse conectariam organicamente o futebol ao fenômeno da violência. E a "materialidade" dessa mimesis seria principalmente os ritos típicos do jogo de bola -- sistemas de regras e cerimônias que "formatam" o fenômeno futebol.

E não falo de rituais à toa; afinal de contas, as teorias que se nutrem da teoria da catarse, ao tentarem compreender como ela se realiza, utilizam abundantemente conceitos provenientes da sociologia e da antropologia da religião -- parafraseando um etnólogo francês (ver Marc Augé, "Un sport ou un rituel", Manière de voir - Le Monde Diplomatique -, n°39, maio-junho 1998 ): a partida é um rito; a Igreja, o clube; a Cúria, os dirigentes, e os padres, os comentaristas esportivos...

Sendo uma religião profana, pode –se dizer que o futebol assume também a função do mito, no sentido de resolver as tensões, os conflitos e as contradições sociais –- que geram a violência -- no campo do imaginário, da fantasia, da substituição simbólica, já que tais questões não poderiam ser equacionadas na realidade.
O futebol parece ser, assim, uma guerra sem exércitos e uma religião sem Deus. Se boa parte do dito acima é pertinente e tem sua utilidade na análise do futebol, várias dúvidas e questões persistem (pelo menos, no meu espírito) e vale a pena examiná-las criticamente:

  • talvez um dos problemas de se imaginar um processo catártico purificador ou reprodutor seja o de se conceber o mecanismo cognitivo pelo qual se realiza a catarse. O que quero dizer é o seguinte: digamos que, por força do argumento, o futebol seja realmente uma "guerra ritual"; sendo assim, como o indivíduo (neste caso, o torcedor) interioriza tal processo simbólico de substituição? O processo de interiorização é consciente ou inconsciente? O mecanismo cognitivo aparenta-se à sugestão hipnótica?;
  • se sou um indivíduo violento, posso aventar que o futebol, como "guerra ritual", reproduziria ou mesmo estimularia a minha violência; contudo, mesmo sendo violento, a passagem do gesto (as diversas condutas ritualísticas que faço durante a partida de futebol) ao ato (um ato qualquer de violência) não é evidente e imediata -- um filme de ultraviolência tipicamente americano incita à violência? Ora, a discussão não é simples... E, num exemplo contrário, se sou um torcedor pacífico (como a imensa maioria dos torcedores...), o que acontece quando sou alvejado pela violência simbólica? Permaneço pacífico como tal, sublimado pelo espetáculo, ou fico feito uma jaritataca furiosa presa numa gaiola? Considerando as duas opções, o que acontece exatamente em mim? Sou sugestionado? Sou estimulado? Sou manipulado? Sou purificado? Sou alienado? Tudo indica que o processo catártico, segundo tais teorias, é consumado à minha revelia; mas, como todo processo inconsciente, seus mecanismos precisam ser decifrados e conhecidos, e até agora não o foram. Assim, considero as teorias da catarse ainda uma hipótese a ser demonstrada;
  • acredito que considerar o fut uma "guerra ritual" não é pertinente ou, simplesmente, não ajuda a entender o futebol como tal -- inclusive, vale o mesmo raciocínio na consideração do fut como uma religião profana. Não nego que possam existir elementos religiosos ou "guerreiros" no futebol; no entanto, discordo da redução do futebol a tais elementos ou, expressando-me de uma forma mais contundente, não concordo em se subsumir a autonomia do fut, enquanto fato social total, ao campo da guerra ou da religião. Assim como nem todo prazer tem um caráter sexual (como apregoa o pansexualismo freudiano), nem toda paixão ou violência tem um conteúdo religioso ou guerreiro, respectivamente;
  • se o fut é uma "guerra ritual" ou uma violência simbólica que substitui a violência social concreta, cabe uma pergunta relativamente ingênua: a maioria dos torcedores e daqueles que participam do mundo futebolístico têm uma "representação" do fut como uma "guerra ritual" ou uma violência simbólica? Minha hipótese (confesso que é baseada na intuição) é que não. Se tal hipótese é comprovada, invalida a teoria da catarse? Não, já que, aparentemente, o processo catártico seria inconsciente; logo, independente da opinião e das representações do torcedor. Nesse sentido, a representação do torcedor não serve como critério de verificação ou validação da hipótese da catarse, visto que o processo catártico é realizado à revelia do torcedor. Em suma, a opinião do torcedor vale pouca coisa, exceto para mostrar a disparidade entre sua consciência e os processos sociais que moldam sua prática e suas representações de forma inconsciente;
  • tudo bem, muitas vezes a verdade está oculta e vai de encontro às reflexões dos comuns dos mortais. Mas, outras vezes, o profundo está oculto, só que na superfície... Ou, como disse Oscar Wilde, "o verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível". E, se o "visível" aparece através das representações dos indivíduos, talvez seja interessante levar em conta a opinião de indivíduos que estão diretamente relacionados com o fenômeno em questão -- os torcedores e suas opiniões sobre o futebol --, e não considerar tais opiniões como ilusões a priori. Portanto, à revelia de sociólogos e antropólogos, os torcedores e aqueles que participam do mundo futebolístico "sabem", "entendem", "conhecem" e produzem "conhecimento" sobre o futebol;
  • pode-se apresentar inumeráveis exemplos de violência no futebol, e tal fato deve ser considerado; contudo, acho que a pergunta fundamental talvez seja a seguinte: por que a maioria absoluta das partidas de futebol no mundo inteiro terminam pacificamente e não causam distúrbio algum? Por que as conseqüências cotidianas do futebol são apenas esportivas e não políticas, ideológicas, éticas e étnicas? Convenhamos, não é um típico exagero "intelectual" considerar o futebol como uma "guerra feita por outros meios"?!;
  • as teorias que se nutrem do "paradigma" da teoria da catarse apresentam a seguinte premissa antropológica: a violência é um instinto básico do homem. Tal premissa é derivada de um velho mito fundador da modernidade: a violência é fundadora da cultura (sociedade). Tal mito foi canonizado pelos jusnaturalistas, advogados do "direito natural", e principalmente pela filosofia social de Hobbes. Provavelmente, é um mito enraizado noutro mais antigo ainda: a Doutrina do Pecado Original da tradição judaico-cristã. Afinal, a violência como "instinto" faz parte de nossas noturnas entranhas, endemoninhadas após a Queda (falo daquela "queda" primeva, a da maçã, e não da última - a Daquele Muro, que não deixa de ser uma pálida metáfora da primeira).

Considero a Doutrina do Pecado Original como uma das mais profundas "teorias" psicológicas do ser humano, sendo uma tradição de pensamento que vai de Stº Agostinho, Swift, e o escambau, até o maior moralista do século XX: Freud! Seria uma belíssima crítica a todo racionalismo ingênuo que acredita num poder quase divino da Razão, desconhecendo nossas "profundezas", lugar de tantos mistérios e desvios. Como disse um adepto da Doutrina, Pascal: "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Pois é, e a violência seria uma dessas razões misteriosas e refratárias à Razão...

