"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sexta-feira, 30 de abril de 2010
terça-feira, 27 de abril de 2010
O Romantismo e as Ciências Sociais 11: Pobreza e Experiência
Man Ray, the gift (1921)
Jonatas Ferreira
Antes de ler Infância e História, nunca havia percebido suficientemente certas nuances do artigo “Experiência e Pobreza” (1933) de Walter Benjamin. Em minhas leituras desse texto, que versa sobre o sentido da vida nas sociedades modernas, sempre prevaleceu a percepção de um humor soturno ao qual eu opunha a visão mais solar de “Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936/1955). “Experiência e Pobreza” lembra muito o pessimismo com o qual Weber nos brinda em “Ciência como Vocação” (1919). Todos nos lembramos da passagem em que ele recorre a Tolstoi para concluir que a vida para o homem moderno não tem significado. Na verdade, não tenho grandes simpatias com relação ao projeto sociológico weberiano, porém essa coisa menos controlada, essa palestra proferida sob a emoção e impacto do pós-guerra, e renegada pouco tempo depois, comove pelo desespero do diagnóstico. Max Weber chuta o pau da barraca: para o homem moderno vida e morte não têm significado, ele afirma. “E não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de um “progresso” infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar em que estamos, na marcha do progresso”. (p. 166). A palestra prossegue afirmando que, por tudo isso, na sociedade industrial, moderna, podemos cansar-nos da vida mas jamais nos saciar dela. Bem, é verdade que para chegar à radicalidade dessa conclusão, que se assemelha em muito ao que Benjamin dirá no “Experiência e Pobreza”, repito, ele nos faz entrar num calvário de considerações sobre a vida acadêmica alemã do começo do século XX. Era um chato incurável. Quem já se deu ao trabalho de ler seus ensaios metodológicos haverá de concordar comigo.
O impressionismo de Benjamin é o oposto disso. Seus textos são sempre seminais, vibrantes, embora desprovidos de preocupação com o rigor de uma demonstração científica de suas constatações. E isso certamente contribuiu para a agilidade de sua pena. Por isso mesmo ele pode dizer sem muitos prolegômenos, com simplicidade e pinceladas rápidas: uma “nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem”. Essa é uma miséria compatível com a proliferação de vivências rasas, consumidas com a mesma voracidade e inconsequência com a qual nos movimentaríamos numa loja de departamentos: astrologia, ioga, vegetarianismo, quiromancia etc. etc., tudo está à disposição dos olhos e do estômago civilizados. Tudo está fadado à mesma aniquilação vertiginosa.
A potencialização do niilismo na cultura ocidental, sabemos categoricamente desde Nietzsche, está intimamente ligada à sociedade industrial, à sua incapacidade de fundar uma cultura a partir de valores essenciais. Heidegger, muitos anos depois, afirmará que a própria filosofia de seu tempo, e um certo sociologismo que grassaria nas sociedades tecnologicamente avançadas, aprofundam esse niilismo ao impor um olhar transcendente, distanciado sobre a vida social. O olhar do “tédio profundo” que tornaria impenetrável o mundo à nossa volta. Benjamin afirma a esse respeito:
“Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie”.
Acredito que isso que Benjamin chama “experiência” está relacionado com o que a filosofia clássica chamava “prudência”, ou seja, o aprendizado cultural que se adquire com o passar dos anos, ou ao menos é isso que se espera do ser humano quando imerso em uma cultura que entende a passagem do tempo como algo circular. Quem viveu mais nesse tipo de sociedade, tem chances de se tornar “prudente”, isto é, “experiente”. Nessa qualidade o ancião é escutado. Em Agamenon, Ésquilo expõe, de uma forma belíssima, o que caracterizaria para o homem grego a relação entre prudência e experiência. Aos mortais, Zeus abre um só caminho para a experiência, para a prudência, a saber, a dor.
Él, que abrió a los mortales
la senda del saber;
Él, que en ley convertiera
"Por el dolor a la sabiduría".
En vez de sueño rezuma dentro del pecho
un dolor que recuerda el mal antiguo.
Así, aun sin querer, le llega al hombre
la prudencia. Favor violento de los dioses
que en su augusto trono se sientan,
junto al timón!
