Já que Artur amarrou o bode (cara mais susceptível!!!), passo na frente dele e publico algumas considerações sobre nanobiotecnologia e risco. Trata-se de trecho de um artigo mais amplo que será publica numa coletânea organizada, por Paulo Henrique Martins, a partir de ensaios apresentados no Encontro Pré-ALAS ocorrido no Recife em 2008. Com sorte, deslocado do contexto, o trecho fará sentido - se não fizer, não tem problema: o intuito é só chatear ainda mais Artur.Jonatas Ferreira
O estado da arte da nanobiotecnologia no Brasil deve ser apreciado no contexto dos horizontes em que este campo de conhecimento abrem no campo da saúde. Em 2003, tomando como base um workshop realizado no estado da Vírginia, e que reuniu “cientistas, engenheiros, e físicos”, a
National Nanotechnology Initiative produziu um relatório elencando os principais avanços científicos e tecnológicos que são esperados no campo da saúde como decorrência do progresso das nanociências. Foram identificados sete grandes tópicos onde se esperam progressos: i. na produção novas tecnologias de imagens em nível molecular; ii. “ferramentas analíticas quantitativas” capazes de aprender como a célula regula seu funcionamento e como esse funcionamento “pode ser manipulado de modo previsível”; iii. “integração quantitativa de informação derivada da aplicação de nanosensores combinados com novas tecnologias de imagem”; iv. interação entre genômica, proteômica e nanotecnologia de modo a permitir a obtenção de um “modelo físico da célula como máquina”; v. melhores testes ex vivo e “melhoria na atuais técnicas de laboratório”, de modo a permitir uma detecção e prevenção em estágios iniciais das doenças; vi. Avanços na disponibilização de medicamentos e terapêuticas inteligentes; vii. “em última instância, a nanomedicina irá além da função de restaurar a um estado normal e saudável e proporcionará meios de guiar a regeneração de tecidos, órgãos e sistemas de órgãos com capacidades avançadas de auto-reparação e prevenção de doenças” (NNI, 2003, p. vi e vii).
O cenário apontando especialmente nesse último tópico, cenário de longo prazo, horizonte para onde deveriam se encaminhar o conjunto dos esforços da nanobiotecnologia, parece em grande medida utópico: um mundo de perfeita saúde e neguentropia biológica, um mundo do controle tecnológico. Essas utopias são intensamente exploradas por uma literatura dita pós-humanista ou trans-humanista. Acerca do contra-senso desse tipo de discurso tivemos a oportunidade de nos manifestar anteriormente (FERREIRA, 2004) e silenciaremos aqui. Mas é claro que também podemos falar da importância da elaboração dessas utopias - não apenas no processo de legitimação do discurso tecnocientífico, para quem um controle virtualmente perfeito sobre o mundo natural é um horizonte regulador da própria atividade científica -, como também na garantia de polêmicas - em que utopias para uns são consideradas distopias radicais para outros - que ao fim e ao cabo reforçam a imagem de controle que a tecnociência pretende construir para si.
Acredito que um elemento fundamental desse tipo de legitimação que buscam as ciências da vida está relacionado a uma mudança de ênfase na própria idéia de qual é a missão da medicina e que diz respeito a passagem de um modelo de intervenção restauradora para uma intervenção potencializadora. Para ser claro, não precisamos esperar por um cenário de ficção científica para perceber essa transformação. O uso de medicamento psicofarmacológico ou daqueles que tratam da impotência masculina já se submetem em larga medida a esse novo modelo. O uso de ansiolíticos ou moderadores de humor, o uso de medicamentos que combatem a disfunção erétil, não se restringem ao tratamento de doenças, mas a melhoria da performance. Comentando acerca da idéia de convergência tecnológica nas nanociências, Roco & Bainbridge (2002), observam a esse respeito:
A convergência fornece explicitamente um valor moral comprometido. Esse conceito implica que nanociência e convergência irá romper (deva romper) as fronteiras entre o homem, a natureza e os artefatos tecnológicos. Convergência diz respeito à metáfora de uma máquina pensante e ao ideal de melhoramento.