Mas o problema não é o fato de se reconhecer a natureza misteriosa e irracional de nossas entranhas; o problema é outro: se a violência é fundadora da cultura ou da sociedade, ela seria anterior ao mundo propriamente humano; ela seria natural. A naturalização da violência é uma conseqüência direta do seu papel de fundadora da cultura humana -- sendo natural, é impossível mudar a natureza violenta do homem, exceto talvez através da... engenharia genética. Por isso a necessidade de instituições sublimatórias da violência; por isso a consideração do esporte e, em particular, o futebol, como uma dessas instituições; por isso a busca obsessiva de demonstrar que o fut é violento.

Prefiro enveredar por outro caminho: considero a violência como um fato cultural por excelência. Faz parte da vida social humana, não lhe sendo anterior. Seria uma potencialidade tipicamente humana, existindo virtualmente e em exemplos individuais - caso de uma sociedade baseada em valores pacíficos -, ou como determinação social fundamental - caso de uma sociedade como a da Alemanha Nazista. A violência não está inscrita na biologia humana e sim na sua cultura. Ela não é natural. Um leão ou outro mamífero superior não é violento; ele pode ser agressivo. A conexão da violência com a natureza biológica do homem dá-se justamente através do fenômeno natural da agressividade. A violência não deve ser confundida com a agressividade. Para existir violência, seria necessária a existência de uma sociedade humana, isto é, seria preciso a existência da linguagem, da cultura, da vida social e do... desejo. Sim, desejo. A violência é o desejo, explícito ou tácito, de destruição (ver a defesa da violência como desejo de destruição no livro de ensaios de Jurandir Freire Costa, "Violência e Psicanálise", Rio de Janeiro, Graal, 1984). O desejo, por mais que os sociobiólogos esperneiem, não existe no mundo não humano, nem como tal nas sociedades primatas. Chita jamais desejou, nem mesmo a Tarzan...

Assim, não concebo a priori o fut violento, embora este possa, dependendo do contexto, tornar-se assim; contudo, creio que um futebol indefinidamente violento definharia, pois sua contínua violência entraria em profundo conflito com suas regras que são explicitamente contra atos violentos. O futebol pode ser considerado agressivo, pois é um esporte de "contato", muitas vezes ríspido. Um zagueiro, quando comete uma falta, não é necessariamente violento. A falta é parte inevitável do jogo. Mas, se um técnico manda fazer as famosas faltas de contenção no meio do campo ou manda quebrar o craque do time adversário, tais faltas são violentas, pois houve premeditação, intenção e desejo de violência.

Quem torna o fut violento não seriam nossos instintos, e sim nós mesmos, inconscientemente ou conscientemente, aqui não importa, como agentes sociais de sentido e de desejo. Não herdamos a violência e sim a "construímos". Um dos primeiros passos para prevenir a violência seria assumi-la como potencialidade do humano. O apelo para que se acabe com a violência - no caso aqui, do futebol - é o apelo para que se acabe com uma situação que necessita de violência. Como todo valor da humanidade, a violência é indestrutível; pois, mesmo não "existindo" numa determinada realidade, sempre "habitará" os mundos da probabilidade e da possibilidade - como disse Gramsci, "a possibilidade não é a realidade, mas não deixa de ser uma realidade". A violência pode ser evitada ou mesmo protelada, sendo um preço a pagar exigido pelo "processo de civilização". A grande questão talvez seja, assim, lutar pelo adiamento desse pagamento.

Já, já continuo...


Notas sobre "futebol e violência" -- II

Notas sobre "futebol e violência" -- I


Artur Perrusi

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Notas sobre "futebol e violência" -- II



Do futebol (primeiro clichê)...


O que significa dizer que a violência vem do futebol? Bem, seguindo o raciocínio do artigo anterior, seria alegar que a violência é intrínseca ao futebol, ou seja, que não é externa ao mundo futebolístico, e sim, e até mesmo, constituinte do conteúdo esportivo do futebol.

Tal alegação, no entanto, não é tão evidente assim, pois as diversas posições que se nutrem dessa inferência são nuançadas, e a noção de violência é, geralmente, introduzida de forma indireta e latente. Seria raro encontrar uma posição colocando, de forma explícita, que o futebol é explicado pelo conceito de violência; na verdade, a violência é vista muitas vezes como uma conseqüência inevitável do futebol.

De todo modo, para fins de exposição, analisarei algumas posições teóricas - comumente encontradas no meio acadêmico - que, direta ou indiretamente, consideram a violência como intrínseca ao futebol. Por exemplo: teorias que analisam o fut como "pão e circo" ou "ópio do povo", geralmente colocado como fazendo parte do aparato de "dominação de classe"; teorias que definem o fut como uma instituição que sublima a violência, através da própria violência simbólica desse esporte, afirmando o futebol como uma "guerra feita por outros meios"; ou ainda teorias que continuam a tradição teórica da psicologia social de criminólogos e psiquiatras do final do século XIX, julgando o fut como uma degradação do tecido social, cuja massa de torcedores é vista como uma horda primitiva, anárquica e caótica, em que toda violência é possível e temida.

Analisarei especialmente essas três posições, até porque são as mais conhecidas, já fazendo parte, digamos assim, do patrimônio cognitivo do senso comum; em suma, podem ser consideradas como clichês. Aliás, nada contra os clichês, aviso logo, pois podem servir como inspiração a um argumento ou mesmo como fonte de esclarecimento e conhecimento -- o futebol, por exemplo, é um mar de clichês e, convenhamos, sem eles, o que seria de nós, opinantes do fut?

Contudo, o clichê geralmente é redutor, talvez porque precise pagar o preço da simplicidade; afinal, é uma fórmula que precisa ser simples para ser repisada e popularizada. O perigo é que o clichê parece ser uma meia-verdade, isto é, não seria uma mera mentira, na qual a verdade apenas está sendo negada e, portanto, continua embutida na negação; não, a meia-verdade está aquém da veracidade e além da mentira, sendo um labirinto onde se procura a verdade, mas não se sabe se a busca é vã ou realmente sem propósito.

"Futebol é pão e circo" seria um exemplo perfeito de clichê, a começar pela sua longevidade: panem et circenses eram responsabilidades do imperador romano (na verdade, de toda a nobreza romana), mas o pão e o circo foram, na época, além de uma tentativa de apaziguamento do furor plebeu (principalmente na decadência do império romano), também um dom à coletividade, um mecenato à cidade. Visitando cidades antigas gregas e romanas, percebe-se que vários prédios públicos foram doações de "notáveis", perfazendo um costume provavelmente relacionado a uma moral de "classe" -- tal fato acontece e aconteceu na dita modernidade; no Brasil, por exemplo, vêem-se várias doações do tipo, principalmente vindas da liberalidade do nosso capitalismo emergente.