Mas, como todos sabemos, a moderna ciência promove a quebra desse paradigma temporal. Shakespeare percebe com precisão o que viria pela frente quando, pela boca de Hamlet, sentencia no final do primeiro ato: “o tempo está fora dos gonzos”. Isto é, o tempo perdeu o seu centro e agora já não revolve sobre si, já não mede a transformação física da natureza, já não propicia prudência. Pela mão da ciência somos levados “ao progresso infinito” de que fala Weber com tanto pessimismo.
De uma maneira categórica, estamos sós. E esse sentimento de solidão, diante de uma comunidade que já não existe, e derrelição, diante de um tempo que apenas nos apresenta nossa finitude, mortalidade, está intimamente ligado ao que Benjamin chama de “pobreza”. Já não podemos confiar na sabedoria dos antigos, em sua máximas de vida, em seus provérbios. Para Benjamin, esse é um tempo sem mistério, um tempo de homens nus, de paisagens transparentes, de uma estética do vidro.
“Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não tem nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério. É também o inimigo da propriedade” (p. 117)
Mas engana-se, e eu me enganava, quem pensa que a conclusão definitiva de Benjamin nesse texto curto seja a constatação de que a narrativa já não seria possível, a experiência nos teria sido furtada e que simplesmente “ficamos pobres”. Essa nota fundamental, de fato, prevalece no texto: “Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos de empenhá-las muitas vezes a um centésimo de seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do “atual”” (p. 119). Outras notas, no entanto, podem ser escutadas, como quando ele pergunta se a técnica não poderia propiciar um novo tipo de experiência, pergunta à qual ele retorna em “A Obra de Arte”. Evocando a obra ficcional de Scheerbart ele se questiona em “Pobreza e Experiência” “como nossos telescópios, aviões e foguetes transformaram os homens antigos em criaturas inteiramente novas, dignas de serem vistas e amadas. De resto, essas criaturas também falam uma língua inteiramente nova” (p. 117). E o parágrafo sobre Scheerbart fica ressoando desarmoniosamente no texto. O que Benjamin afinal queria com ele?
Nesse ponto, creio que a exegese agambeniana do artigo de Benjamin tenha relevância. Agamben procura abrir os espaços densos do “Pobreza e Experiência”, complementando-os, dialogando com eles, expandindo-os com novas constatações que resultam, por vezes, tão densas quanto aquelas que buscam esclarecer, ampliar. Agamben glosa o texto de Benjamin, ou seja, atua por dentro de seu “potencial de desenvolvimento”, como ele disse em 2002 numa palestra chamada “O que é um paradigma?”. E se algum sentido tem o presente texto é apenas apontar para a importância de percorrer esses dois textos e continuar esse experimento crítico que solicita, em sua densidade, uma glosa da glosa.
Assim, uma primeiro desenvolvimento do texto de Benjamin diz respeito à relação entre experiência e autoridade sobre a qual tanto se debruçou a ciência moderna. A experiência se impõe como autoridade. Para a ciência do século XVII, pensemos em Galileu ou Kepler, essa injunção é um obstáculo ao exercício crítico. No lugar da experiência de uma comunidade institucionalizada na Igreja, no recurso a filósofos da antiguidade clássica, ou cristalizada em seus provérbios e máximas de comportamento, a moderna ciência propõe o experimento e sua própria legitimação sob um novo princípio de autoridade, ou seja, a autoridade dos laboratórios, dos equipamentos, das medições sistemáticas. Mas esse tipo de autoridade é, por definição, “inexperienciável”, no sentido de que ele demanda sempre a crítica. A desconfiança com relação à autoridade da experiência faz com que prevaleça entre os modernos, também em outras esferas da vida, a outorga da experiência aos instrumentos. “Posta diante das maravilhas da terra […], a esmagadora maioria da humanidade recusa-se a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter a experiência delas” (Agamben, p.23).
A postura de Agamben diante disso tudo, todavia, não é a do saudosista, mas a do filósofo que procura inquirir em que medida se “no fundo desta recusa aparentemente disparatada” não se esconderia o “germe de uma experiência futura” (Ibid.). Que experiência seria então possível ao homem moderno quando constatamos a sua nudez radical? Se uma resposta a essa pergunta for possível, ela terá de aguardar uma análise mais detida daquilo que se perde.