Em um relatório da Erosion, Technology and Concentration Group, obtemos um comentário semelhante: “É na esfera da performance humana […] que a convergência produzirá seu maior impacto e lucro. O que se tem em mente não é apenas eliminar a incapacidade e curar a doença, mas corpos mais fortes, mais velozes, que apresentarão um melhor desempenho que o corpo que hoje é considerado o mais saudável e atlético” (ETC, 2006, p. 14). E aqui não nos cabe analisar em que medida esses cenários são factíveis, factíveis a médio ou longo prazo. Como já observamos, essa já é a lógica que propõe a indústria farmacêutica para aqueles que podem pagar os seus medicamentos. Interessa-nos, por outro lado, o não refletido da própria idéia de melhoria aqui: a redução da vida ao seu aspecto biológico, a redução da vida biológica a sua regulação molecular, aos princípios que estabelecem tal regulação. Interessa-nos uma reflexão hegemônica da vida como problema técnico. Ora, analisando as ciências da vida do século dezenove, Foucault já alertava para a necessidade de abrir nosso esforço reflexivo para além dessa delimitação histórica. Há uma literatura sobre biopoder suficientemente extensa para que não nos preocupemos em acrescentar aqui esclarecimentos nessa direção. Em lugar disso, focaremos num aspecto específico dessa redução que se opera nas ciências da vida e que diz respeito à própria noção de risco como centro das polêmicas que hoje travam os mais diversos atores sociais em torno da inovação tecnológica.
A primeira constatação a esse respeito é admitir que, embora esse tenha sido um campo onde a ação de atores importantes da sociedade civil foi mais intensa - como tem sido o caso da atuação de entidades ambientalistas com respeito à produção e comercialização de alimentos geneticamente modificados -, o risco constitui um terreno em que embates políticos sempre cedem ao argumento técnico. E isso não ocorre por alguma qualidade racionalizadora de tais argumentos, mas pelos termos em que o debate acerca dos riscos é definido. A esse respeito convém escutar o que Ulrich Beck já dizia na década de 1980. Comecemos pois por uma definição clara: “Risco pode ser definido como uma forma sistemática de lidar com os perigos e inseguranças induzidos pela própria modernização” (1992, p. 21). A identificação de um risco não é a mera identificação de um perigo, mas uma forma sistemática, metódica, técnica de tratar com um efeito da civilização tecnológica. Trata-se, portanto, de uma noção que pressupõe um tratamento técnico para um problema induzido pela própria técnica. Para Beck, o risco não é um efeito colateral da sociedade contemporânea, mas um elemento fundamental na própria lógica reflexiva mediante a qual o capitalismo prospera. Mas há evidentemente muitos problemas que podem ser identificados na auto-referência a partir da qual o discurso do risco prospera: i. ele avalia e mede o efeito que uma substância tem sobre uma pessoa, mas não o que a acumulação de diferentes substâncias apresentar; ii. ele não leva em conta que certos riscos, especialmente os produzidos por novas tecnologias, podem ter efeitos que se colocam para além do ciclo de vida de uma indivíduo – podendo se manifestar em seus filhos e netos, por exemplo; iii. um mesmo agente poluente, por exemplo, pode ter efeitos bastante diversos em diferentes indivíduos – a determinação dos limites de risco desse agente, no entanto, padronizam uma espécie de tipo biológico médio; iv. no que diz respeito às tecnologias radicalmente inovadoras, como as nanotecnologias, a avaliação dos perigos ambientais, biológicos a partir de uma lógica de risco é claramente insuficiente na medida em que nos faltam referências técnicas para calcular o efeito que a introdução de novos materiais, com propriedades novas, teriam sobre a vida biológica.