Com o surgimento da democracia e do Estado de Direito, a "doação" tornou-se "intolerável", saturando-se de desconfiança cívica, e o "dom" virou sinônimo de troca de favores - no sentido antigo, seria "pão e circo" a troca de favores que acontece no dia-a-dia entre os usuários e a polícia rodoviária. Evidentemente, as "doações" continuam, embora na surdina, principalmente em países onde o Estado de Direito é apenas de direito e não de fato; mas, com as devidas exceções, tais "doações" são vistas com maus olhos.

Mudando historicamente as conotações públicas e privadas do termo "doação", a acepção da expressão "pão e circo" passou a significar quase exclusivamente "apaziguamento das massas". Se subentende-se o que significa "apaziguamento", deve-se concluir que as "massas", por um motivo ou por outro, geralmente estão "coléricas" com alguma coisa -- como toda "elite" tem um tropismo pela paranóia, deve-se entender que a "fúria" popular invariavelmente vai de encontro ao status quo da sociedade.

Aparentemente, a causa do furor popular é sempre um mistério para os gentis-homens -- "por que urram tanto?" -- perguntam. "Estão com fome?" "Que se dê pão" - diz o papa-figo da Federaçõ Pernambucna de Futebol. "Estão gritando ainda?"... "Que se dê circo" - diz o rei da CBF. Nesse sentido, "pão e circo" significa um tipo de lazer coletivo no qual a coletividade participante submete-se a um mecanismo qualquer de "apaziguamento" de seu furor e/ou de sua tendência à sublevação, sofrendo, com isso, um "afastamento" de seus verdadeiros interesses.

Em suma, a "massa" distrai-se e se esquece da dura realidade -- tal visão pode-se misturar teoricamente com a teoria da catarse e da sublimação, como veremos mais adiante. O futebol, enquanto "pão e circo", seria uma espécie de ópio que anestesiaria os torcedores, desviando-os das mazelas cotidianas e de uma conscientização política da realidade. O futebol produziria, assim, uma "despolitização" das massas, fazendo parte do aparato simbólico de dominação das "classes dominantes". O futebol, enquanto "pão e circo", faria parte das diversas formas de "violência simbólica" que alienam as massas, os trabalhadores e quejandos.

Bem, pode-se fazer várias críticas a essa posição. Uma das observações possíveis seria bem pessoal: minha sensação é a de que, se posição acima for verdadeira, eu seria, digamos assim, um parvo. Sim, um parvo. Bem, primeiro implica dizer que preciso ser apaziguado de alguma forma, mesmo que minha mãe repita que fui e sou um rapaz calmo e pacífico -- de qualquer forma, o famoso "apaziguamento das massas" está indo de água abaixo: o torcedor violento entra violento no estádio e sai tão violento quanto. Segundo, que as partidas de futebol "distraem-me" ao ponto de esquecer a dura realidade brasileira e a existência dos Ricardo Teixeira -- em suma, vou ao estádio e volto "limpo" de rancor e de raiva contra o mundo.

Não sei se é porque tenho um ressentimento danado contra o establishment ou porque seja vacinado contra a alienação, mas o problema é que não me esqueço de nada! Posso me distrair, é claro, e o futebol é uma forma de distração, mas nenhum mecanismo cognitivo entorpece meu senso crítico por causa do futebol.

Mas você é um pequeno-burguês! - exclama um espírito de porco (confesso que, depois da vitória dos palmeirenses, passei a valorizar a porqueira da vida).

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Certo, sou um pequeno-burguês, e sendo assim, tenho uma vida melhor, uma educação formal e mais acesso às informações, podendo combater um pouco mais eficazmente a "alienação". Mas isso quer dizer que o "popular" é um débil mental que vai ao estádio e "esquece" que é miserável, que há pobres e ricos, sacanagens, dominação, repressão, exploração nesse mundo? A "alienação" causada pelo efeito "pão e circo" do futebol seria seletiva, ao ponto de poupar um pequeno-burguês, mas não um "plebeu"? Um mecanismo seletivo de classe?

Evidentemente, há imbecis no povo, tanto quanto há na pequena ou grande "burguesia"; afinal, a imbecilidade não é um monopólio de classe. Mas não consigo compreender - ou, pelo menos, até hoje nunca li tal explicação - como funciona esse mecanismo cognitivo de "despolitização" do torcedor. Seria o espetáculo em si? Mas como? A bola teria uma função hipnótica, causando um efeito de distanciamento da realidade? Mas como? Seria o efeito de distraimento?

Confesso que, durante uma partida de futebol, esqueço-me momentaneamente do DEM e quejandos, mas declaro que faço a mesma coisa quando escuto música, quando assisto a um filme no cinema, quando estou lavando os pratos... Em suma, geralmente o ócio e o lazer distraem-me o suficiente para esquecer-me momentaneamente das mazelas do cotidiano e da dura realidade brasileira. No fundo, não é propriamente um esquecimento, e sim uma mudança de foco e de atenção. Partindo do princípio de que a normalidade da cognição humana não passa necessariamente pela obsessão, podemos supor que não ficamos o tempo todo concentrados num tema ou assunto. Assim, mudar de tema ou se distrair com uma atividade de lazer, isto é, assistir a um jogo de bola, por exemplo, não significa um esquecimento ou um distanciamento duradoiro da realidade.

A teoria do futebol como "pão e circo", advogada por alguns setores da esquerda, retoma mutatis mutandis o velho preconceito conservador contra o lazer das classes populares. Se o conservador gostaria de ver, no fundo, o trabalhador não parando de trabalhar (férias? Que desperdício!), o "esquerdista" gostaria de ver o trabalhador não parando de... militar. Nesse sentido, o futebol ocuparia o tempo da militância, inviabilizando a luta de classes -- quem não se lembra da "proibição" de torcer pelo Brasil na copa de 70, quando nitidamente a ditadura estava instrumentalizando as vitórias da canarinha?! O conservador e o "esquerdista", assim, reencontram-se numa velha encruzilhada, onde reproduzem uma velha mania elitista: a dos educadores das massas - essa plebe que, se não trabalha, vai gastar o dinheiro na bebida; se não milita, vai alienar-se no futebol!

Contudo, não nego que o futebol também seja um instrumento de controle social, embora tanto quanto as férias ou a escola. Tais instituições, incluindo o fut, não têm uma natureza fixa; nesse caso, uma natureza alienada. São espaços coletivos que podem ou não ser instrumentalizados (à direita ou à esquerda), dependendo da conjuntura histórica. O fut, como manifestação coletiva da vida em sociedade, oferece um "campo" onde as pessoas expressam sentimentos, emoções e descontentamentos que podem ou não ser vinculados a outras "instituições sociais", como a política. E tais vinculações são históricas, e não ontológicas, isto é, não são dadas de forma evidente como se fizessem parte da natureza do futebol.