Por que a crítica científica mobiliza uma metafísica do sujeito incompatível com a autoridade da experiência? Porque o sujeito da ciência coloca-se numa perspectiva transcendente a todo em qualquer vivência que possa se converter em senso comum. Ele é o sujeito universal que reivindica não estar em nenhum lugar específico, mas num espaço vazio onde a objetividade se tornaria possível. “Pois a grande revolução da ciência moderna não consistiu tanto em uma alegação da experiência contra a autoridade (do argumentum ex re contra o argumentum ex verbo, que são, na realidade, inconciliáveis) quanto em referir conhecimento e experiência a um sujeito único, que nada mais é que a sua coincidência em um ponto arquimediano abstrato: o ego cogito cartesiano, a consciência” (Agamben, p. 28). Esse ego transcendente é a condição para a superação de um cisma a partir do qual o pensamento antigo operava, ou seja, entre sujeito da ciência (“impassível” e “divino”) e sujeito da experiência (cristalizado no senso comum). Um primeiro passo nessa direção é dado pela alquimia e pela astrologia que, como todos sabemos, é um momento fundamental na configuração de certas bases epistemológicas da ciência moderna. Agamben tem em mente algo particular: a confluência entre experiência e conhecimento na experiência mística:
“Porém, enquanto a coincidência de experiência e conhecimento constituía, nos mistérios, um evento inefável, que se cumpria com a morte e o renascimento do adepto emudecido, e enquanto, na alquimia, ela se efetuava no processo da Obra, da qual constituía a realização, no novo sujeito da ciência, ela torna-se não algo de indizível, mas aquilo que é já sempre dito em cada pensamento e em cada frase, ou seja, não um páthema, mas um máthema no sentido originário da palavra: isto é, algo que é sempre já imediatamente conhecido em cada ato de conhecimento, o fundamento e o sujeito de todo pensamento” (Agamben, p. 31)
Mas para que isso se consume, é necessário que a possibilidade subjetiva de conhecer e experienciar se transformem. Uma imagem dessa mudança nos é apresentada através da obra de Cervantes:
“Dom Quixote, o velho sujeito do conhecimento, foi enfeitiçado e pode apenas fazer experiência, sem jamais tê-la. Junto a ele, Sancho Pança, o velho sujeito da experiência, pode apenas ter experiência, sem jamais fazê-la” (Agamben, p. 33)
O Dom Quixote é a oportunidade de introduzir uma outra glosa ao “Pobreza e Experiência”, nomeadamente, aquela que discute o lugar da fantasia, da imaginação na cultura moderna. Lendo este primeiro ensaio de Infância e História, haveremos de lembrar de Foucault que afirma na História da Loucura, reportando-se à Descartes: uma separação clara entre razão e desrazão, entre o conhecido e o imaginado, foi um passo decisivo no sentido da consolidação da razão científica. No Discurso do Método, todos nos lembraremos, Descartes se pergunta em que medida toda aquela conversa de dúvida radical não seria um indício de que ele estivesse pirando. Descarta a possibilidade nos seguintes termos: se eu estivesse louco, seria incapaz de me colocar essa possibilidade. Ou seja, razão e desrazão não podem ocupar um mesmo espaço.
Quando escrevemos no Cazzo sobre o Romantismo alemão, mencionamos o esforço empreendido por pensadores como Fichte e Schelling no sentido de reintroduzir a imaginação como elemento fundamental da experiência do mundo natural, isto é, de uma experiência da natureza que não resultasse instrumentalizadora. Essa teria sido uma das bases de uma crítica à sociedade industrial, mas não a visão que se impôs como hegemônica. E aqui também é preciso entender o que distingue mais especificamente a cultura moderna, industrial, da cultura pré-moderna. Recorramos ao Infância e História mais uma vez: “Nada pode dar idéia da dimensão da mudança ocorrida no significado da experiência como a reviravolta que ela produz no estatuto da imaginação. Dado que a imaginação, hoje eliminada do conhecimento como sendo “irreal”, era para a antiguidade o medium por excelência do conhecimento. Enquanto mediadora entre sentido e intelecto, que torna possível, no fantasma, a união de forma sensível e intelecto possível, ela ocupa, na cultura antiga e medieval, exatamente o mesmo lugar que a nossa cultura confere à experiência [experimento?]. Longe de ser algo irreal, o mundo imaginabilis tem a sua plena realidade entre o mundo sensibilis e o mundo intellegibilis, e é, aliás, a condição de sua comunicação, ou seja, do conhecimento” (Agamben, p. 33).