Um efeito subliminar da lógica do risco, no entanto, seria a forma como ele se incorpora em nosso cotidiano. Se a lógica científica caiu do Olimpo de legitimidade em que vivia na sociedade tecnológica, ela o fez sobre a vida cotidiana, buscando delimitar nossas possibilidades de pensar politicamente o mundo em que estamos. O risco, em sua sistematicidade, em sua 'auto-referencialidade', penetra nossa relação com a ciência e a reduz a uma avaliação de custo-benefício. Não pensamos 'que tipo de sociedade é essa que polui e desmata, que instrumentaliza nossa relação com a natureza?'; limitamo-nos a procurar identificar se os meios técnicos para solucionar eventuais desastres estão disponíveis. O risco é uma questão técnica e, como tal, de competência da ciência especializada. Por esse motivo mesmo, prospera o número de periódicos e artigos científicos dedicados ao tema (ver, por exemplo, LINKOV et. Al, 2008, TERVONEN et al., 2008).
Mais recentemente, algumas releituras críticas do trabalho de Beck foram produzidas. Uma dessas críticas refere-se ao risco tecnológico ser concebido como um fato consumado, algo já produzido, uma caixa-preta já fechada. “Considerações históricas da ciência e da tecnologia têm frequentemente ignorado as particularidades técnicas da prática científica. De fato, as elaborações internas da ciência foram tradicionalmente fechadas numa “caixa-preta”. O pressuposto é que não pode haver 'má ciência', apenas 'má tecnologia' (KEARNES et al, 2006, p. 25). Em oposição a esse fechamento, Kearnes et al. falam da necessidade de engajar a opinião pública num diálogo antecipado com os cientistas acerca de suas práticas, produtos, dos sentidos éticos, políticos, sociais, econômicos dessas práticas e produtos. Essa seria a forma de evitarmos a delimitação do diálogo entre a ciência e a sociedade a um campo bastante restrito: o risco. E é claro que esse diálogo não pode evitar tal questão premente; sua virtude seria colocá-la num espectro mais amplo de problemas.
Nesta direção, gostaria de indicar, numa mesma direção teórica que tomam Kearnes et al. que nas nanociências e nanotecnologias a noção de risco não se estabilizou, ou seja, ela é objeto de controvérsias no campo de convergência tecnológica a partir do qual novos produtos, terapêutica etc. são criados. Esse é precisamente o caso que da rede brasileira de nanobiotecnologia, como vimos em depoimento de uma cientista no tópico anterior. Acreditamos que, de fato, a teoria do ator-rede (de Latour e Callon poderia dar uma contribuição importante para seguir as tensões que colocam a noção de risco em perspectiva. Seguir os cientistas em suas práticas aqui também também constitui a oportunidade de abrir uma discussão que apresenta implicações éticas, econômicas, políticas e culturais. E alguns desses pontos também nos foram indicados nas entrevistas indicadas ao longo do texto. A medida em que essas tensões vão se tornar políticas, no sentido produtivo da palavra, no entanto, dependerá de um envolvimento da opinião pública na discussão dos rumos que devem tomar a ciência e a tecnologia que não podem ser garantido nos limites estreitos dos laboratórios. Talvez seja ilustrativo lembrar das discussões que cercaram a votação da Lei de Biossegurança brasileira, especialmente no que toca a pesquisa com células tronco-embrionárias. Ali também cientistas, políticos, opinião pública, organizações não-governamentais, Igreja Católica etc. um ponto fundamental das discussões seria a busca de estabilização do estatuto ontológico do daquele tipo de célula. A não estabilização do significado ético, científico, econômico das pesquisas envolvendo embriões com poucos dias de desenvolvimento configurou grande parte da polêmica política em questão, embora o grau de democratização das discussões tenha sido limitado (FERREIRA e AMARAL, 2006 e 2008).
É preciso portanto aproveitar a polêmica gerada em torno dos riscos que cercam as nanotecnologias em geral, e as nanobiotecnologias, em particular, para abrir espaços políticos que se coloquem para além do espaço de legitimação técnica que a própria noção de risco implica. Se essa não estabilização é uma oportunidade política, nossa capacidade de garantir um processo de discussão democrático das relações entre sociedade civil e produção científica e tecnológica não estão garantidas apenas pela existência de tal oportunidade. Tampouco estariam ali garantidas a possibilidade de abrir discussões mais amplas acerca do sentido da tecnociência em nossa sociedade.
Referências
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