Por que reduzir o ato de torcer por um clube de futebol a uma compensação ilusória? Por que transformar o gosto pelo espetáculo num distanciamento da realidade? É inegável o prazer que um torcedor sente em assistir a uma partida de futebol, mas duvido muito que tal hedonismo apague-lhe a diferença entre a diversão e o cotidiano, independentemente do fato de viver numa sociedade onde seu dia-a-dia tem como horizonte a exclusão social e a quase ausência de mobilidade social. Não é porque gritei feito um louco pelo Santinha, exclamei invectivas febris contra a Coisa ou saí completamente extenuado depois de uma vitória ou de uma derrota do meu clube, que perdi a minha capacidade prosaica de dar sentido à minha vida e às minhas preocupações.

Enquanto torcedor, não estou condenado necessariamente à passividade política, à alienação e à reprodução das relações de dominação. Degusto o "pão" e vou ao "circo" -- mas juro que a minha alma não fica corrompida, mesmo voltando "pra lá de Bagdá" ao lar; em suma, permaneço intacto espiritualmente. Pelo menos, é o que descubro no outro dia quando -- para o bem ou para o mal -- olho-me no espelho...

Já, já, continuo...

Artur Perrusi

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Notas sobre Futebol e Violência - I



Como pode ser bárbaro um povo que tem como maior abstração de
triunfo o grito de gol
?” Carlos Drummond de Andrade

Depois do artigo de Jorge Ventura, aproveitando o ensejo, publico outro escrito sobre futebol. Inclusive, confesso que a decisão de publicar esse texto surgiu depois de uma conversa com... Cynthia! Sim, ela mesma, a toda-poderosa do PPGS. Foi quando de uma banca de concurso lá em Rio Tinto, na Paraíba. Num bate-papo sem muitas pretensões, a dita-cuja fez uma confissão inusitada:

_Artur, eu adoro futebol...
_Como?!
_Eu adoro futebol!
_Você?!
_Sim, o que é que tem?
_Não sei... É meio estranho. Qual a relação entre futebol e realismo crítico?
_Nenhuma. Não entendi a pergunta.
_Deixa pra lá...

Cynthia baixou a cabeça, olhou para o lado e disse, quase num susurro:

_Eu torço loucamente pelo Santinha.
_Incrível!
_Tenho até uma falsa cobra coral de estimação.
_Uau!

E começou a cantar o hino do Santinha:
Nos anais, nos calendários /Fiquem sempre por lembrança /Teus lauréis extraordinários/ De bravura e de pujança/ Nos esportes tua história/ É orgulho a que faz jus/ Este símbolo de glória /Que é teu nome Santa Cruz...

Incrível, ela sabia decorado o hino oficial do clube! E insistiu em cantá-lo inteiro. Notei que os canaviais ficaram em silêncio. Pensei em tampar minhas orelhas, mas achei indelicado. Sofri calado.

_Mas... por que você nunca falou disso?
_É Jonatas. É fanático pelo Náutico. Ele ficaria magoado.

Sim, ela tinha razão. Todo alvirrubro é meio suscetível. Não era bom magoá-lo. Nunca se sabe a reação. Enfim...

Assim, em homenagem ao amor futebolístico de Cynthia, publicarei um texto sobre violência e futebol — como é grande, publicarei aos poucos, em capítulos. Originalmente, apareceu no extinto site Futiba, onde assinava uma coluna chamada “Fora do Eixo”; como artigo, foi publicado na Revista Caos (aqui). O texto, contudo, não tem um estilo “acadêmico”; além do mais, acredito que discutir futebol tem como referência estilística… a mesa de bar e algumas cervejinhas. Dessa forma, não seria um texto propriamente “sério” e tem tudo pra cair “nos braços do adjetivo ululante”.

INTRODUÇÃO

Há muito, uma inquietação ronda o cotidiano de todo torcedor: a questão da violência no futebol! Sou um amante do fut e, enquanto tal, venho ficando preocupado com o recrudescimento da violência. Por isso, decidi analisar algumas questões relativas ao tema “futebol e violência”. Assunto difícil e complexo, mas sobretudo abrangente: futebol e violência são grudes do nosso cotidiano! Fazem parte, digamos assim, de nossas vidas. E discutir problemas que repercutem diretamente no nosso dia-a-dia pode não ser tão monumental assim (como, por exemplo, seria debater a Política ou a Arte), mas é muito mais árduo, já que são assuntos que dizem respeito a todos e, portanto, todos podem meter o bedelho - todos opinam, logo não há especialistas na matéria, estando todos em pé de igualdade na discussão; pois, nesse Brasil velho e enfadado, não há assuntos mais “democráticos”…

Sim, “respiramos” futebol e violência no dia-a-dia. Atualmente, para a imensa maioria do povo brasileiro, essas duas “entidades” são fontes de “extrema preocupação” - em casa, na rua, no trabalho, no bar; tão extremas que são comezinhas, mesmo banais, fazendo parte inclusive da formação de nossa identidade. Em suma, para os brasileiros, futebol e violência são assuntos “universais”, sem distinção de raça, classe ou renda. Até Cynthia gosta de futebol, imaginem vocês...

E se ficamos alegres com a "universalidade" do futebol, permanecemos perplexos diante da generalidade da violência; pior, ficamos pasmos diante do encaixe quase perfeito entre o futebol e a violência. É a violência dos jogadores; dos técnicos, quando fabricam, entre outras coisas, táticas de “contenção” do jogo e do adversário; dos dirigentes, no seu modus faciendi; da dita “rivalidade” entre as torcidas; da mídia, quando une, entre outras coisas, futebol e ufanismo… É violência lato sensu: física, simbólica, ideológica, o diabo a quatro.

Alguns teóricos do esporte dirão que violência e futebol sempre estiveram intrinsecamente relacionados, e o que vemos atualmente é a renovação histórica dessa eterna relação. Ora, se a violência fundou a cultura humana, ela estaria também diretamente conectada à gênese do futebol. Por que tantas metáforas guerreiras no meio futebolístico? O futebol não seria a guerra feita por outras maneiras? O futebol, e o esporte de forma geral, não é uma “catarse” que sublima e apazigua o instinto violento do ser humano? Pode ser, e voltaremos a discutir tal visão do futebol no texto, pois os argumentos são poderosos e pertinentes.

Contudo, mesmo admitindo que futebol e violência tenham uma relação profunda, a impressão atual é a de que, assim como a violência vem desnaturando o tecido social brasileiro, o mesmo vem acontecendo com o futebol - uma das maiores causas do esvaziamento dos estádios em São Paulo, por exemplo, seria provavelmente a violência. Talvez estejamos vivendo uma situação limite, ultrapassando uma fronteira que separa, algumas vezes de forma indistinta, a "civilização" da barbárie.

O excesso de violência vem transformando qualitativamente nossa visão da sociedade e nosso ponto de vista sobre o futebol. E sendo o esporte um modo de agir e conhecer a realidade humana, e sendo o futebol o esporte fundamental do povo brasileiro, e sendo ele um amálgama de nossa identidade, um deslocamento nesse ponto de vista, uma mudança determinada justamente pela violência pode trazer, a médio e longo prazo, resultados preocupantes. Se a violência desnaturar de vez o futebol, penso que o imaginário brasileiro mudará, se já não está mudando, e pra pior.