Um Sintoma dessa transformação seria, para Agamben, a transformação do lugar da imaginação no discurso amoroso. Comparando Sade à poesia “trovadoresco-estilonovista” ele pode constatar uma semelhança: ambos procuram pela imaginação alcançar um “puro projeto edênico”, uma experiência de plenitude. Reduzindo o alvo de seu erotismo à condição de objetos, todavia, o desejo em Sade está fadado a não se realizar, a permanecer irremediavelmente desejante. E aniquilador enquanto tal. O que, neste sentido, Sade nos ensina a respeito de nossos envolvimentos amorosos senão a identicação dessa máquina desejante que objetiva e consome? E, para não ficarmos apenas no terreno do maldito, poderíamos nos perguntar se essa conclusão não é semelhante áquela que chega o existencialismo de Sartre. De qualquer modo, o que se apresenta aqui são algumas delimitações culturais de uma metafísica da subjetividade.
A reintrodução da imaginação como elemento fundamental do conhecimento dessa subjetividade, promovida de modo radical pela psicanálise, indica um limite fundamental desse discurso. A consciência subjetiva é lançada num tipo de experiência da inconsciência que mudará o pensamento ocidental, e da qual Agamben encontra indícios em Montaigne e Rousseau. Essa nova crise no pensamento ocidental é a possibilidade de entender os elementos linguísticos que permeiam o próprio cogitare cartesiano, base dessa metafísica. E é, portanto, uma superação da metafísica do sujeito, a superação de um pensamento em que sujeitos transcendentes são confrontados com objetos vazios de significado que o texto benjaminiano já reivindica sem ter à sua disposição uma virada linguística que o auxiliasse nessa tarefa. Mas se Agamben recorrerá a Benveniste como base de suas reflexões acerca das implicações linguísticas de “Pobreza e Experiência”, será a sombra de Heidegger que marcará essa reflexão. Mesmo quando ele aparentemente discorda dos termos em que Heidegger afirma a centralidade da linguagem para a filosofia, será para afirmar uma afinidade mais profunda. E é precisamente essa afinidade que lhe permite resgatar o sentido possível de uma nova experiência, baseada em nossa nudez radical. Ele afirma: “Os animais não entram na língua: já estão sempre nela. O homem, ao invés disso, na medida em que tem uma infância, em que já não é sempre falante, cinde essa língua una e apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se como sujeito da linguagem, deve dizer eu” (Agamben, p. 64). Apenas mediante a pobreza de nossa experiência seria possível constatar que o que nos diferencia dos animais não é estarmos em uma língua, mas estarmos sempre no processo de entrar nela. Em outras palavras, a língua não nos é dada, estamos sempre em processo de alcançá-la, de entrar em seu espaço. A língua é nossa questão, estamos sempre retornando à sua infância. É precisamente a possibilidade de dizer “eu” que nos capacita a operar uma separação entre língua e discurso, entre o que está dado e o modo como podemos nos envolver com o que está dado. E isso é apenas uma outra forma de afirmar nossa pobreza, precariedade ontológica; porém agora tudo isso é tomado como base do pensar o mundo de maneira radical.Como em Marx, a nossa nudez é a base para se ter esperanças em uma experiência radicalmente trágica da vida.
[por editar]
domingo, 25 de abril de 2010
O “experimento” de Bobby McFerrin: Associações, expectativas e observação empírica
Cynthia Hamlin
Semana passada, no curso de teoria social realista que estou ministrando na Pós-Graduação, discutimos a relação entre teoria e observação, de uma perspectiva realista. O cerne da discussão é que, embora exista uma separação entre aquilo que observamos (os fenômenos e eventos do mundo) e o que pensamos acerca deles (nossas teorias, conceitos etc), não se pode efetuar uma distinção muito rígida entre essas duas coisas, pois nossa relação com o mundo é sempre mediada. Isso é outra forma de dizer que a mente humana tem um papel ativo na nossa experiência: ao contrário do que afirmavam os empiristas, nossa percepção não ocorre independentemente de nossas teorias ou, de forma mais ampla, de nossos conteúdos mentais. Até aí, tudo bem, afinal de contas, qualquer aluno de graduação é capaz de citar Popper e dizer que nossas observações são teoricamente embasadas ou, num grau de sofisticação um pouco mais elevado, de recorrer à ideia de Bachelard de que o fato não é simplesmente dado, mas (deve ser) construído. A coisa começa a complicar um pouco mais quando a relação é questionada no sentido contrário, isto é, quando se questiona a influência da observação empírica nos nossos conceitos e teorias.