Por fim, para terminar esta introdução, devo dizer que o texto tem como função lançar questões, estabelecer discussões… Se os leitores começarem a se questionar sobre o problema do futebol e da violência, saberei que valeu a pena tê-lo escrito. Em suma, não pretendo oferecer aos leitores uma resposta ao tema - resposta bem mais variada e complexa do que sonha meu limitado conhecimento - mas sim abrir um leque de questões.

VIOLÊNCIA NO FUTEBOL OU VIOLÊNCIA DO FUTEBOL?


Queimando o tutano para escrever este texto, comecei a tentar explicitar, na minha mente, qual era realmente a questão que estava examinando. Explico: vou analisar a violência no futebol ou a violência do futebol? No início, pensei que tal problema fosse um tanto inócuo, produto talvez da minha confusão mental. Depois, fui verificando que não, de fato a interrogação era legítima e podia trazer alguns esclarecimentos interessantes, principalmente se fosse entendida como um procedimento pedagógico que facilitasse a separação do joio do trigo, e por aí vai. Na verdade, a confusão não era somente um produto da minha vocação cognitiva, mas também resultado do exame das diversas posições sobre o assunto, muitas das quais completamente discordantes entre si.

no futebol…

Assim, uma visão edulcorada do futebol, quando este é entendido - alguns exemplos entre muitos outros - como uma “revolução do lazer”, uma “celebração do tempo livre” ou a “união universal entre os homens”, certamente examinará a violência no futebol. Ora, neste caso a violência viria de “fora”, sendo externa ao futebol, isto é, não seria intrínseca ao campo futebolístico. A violência no futebol seria conjuntural, pois trazida de outro meio, este sim violento - por exemplo: seja via Estado (instrumentalização pela política), seja por uma outra esfera social (instrumentalização pelo racismo) - que se apropriaria do nosso esporte favorito. Sem tal violência, que circunda as fronteiras do meio futebolístico, não haveria, portanto, violência no futebol. No fundo, não precisaríamos do conceito de violência para entendermos o futebol, enquanto objeto de estudo.

Tais posições são coerentes e vão ao encontro de nossa experiência cotidiana. A maioria absoluta dos torcedores que vai ao campo assistir a uma partida não vivencia - pelo menos, de forma consciente - o futebol como um evento violento ou que produza violência. Mesmo que ocorram “descargas emocionais”, tipo palavrões, raiva da derrota ou gestos intempestivos, provavelmente tais situações não são vivenciadas como um ato violento, como tal. Aparentemente, a violência é trazida de fora, seja pela crise econômica, seja pela crise social e de segurança… Ora, se vivemos numa sociedade ultraviolenta, por que não pensar que tal violência não esteja impregnando - e trazendo-a naturalmente para - o futebol? Violência na sociedade e mesmo da sociedade, logo violência no futebol.

Ainda que exista muita verdade no raciocínio descrito acima, pois explica várias facetas da questão “futebol e violência”, postular uma violência no futebol, isto é, pensá-la como um fenômeno extrínseco ao campo futebolístico, como algo que vem de “fora”, dificulta a compreensão do fenômeno dos hooligans ou das torcidas organizadas. Explico: como a violência vem de “fora” do futebol, e sendo as torcidas organizadas grupos notoriamente violentos, de que maneira, por conseguinte, percebê-los como parte do mundo do futebol, inclusive como torcedores?

Não causa surpresa que os membros das torcidas organizadas ou os hooligans sejam percebidos como delinqüentes (e, de fato, muitos o são!) que vêm aos estádios para bagunçar e cometer atos violentos (e, de fato, isso ocorre), mas não propriamente para torcer. Não são torcedores e não fazem parte do ordeiro mundo do futebol - eles vêm de “fora”. Na verdade, fazem parte de um outro mundo, o do crime - não só do crime, pois a violência do hooligan é vista muitas vezes como não humana (animals, como dizem os tablóides ingleses) ou mesmo como inumana. Com efeito, há uma clara tendência de criminalização do “torcedor organizado”, realizada principalmente pela polícia brasileira. Cuida-se do hooligan brasileiro da mesma forma que do marginal: na base da porrada. Torcida organizada e marginalidade são, no senso comum, praticamente sinônimos, e não por mera coincidência.

Talvez um dos méritos da polícia inglesa tenha sido o de compreender - após uma série de condutas erradas, vale dizer - que o hooligan não é um delinqüente propriamente dito, pois até mesmo estatisticamente a delinqüência é minoria na torcida organizada, e sim um torcedor, mas de um tipo diferente. De certa forma, o hooliganismo começou a ser visto como uma violência do futebol, e não apenas como um fenômeno comum relacionado à criminalidade, criando-se inclusive na Scotland Yard uma “unidade especial de inteligência sobre o futebol” para tratar do problema.

Compreender a violência como um fenômeno externo ao campo futebolístico possui outra dificuldade: independentemente de ser intrínseca ou extrínseca, a violência sempre existiu no futebol desde as suas origens. Por exemplo: se as origens do fut remontam à Idade Média, o jogo praticado, até então, era tão violento que, em 1314, o rei inglês Eduardo II proibiu seu exercício; na Inglaterra elisabetana, o futebol, uma espécie de “base football player”, era visto como um jogo vil, conforme afirma o duque de Kent no Rei Lear de Shakespeare; la soule, versão francesa do jogo de bola, era tão violenta que os reis Felipe V e Carlos V tiveram que proibi-la em 1319 e 1369, respectivamente. Assim, os exemplos históricos são numerosos e eloqüentes (vários nos séculos XIX e XX), relacionando sempre futebol e violência. O futebol, historicamente, não parece um campo pacífico invadido externamente pela violência alheia, mas sim um esporte que possui a sua própria violência.

Desse modo, deve-se examinar a violência do futebol e não no futebol? Sim, não, mas sim, mas não, nem isso (eu pareço um tucano falando). Contudo, para facilitar, começarei pelo “sim”, e vejamos até onde isso vai dar…

Até o próximo capítulo!
Artur Perrusi

terça-feira, 12 de maio de 2009

NORBERT ELIAS, OS JOGOS E SUAS REGRAS



Jorge Ventura de Morais (PPGS/UFPE)

Na seqüência dos artigos aqui postados sobre jogos, exponho a seguir a contribuição de Norbert Elias para o entendimento do jogo, principalmente o futebol, e suas regras. Neste sentido, diferentemente de Pierre Bourdieu, que utilizava a idéia de jogo como metáfora para o entendimento dos fenômenos sociais, Elias – apesar de ter se utilizado deste mesmo recurso em O Que é Sociologia? – teorizou, ao lado de Eric Dunning, sobre a dinâmica do mais popular dos esportes com ênfase em suas regras.

Norbert Elias é mais conhecido nos círculos acadêmicos por sua obra devotada ao entendimento do que ele chamou de processo civilizador (Elias, 1993 e 1994a). Este processo se refere ao fenômeno, tal como entendido por Elias, do crescente auto-controle das emoções na vida societária ocidental.

A partir de sua colaboração com Eric Dunning (Elias e Dunning, 1966 e 1995), Elias tem causado considerável impacto em estudos sobre esportes nas sociedades contemporâneas. Fazendo eco à principal contribuição de Elias à teoria sociológica, a maioria dos estudos nesta área tem focado sua atenção nos aspectos do esporte como um processo civilizador (Dunning & Sheard, 2005; Maguire, 1986; Malcolm, Sheard & White, 2000; Sheard, 1997; Varner & Knottnerus, 2002, entre outros).

No entanto, há um outro aspecto da contribuição de Elias aos estudos sobre esportes e jogos, qual seja, a discussão das regras do jogo como componente importante na construção da identidade de qualquer esporte (Elias e Dunning, 1966 e 1995), que tem merecido escassa atenção dos estudiosos de sua obra e mesmo de especialistas em sociologia do esporte que adotam a abordagem figuracional.

É, pois, meu objetivo neste artigo apresentar e discutir, mesmo que brevemente, a contribuição de Elias (e Dunning) para o entendimento sociológico das regras de jogos, com especial referência ao futebol.

Norbert Elias, as Figurações e o Futebol

Norbert Elias propõe que, quando vemos um jogo, estamos observando “pequenos grupos de seres humanos que mudam suas relações em constante interdependência uns com os outros” (Elias & Dunning, 1995, p.233).

Esta constante interdependência de uma equipe em relação à outra – o fato de que a localização dinâmica de cada jogador durante uma partida é uma espécie de reação à movimentação não somente de um ou outro jogador adversário, mas de toda a equipe adversária – é o que caracteriza, para Elias, a figuração de cada jogo. Em outras palavras, não é a disposição de somente uma equipe em campo, mas o arranjo, mais ou menos estável, gerado pelas sucessivas e mútuas ações e reações de ambos os lados, que define o que ele chama de figuração (Cf. Elias in Elias & Dunning, 1995).

A dinâmica do agrupamento e reagrupamento dos jogadores durante o jogo é fixa em alguns aspectos e elástica e variável em outros. A dimensão fixa e comum permite que o jogo seja jogado como tal e não como uma disputa generalizada, sem objetivos e desregulada. E é variável porque cada jogo é diferente do outro, o que é da natureza da própria definição do jogo. Elias afirma ainda que, em um jogo, deve estabelecer-se um equilíbrio situado em um intervalo de graus ótimos de rigidez e de elasticidade das regras e que deste equilíbrio resultaria a dinâmica do jogo. Regras muito rígidas ou muito flexíveis afetarão diretamente os padrões do jogo. Adicione-se a isso o fato de que Elias entende que, sem regras, não somente o futebol, mas todos os jogos esportivos não teriam se constituído ou mesmo mantido sua identidade (Cf. Elias & Dunning, 1995, p.232).
Neste sentido, Elias apresenta um exemplo relativo à regra definidora do início de uma partida de futebol. Apesar de apresentar algum nível de rigidez, ao estabelecer determinações precisas sobre como a partida deve começar, tal regra é suficientemente elástica para permitir uma grande variação de jogadas, táticas e estratégias do time que “bate o centro” e também, em contrapartida, uma gama ampla de possibilidades de reação da equipe adversária.
Eis o que diz a regra 8 das Regras do Jogo do futebol:

Procedimentos: 1) Todos os jogadores encontram-se em seu
próprio campo; 2) Os adversários da equipe que executa o tiro de saída
encontram-se no mínimo a 9,15m da bola, até que essa esteja em jogo; 3) a bola
está imóvel no ponto central; 4) o árbitro dá o sinal; 5) a bola está em jogo
quando é chutada e se move para frente; 6) o executor do tiro não toca na bola
pela segunda vez até que essa toque em outro jogador; 7) sepois que uma equipe
marcou um gol, o tiro de saída é executado pela outra equipe” (http://cbfnews.uol.com.br/).

Assim, tanto os jogadores da equipe que inicia a partida, quanto os da equipe adversária, sofrem certas restrições. Por exemplo, os que iniciam a partida não podem fazer a bola rolar, em primeiro lugar, para trás; devem fazê-la rolar para frente, antes de, se o quiserem, fazer um passe para um companheiro localizado mais atrás, segundo a disposição tática de seu treinador.
Por outro lado, os jogadores da equipe adversária devem guardar uma distância mínima da bola e não podem adentrar o campo adversário até que a bola tenha rolado.

Em ambas as situações, apesar das restrições impostas, o repertório de alternativas (jogadas) à disposição das duas equipes é grande. Por exemplo, dois atacantes da equipe que dá início à partida podem combinar que um deles “bata o centro” e que o outro imediatamente chute a gol na tentativa de surpreender o goleiro adversário.

O goleiro adversário, por sua vez, deve se manter atento para esta possibilidade. A disposição de ambos – atacante e goleiro, em tensão mútua – em querer surpreender e tentar evitar ser surpreendido, ao lado das ações de todos os outros jogadores em campo –, é o que caracteriza a dinâmica e a identidade do futebol, e é o que Elias chama de figuração.

Decorrente desse ponto, outro elemento proposto por Elias é a concepção de que o futebol, como outros esportes, constitui um tipo de dinâmica de grupo (o conjunto dos dois times) produzida por tensões controladas entre pelo menos dois subgrupos (os dois times separadamente). E que a dinâmica do grupo pressupõe tensão e cooperação em diferentes níveis e ao mesmo tempo. Portanto, podemos supor que a regulação do futebol é também a regulação das tensões entre estes subgrupos.

Consideremos a regra do impedimento para ilustrar esta discussão:

REGRA 11 – IMPEDIMENTO
Posição de impedimento

O ato de estar em uma
posição de impedimento não constitui uma infração em si. Um jogador está em
posição de impedimento se:
· encontra-se mais próximo da
linha de meta adversária do que a bola e o penúltimo adversário
Um jogador
não está em posição de impedimento se: 1) encontra-se em sua própria metade de
campo de jogo; ou 2) está na mesma linha do penúltimo adversário; 3) ou está na
mesma linha dos dois últimos adversários.
Infração
Um jogador em posição
de impedimento somente é punido se, no momento em que a bola toca ou é jogada
por um de seus companheiros, está, na opinião do árbitro, envolvido em jogo
ativo: 1) interferindo no jogo; ou 2) interferindo um adversário; 3) ou ganhando
vantagem por estar naquela posição.
Não há infração
Não há infração por
impedimento se um jogador recebe a bola diretamente de: 1) um tiro de meta; ou
2) um arremesso lateral; ou 3) um tiro de canto (http://cbfnews.uol.com.br/).
A formulação teórica de Elias pode ser bem ilustrada a partir desta regra. Por um lado, cooperação dos jogadores de defesa, para impedir o gol, através de uma atitude coletiva de deixar os atacantes adversários em impedimento. Por outro lado, mais cooperação, dos jogadores que atacam, buscando “sair” do impedimento para conseguir marcar gols. As cooperações mútuas “dentro” de cada lado e a interdependência das alternativas provocadas (ou tornadas disponíveis) por cada oponente em relação ao outro estabelecem uma tensão, que é originária e permanente e conforma a dinâmica do próprio jogo. Esta combinação de tensão e cooperação auxilia a produzir as figurações, conceito central na obra de Elias.