Se, por um lado, nossas teorias informam nossas observações, as teorias também não podem ser reduzidas a coleções de observações de um mesmo tipo de fenômeno ou evento indutivamente generalizados. De uma perspectiva realista, elas não podem nem mesmo ser reduzidas a uma combinação de observações e de deduções lógicas a partir de princípios gerais (autoevidentes ou indutivamente generalizados), como querem os defensores de uma combinação do indutivismo empirista e do dedutivismo racionalista. Existe um outro processo envolvido na construção de conceitos e de teorias, e que também afeta nossas observações e experiências, que se baseia naquilo que Charles Peirce chamou de abdução ou retrodução. Para meus propósitos aqui, eu poderia definir a retrodução como a compreensão de algo desconhecido por meio da comparação (geralmente metafórica ou analógica) com algo já conhecido. A coisa funciona mais ou menos assim:
Na sequência do vídeo (aqui), John Schaefer, o radialista que presidia a “mesa redonda” composta de músicos e neurocientistas no World Science Festival, em Nova York, no ano passado, formula o problema em termos científicos: “O que diabos foi isso???”
Para McFerrin, isso foi uma ilustração do poder das expectativas (de uma combinação de notas particulares) com base em nosso conhecimento prévio da escala pentatônica: “o que me parece interessante em relação a isso é que, independentemente de onde estou, em qualquer lugar, toda audiência entende isso. Não importa [onde]... é o que [acontece] com a escala pentatônica, por alguma razão”.
Aqui, um parêntesis para esclarecer o que é a escala pentatônica. Tive que recorrer a um de meus irmãos, que entende de música e de física. Pedi uma definição para leigos da escala e perguntei se ele concordava com a visão do músico Carl Orff de que o conhecimento desta escala era inato. Corroborando a minha hipótese em sociologia da família de que a crueldade dos irmãos mais velhos para com os mais novos é uma função primitiva e inata que se localiza no sistema límbico do cérebro, ele me enviou a seguinte resposta:
Bem... agora que está tudo claro e cristalino como a água, vamos à questão epistemológica propriamente dita. Isso vai requerer uma pequena modificação na pergunta inicial, colocada por Schaefer. O que está em jogo aqui não é o caráter supostamente inato ou culturalmente aprendido da escala pentatônica. Para o nossos propósitos, podemos considerar esse conhecimento prévio como um dado (e os neurologistas parecem unânimes ao afirmar que o que temos aqui é uma mistura de elementos inatos – nossa capacidade de aprender qualquer tipo de escala – e de elementos culturais – a exposição a escalas particulares influencia a forma como os circuitos neurais ocorrem. Um deles, Jamshed Bharucha, que efetua uma série de experimentos comparativos entre as escalas baseadas em intervalos perfeitos, afirma que, embora as escalas baseadas em quartas e quintas sejam “praticamente universais”, as baseadas nas terças são mais comuns na cultura indiana, o que faz com que, quando os ocidentais ouvem uma fragmento de música daquela cultura, tendem a completar a sequência alterando a escala).
O problema epistemológico, que poderia ser colocado em termos fenomenológicos, diz respeito a como a mente humana interpreta um fenômeno ou um evento, neste caso, uma ação: os movimentos de McFerrin no palco. Como as pessoas sabiam o que “responder”? Em minha modesta opinião, parte da resposta, é que elas conhecem, ainda que intuitivamente, a escala pentatônica. Esse conhecimento diz respeito a noções abstratas como imagens, conceitos, teorias e, neste caso específico, refere-se a uma representação auditiva de sequencias de notas consideradas passíveis de estarem juntas.