Vale ressaltar que a regra do impedimento, embora tenha sofrido modificações e adaptações desde os primórdios do futebol moderno, tem importância fundamental na definição do que é o próprio futebol, especialmente na definição das mudanças figuracionais (táticas) ocorridas ao longo da história deste esporte, embora não possa ser considerada uma regra pétrea, imutável, como aquela que proíbe, implícita ou explicitamente, a utilização das mãos para a condução da bola pelos jogadores “de linha”.

Podemos agora voltar ao nosso autor. O primeiro ponto é que, para Elias, e possivelmente para os fãs do futebol, uma regra muito rígida ou muito elástica tornaria o jogo monótono, provocaria falta de interesse do público, afetando o caráter de espetáculo do jogo. Tal fato se daria porque, para este autor, o futebol, como visto acima, é um equilíbrio dinâmico de tensões provocadas mutuamente. Se a regra – no caso, a do impedimento – se torna muito rígida, o equilíbrio favorece a “defesa”, o que, provavelmente, implicaria na diminuição do número de gols (jogo feio, truncado, com poucas situações de gol). Se a regra, por outro lado, se torna muito “frouxa”, o pêndulo passa a favorecer o “ataque”, provocando, possivelmente, tamanho aumento do número de gols em quase todas as partidas, que levaria à descaracterização da própria identidade do futebol como jogo, tornando banal a situação de gol e retirando dela a carga emocional que carrega.

O primeiro caso – em que o equilíbrio se desloca para a defesa, os gols escasseiam e aumenta a monotonia e o interesse do público decresce – tem ocorrido ao longo da história do futebol. As diferentes mudanças ocorridas na regra do impedimento estão relacionadas a tais fatos.
Por sua vez, essas mudanças provocaram impactos nas táticas, estratégias e dinâmicas do futebol. Por exemplo, quando a regra determinava que entre o atacante e o gol houvesse, pelo menos, três adversários, tanto as jogadas da defesa, quanto as do ataque – em suas limitações e em suas possibilidades – estavam determinadas por esta forma específica da regra e pelas alternativas que ela engendrava (Cf. Giulianotti, 2002, p.166-187).

O fato é que, dadas as condições e o desenvolvimento do futebol (preparação física, surgimento de novas alternativas táticas etc), o formato “antigo” da regra do impedimento tornou, cada vez mais, a balança das tensões do jogo favorável à defesa. A modificação da regra – diminuindo a exigência de três para dois jogadores entre o atacante e o gol, por exemplo – permitiu uma nova dinâmica de jogo, acrescentando outras possibilidades de jogadas, especialmente variações táticas, diretamente relacionadas às novas interações entre os jogadores das duas equipes em embate.

Esta nova figuração, para utilizar o jargão de Elias, levou as tensões do jogo para um novo equilíbrio, tanto para os ataques, quanto para as defesas. Desta maneira, surgiu outro conjunto de condições balanceadas, que, anos depois, teria sido rompido novamente, provavelmente devido às novas táticas criadas por treinadores e pelos jogadores de defesa. Tal fato levou o International Football Association Board, órgão responsável pela normatização das regras do futebol, a introduzir nova modificação na regra do impedimento, com vistas à reconstrução do equilíbrio em outros termos.

À Guisa de Conclusão

Em suma, por ora, é relevante destacar que a contribuição da sociologia figuracional de Norbert Elias permite-nos visualizar vários aspectos sociológicos do jogo de futebol que estão interligados: a) a importância das regras na definição da identidade do jogo – no caso, o futebol – e seu impacto sobre as táticas, estratégias e dinâmicas desse esporte; e b) a figuração, síntese das alternativas concretas de organização coletiva, relacional e recíproca das ações individuais factíveis de jogadores e técnicos durante o jogo.

Bibliografia

DUNNING, Eric & CURRY, Graham. (2006), “Escolas públicas, rivalidade social e o desenvolvimento do futebol”, in A. Gebara & L.A. Pilatti (orgs.), Ensaios sobre história e sociologia nos esportes, Jundiaí, Fontoura.
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__________. (2006), “Figuração”, in Escritos & ensaios 1: estado, processo, opinião pública. Vários Tradutores. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.
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GIULIANOTTI, Richard. (2002), Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. Tradução de Wanda N.C. Brant e Marcelo de O. Nunes. São Paulo, Nova Alexandria.
MAGUIRE, Joe. (1986), “The emergence of football spectating as a social problem 1880-1985: a figurational and developmental perspective”. Sociology of Sport Journal, 3, 3: 217-244.
MALCOLM, Dominic, SHEARD, Ken & WHITE, Andy. (2000), “The changing structure and culture of English rugby union football”. Culture, Sport & Society, 3, 3: 63-87.
SHEARD, K.G. (1997). “Aspects of boxing in the western ‘civilizing process’”. International Review for the Sociology of Sport, 32, 1: 31-57.
VARNER, M.K. & KNOTTNERUS, J.D. (2002). “Civility, rituals, and exclusion: the emergence of American golf during the late 19th and early 20th centuries”. Sociological Inquiry, 72, 3: 426-441.

domingo, 10 de maio de 2009

A Cora Semiótica ou Em Redor do Buraco, Tudo é Beira


A conversão de Ariano Suassuna ao Pós-Estruturalismo

Ontem foi uma data histórica: o grupo de teoria e epistemologia feminista, composto por professoras e alun@s da UFPE e por pesquisadoras da ONG SOS Corpo, reuniu-se pela primeira vez, dando início a um estimulante debate intelectual sobre o estado da arte nessa área.

Iniciamos nossas discussões a partir de um texto de Terry Lovell (1996) que consiste numa revisão geral das principais teorias feministas, mostrando as tensões entre elas. Em uma das passagens mais difíceis, acerca da relação entre feminismo e psicanálise, deparamo-nos com o conceito de Cora Semiótica, de Julia Kristeva. Este conceito deriva da apropriação e reformulação da distinção lacaniana entre o imaginário e o simbólico que, como sabemos, marca a emergência do sujeito (sexuado) para o psicanalista francês (ô inferno esses pós-estruturalistas!).