Mas o simples fato de conhecerem a escala não possibilitaria às pessoas cantar a nota requisitada, já que a forma que a sequência poderia assumir é ilimitada, assim como a duração de cada nota, que foi o que possibilitou McFerrin improvisar uma segunda voz em cima da sequência cantada pela audiência. A fim de interpretar a ação, cuja sequência de atos (um ato é um segmento de ação) era desconhecida pela plateia, um outro recurso cognitivo teve que ser mobilizado: um teclado metafórico no chão do palco e que diz respeito a uma representação espacial, e não auditiva, como no caso anterior, da sequência requisitada. É esta metáfora - que tem pouco ou nada que ver com o conhecimento da escala pentatônica - ao comparar o chão do palco a um teclado, o corpo de McFerrin aos dedos do músico e a voz da platéia ao som produzido pelo instrumento, que permite dar conta do caráter contingente da melodia solicitada na improvisação. Em termos semelhantes aos colocados por Adrian Scribano, em seu Metafora y Analogias, o que ocorreu foi um mapeamento estrutural de um domínio conceitual a outro, tornando possível a interpretação uma sequência de movimentos corporais em termos de uma sequência de notas musicais.
É interessante notar que o recurso ao elemento metafórico não ocorre nas improvisações que McFerrin desempenha com outros músicos. Veja, em particular, suas improvisações com Anita Vitale, com Judy Donaughy e com Aziza Mustafa Zadeh, no gadget ao lado. Como diria Artur, nosso sociólogo/psiquiatra, muito doido...
Semana passada, no curso de teoria social realista que estou ministrando na Pós-Graduação, discutimos a relação entre teoria e observação, de uma perspectiva realista. O cerne da discussão é que, embora exista uma separação entre aquilo que observamos (os fenômenos e eventos do mundo) e o que pensamos acerca deles (nossas teorias, conceitos etc), não se pode efetuar uma distinção muito rígida entre essas duas coisas, pois nossa relação com o mundo é sempre mediada. Isso é outra forma de dizer que a mente humana tem um papel ativo na nossa experiência: ao contrário do que afirmavam os empiristas, nossa percepção não ocorre independentemente de nossas teorias ou, de forma mais ampla, de nossos conteúdos mentais. Até aí, tudo bem, afinal de contas, qualquer aluno de graduação é capaz de citar Popper e dizer que nossas observações são teoricamente embasadas ou, num grau de sofisticação um pouco mais elevado, de recorrer à ideia de Bachelard de que o fato não é simplesmente dado, mas (deve ser) construído. A coisa começa a complicar um pouco mais quando a relação é questionada no sentido contrário, isto é, quando se questiona a influência da observação empírica nos nossos conceitos e teorias.
Se, por um lado, nossas teorias informam nossas observações, as teorias também não podem ser reduzidas a coleções de observações de um mesmo tipo de fenômeno ou evento indutivamente generalizados. De uma perspectiva realista, elas não podem nem mesmo ser reduzidas a uma combinação de observações e de deduções lógicas a partir de princípios gerais (autoevidentes ou indutivamente generalizados), como querem os defensores de uma combinação do indutivismo empirista e do dedutivismo racionalista. Existe um outro processo envolvido na construção de conceitos e de teorias, e que também afeta nossas observações e experiências, que se baseia naquilo que Charles Peirce chamou de abdução ou retrodução. Para meus propósitos aqui, eu poderia definir a retrodução como a compreensão de algo desconhecido por meio da comparação (geralmente metafórica ou analógica) com algo já conhecido. A coisa funciona mais ou menos assim:
Na sequência do vídeo (aqui), John Schaefer, o radialista que presidia a “mesa redonda” composta de músicos e neurocientistas no World Science Festival, em Nova York, no ano passado, formula o problema em termos científicos: “O que diabos foi isso???”
Para McFerrin, isso foi uma ilustração do poder das expectativas (de uma combinação de notas particulares) com base em nosso conhecimento prévio da escala pentatônica: “o que me parece interessante em relação a isso é que, independentemente de onde estou, em qualquer lugar, toda audiência entende isso. Não importa [onde]... é o que [acontece] com a escala pentatônica, por alguma razão”.
Aqui, um parêntesis para esclarecer o que é a escala pentatônica. Tive que recorrer a um de meus irmãos, que entende de música e de física. Pedi uma definição para leigos da escala e perguntei se ele concordava com a visão do músico Carl Orff de que o conhecimento desta escala era inato. Corroborando a minha hipótese em sociologia da família de que a crueldade dos irmãos mais velhos para com os mais novos é uma função primitiva e inata que se localiza no sistema límbico do cérebro, ele me enviou a seguinte resposta:
A escala pentatônica é realmente inata, mas todas as escalas naturais o são (em contraposição às temperadas). O processo de formação de uma escala parte de uma nota fundamental (em termos físicos, uma freqüência) e segue o princípio básico de ir encontrando os múltiplos (harmônicos em linguagem musical e física) desta freqüência. Assim, se partimos da nota lá (440 Hz), teremos o primeiro harmônico em 880Hz, que também é o lá (uma oitava acima). O próximo hamônico é 1.220Hz, que corresponde ao mi. Note que a progressão natural é por quintas (em relação à última nota). Dessa forma, uma escala pentatônica começando em lá teria como nota subsequente o mi, seguido pelo si, com o fá sustenido e o dó sustenido finalizando a escala. Você poderá formar escalas pentatônicas a partir de qualquer nota, respeitando o ciclo de quintas.
Um fato interessante sobre isso é o temperamento (cuja adoção foi defendida por Bach, em sua obra o cravo bem temperado). Perceba que a afinidade entre as notas está diretamente ligada à distância do harmônico (o menor deles é o dobro da frequência do primeiro e é tão parecido que recebe o mesmo nome de nota). Isso leva, porém a uma quantidade infinita de notas. Alguns instrumentos, como o violino, possuem a capacidade de tocar virtualmente qualquer frequência intermediária, mas outros, como os instrumentos de teclado, exigiriam infinitas teclas para fazer isso. Outra conseqüência desagradável é a impossibilidade de transposição das melodias em outras tonalidades, pois as notas são diferentes entre si (o si bemol na escala natural seria diferente do lá sustenido, por exemplo). Bach, em suas elocubrações, defendia que se "desafinassem" todas as notas ligeiramente, de modo a possibilitar que as transposições de tonalidades ocorressem sem alterar as melodias. Assim, em vez de achar a próxima quinta pelo acréscimo de 50% à freqüência da nota base, deveria ser acrescido 49,84% à mesma. O resultado disso é a música tonal, que impera até hoje na música popular. Como as notas são "desafinadas" em relação ao que deveriam ser, esta escala é artificial (não respeita o processo natural de formação pelas quintas).
Bem... agora que está tudo claro e cristalino como a água, vamos à questão epistemológica propriamente dita. Isso vai requerer uma pequena modificação na pergunta inicial, colocada por Schaefer. O que está em jogo aqui não é o caráter supostamente inato ou culturalmente aprendido da escala pentatônica. Para o nossos propósitos, podemos considerar esse conhecimento prévio como um dado (e os neurologistas parecem unânimes ao afirmar que o que temos aqui é uma mistura de elementos inatos – nossa capacidade de aprender qualquer tipo de escala – e de elementos culturais – a exposição a escalas particulares influencia a forma como os circuitos neurais ocorrem. Um deles, Jamshed Bharucha, que efetua uma série de experimentos comparativos entre as escalas baseadas em intervalos perfeitos, afirma que, embora as escalas baseadas em quartas e quintas sejam “praticamente universais”, as baseadas nas terças são mais comuns na cultura indiana, o que faz com que, quando os ocidentais ouvem uma fragmento de música daquela cultura, tendem a completar a sequência alterando a escala).
O problema epistemológico, que poderia ser colocado em termos fenomenológicos, diz respeito a como a mente humana interpreta um fenômeno ou um evento, neste caso, uma ação: os movimentos de McFerrin no palco. Como as pessoas sabiam o que “responder”? Em minha modesta opinião, parte da resposta, é que elas conhecem, ainda que intuitivamente, a escala pentatônica. Esse conhecimento diz respeito a noções abstratas como imagens, conceitos, teorias e, neste caso específico, refere-se a uma representação auditiva de sequencias de notas consideradas passíveis de estarem juntas.