De forma bastante resumida, o argumento lacaniano consiste na idéia de que a subjetividade e a identidade emergem por meio da ausência, da falta, da separação e da proibição. Na fase pré-edipiana, a criança ainda não opera uma distinção entre ela própria, sua mãe e o mundo ao seu redor. Apesar disso, em torno dos seis meses de idade, naquilo que Lacan denomina de “fase do espelho”, a criança já é capaz de identificar sua imagem refletida – o estágio inicial de formação do ego por meio da objetivação ou alienação (no que poderíamos considerar o sentido hegeliano do termo). Mas dado que ainda lhe falta coordenação motora, a imagem refletida contrasta fortemente com seu corpo descoordenado, prestes a se fragmentar a qualquer instante. A tensão entre o ego incipiente e sua imagem especular é “resolvida” quando, ao voltar o olhar para sua mãe, a criança, que ainda a percebe como extensão de si própria, consegue restabelecer sua imagem como um todo coerente. A este estágio Lacan se refere como o imaginário (embora mais tarde, em sua obra, o imaginário não seja mais considerado um simples estágio no desenvolvimento infantil, mas uma instância psíquica constitutiva e estruturante da subjetividade).

A subjetividade só se firma, de fato, quando a criança deixa a ordem do imaginário para entrar na ordem do simbólico, ou seja, da representação e da linguagem. Isso ocorre porque, a fim de compensar as ausências ocasionais da mãe, a criança começa a desenvolver suas primeiras representações. Assim, o desejo pela mãe, ocasionado pela perda e por suas ausências eventuais, “expulsam” a criança da ordem do imaginário, inserindo-a na ordem do simbólico. Mas a entrada definitiva na ordem do simbólico só ocorre à medida que um terceiro, o pai, é introduzido na relação da criança com a mãe, proibindo seu desejo por ela.

Esta proibição é acompanhada, na imaginação infantil, pelo medo da castração (não confundir com privação do pênis), isto é, da ausência do falo. Ao contrário de Freud, para quem o pênis aparece como um objeto real, o falo, para Lacan, assume uma dimensão simbólica, isto é, trata-se de um pênis que se transformou num significante: algo que “marca” a ausência do pênis (daí a idéia de que o falo não existe na realidade: trata-se de um “objeto negativo”, sempre descrito em termos de uma “falta” ou ausência, mas que exerce um papel fundamental na realidade do sujeito).

Devido ao medo da castração, o menino, num desejo de conservar seu pênis, afasta-se da mãe, identificando-se com seu pai ao introjetar a proibição de seu desejo por ela e, com isso, as leis sociais. Isso marca o fim da fase edipiana nos meninos. A menina, por sua vez, por temer que o pior já aconteceu, afasta-se da mãe, aproximando-se do pai, adentrando assim em sua fase edipiana no ponto em que o menino deixa a sua (Lovell, 1996).

Ao caracterizar o falo como um objeto negativo, Lacan pode pensar a masculinidade como uma “função universal” que se funda na ausência do falo (castração) e a feminilidade como um não-universal (um particular) que não admite ausência. Isso porque, num sentido estrito, no Real (fora do simbólico), não falta nada à mulher: ao invés de não-possuir um pênis, ela tem uma vagina. É apenas quando submetido à ordem simbólica que as anatomias masculina e feminina podem ser comparadas em termos de ausência/presença (Johnston, S/D). Daí sua mais controversa frase: “a mulher não existe”, uma frase cuja compreensão deve focar sobre o “a” de “a mulher”, isto é, no artigo definido que aponta para a universalidade.

É com base nessa leitura acerca da constituição da subjetividade sexuada que feministas francesas, dentre elas Julia Kristeva, apropriam-se da obra de Lacan. Kristeva propõe uma alternativa ao par lacaniano imaginário/simbólico: o semiótico e o simbólico. O semiótico, para Kristeva, não deve ser entendido em seu sentido tradicional, ou seja, como o estudo dos símbolos e signos, mas como uma espécie de campo emocional ligado às nossas pulsões e que se manifesta nas fissuras da linguagem, e não no significado denotativo das palavras. Nos termos da própria Kristeva (1984:25),

Nós entendemos o termo “semiótica” em seu sentido grego: marca distintiva, traço, índice, sinal precursor, prova, signo gravado ou escrito, impressão, figuração. [...] [O] uso etimológico preponderante desta palavra, aquele que sugere uma distinção, nos permite conectá-lo a uma modalidade precisa no processo de significação. Esta modalidade é aquela que a psicanálise freudiana aponta com postulando não apenas a facilitação e a disposição estruturante das pulsões, mas também os chamados processos primários que deslocam e condensam ambas as energias em sua inscrição.

A semiótica está, portanto, intrinsicamente associada à fase pré-edipiana, aos ritmos, tonalidades e movimentos das práticas significantes: o elemento semiótico é a pulsão corporal que é descarregada na significação. Está, assim, diretamente associada ao corpo materno, que é nossa primeira fonte dos ritmos e tonalidades das práticas significativas, e opõe-se ao simbólico, que estabelece a correspondência entre palavras e seu significado, em um sentido mais estrito do termo “significado”.

A cora, por seu turno, é um termo tomado de Platão que, segundo Kristeva (1977: 57), significa um “receptáculo móvel de mistura, de contradição e de movimento, vital ao funcionamento da natureza antes da intervenção teleológica de Deus, e corresponde à mãe”. Diferentemente de Platão, no entanto, Kristeva não localiza a cora em nenhum corpo particular: “nós pegamos o termo do Timeu de Platão a fim de denotar uma articulação essencialmente móvel e provisória constituída de seus movimentos e suas estases efêmeras” (Kristeva, 1984: 26).

Assim como ocorre com o imaginário de Lacan, a cora semiótica é reprimida quando entra a ordem simbólica, mas seus traços permanecem nas margens do simbólico, exercendo uma pressão desagregadora neste último sob a forma de contradições, silêncios, ausências e ritmos. Por essa razão, o sujeito, assim como o significado, nunca são fixos. Como aponta Lovell (1996:324), “por causa de sua fonte, esses lembretes fragmentados da cora semiótica são rotulados de ‘feminino’ e também porque na teoria lacaniana, o feminino, como o semiótico, é marginalizado”.

A idéia de liminaridade associada ao feminino nos é lembrada mais uma vez quando Kristeva (1998: 143) afirma que “as pulsões que extraem o corpo de sua concha homogênea e o transformam em um espaço ligado ao lado de fora são as forças que marcam a cora em processo”. Na tradução brilhante de Ana Paula Portella: “em redor do buraco, tudo é beira”.

Esse grupo vai longe. Semana que vem a gente se registra no CNPq.

Cynthia Hamlin


Referências

Johnston, Adrian (S/D). Non-Existence and Sexual Identity: some brief remarks on Meinong and Lacan. Disponível em: http://www.lacan.com/nonexist.htm
Kristeva, Julia (1984). Revolution in Poetic Language. Nova York: Columbia University Press.
________. (1998) The Subject in Process. Nova York: Routledge.
Lovell, Terry (1996). “Feminist Social Theory”. Bryan S. Turner (ed.) The Blackwell Companion to Social Theory. Oxford & Cambridge: Blackwell.