Mas o simples fato de conhecerem a escala não possibilitaria às pessoas cantar a nota requisitada, já que a forma que a sequência poderia assumir é ilimitada, assim como a duração de cada nota, que foi o que possibilitou McFerrin improvisar uma segunda voz em cima da sequência cantada pela audiência. A fim de interpretar a ação, cuja sequência de atos (um ato é um segmento de ação) era desconhecida pela plateia, um outro recurso cognitivo teve que ser mobilizado: um teclado metafórico no chão do palco e que diz respeito a uma representação espacial, e não auditiva, como no caso anterior, da sequência requisitada. É esta metáfora - que tem pouco ou nada que ver com o conhecimento da escala pentatônica - ao comparar o chão do palco a um teclado, o corpo de McFerrin aos dedos do músico e a voz da platéia ao som produzido pelo instrumento, que permite dar conta do caráter contingente da melodia solicitada na improvisação. Em termos semelhantes aos colocados por Adrian Scribano, em seu Metafora y Analogias, o que ocorreu foi um mapeamento estrutural de um domínio conceitual a outro, tornando possível a interpretação uma sequência de movimentos corporais em termos de uma sequência de notas musicais.
É interessante notar que o recurso ao elemento metafórico não ocorre nas improvisações que McFerrin desempenha com outros músicos. Veja, em particular, suas improvisações com Anita Vitale, com Judy Donaughy e com Aziza Mustafa Zadeh, no gadget ao lado. Como diria Artur, nosso sociólogo/psiquiatra, muito doido...
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sexta-feira, 23 de abril de 2010
Metafora y Analogias
Adrián Scribano (Professor da Universidad Nacional de Villa María, Córdoba, da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do Conicet – Argentina).
Artigo originalmente apresentado em seminário na Universidad Nacional de Catamarca, em 1996.
Para poder captar una Imagen del Mundo postulamos que se deben responder dos preguntas: 1) ¿COMO es posible la constitución de una Imagen del Mundo?, cuya respuesta debe ser elaborada a partir de la identificación y análisis de los mecanismos de transmisión y reproducción de dichas imágenes, y 2) ¿CUAL es el MEDIO por el que las Imágenes toman forma?, pregunta que deberá contestarse señalando y analizando los instrumentos "lingüísticos" utilizados para la producción de las misma.
En función de responder la primera de las preguntas, es menester realizar una análisis desde dos enfoques, el de la Tradición y el de la Doxa Académica, debiendo estar alertas sobre el hecho de que aquí se conjugan tanto los estudios desde Sociología de la Ciencia como los realizados desde la Sociología del Conocimiento. Para obtener la segunda respuesta, se cree necesario explorar el camino del análisis del Discurso Científico en términos de la relación entre Analogías, Modelos y Metáforas, tema que nos preocupa en esta comunicación. Respuesta que se transitará, al menos parcialmente, en este trabajo.
Como se ha expuesto en otro lugar, (Scribano 1995, 1996) hay que aceptar que la intuición respecto a que las teorías poseen un rasgo analógico proviene desde muy atrás en la historia de las ideas. Tanto Bacon como Bachelard, solo para dar dos ejemplos opuestos, han tratado de mostrar que la ciencia responde a ciertos "modelos" de cómo hacerse, apelando para su explicación al uso de la metáfora. Sea que las metáforas sean utilizadas solo para evidenciar lo que no podía ser verbalizado enteramente, o bien, en un sentido mas "fuerte", para explicitar que la práctica científica supone el trabajo con elementos analógicos de "primer orden". Estos elementos se ligan a ciertas interpretaciones naturales y naturalizadas que extraen los científicos del conocimiento “natural” en tanto sujetos inmersos en un mundo de la vida; pero también con conocimientos de la "cultura académica" que se incrustan en la realidad de una doxa académica particular. Estas últimas son prácticas científicas que, construyen un horizonte post-perceptivo y pre-reflexivo de “segundo orden”. Por lo que, al parecer, desde el punto de vista del actor, las imágenes del mundo, o están allí desde siempre, o se reconstruyen para dar sentido a la acción azarosa, o se construyen en relación a un contexto temporal y espacial determinado.
La fenomenología y la etnometodología, salen a nuestro encuentro para dar evidencia de este aprendizaje segundo de nuestro sentido del juego: la necesidad de los científicos de jugar con las "analogías a la mano" de las que dispone todo sujeto capaz de nombrar la realidad. Y también se visualiza la capacidad de producir un complejo simbólico que actúe de traductor de una realidad distinta a si mismo. Esta es la génesis de la capacidad, en tanto posibilidad y potencialidad, de usar metáforas que nos hablen de la realidad. Aquí, se manifiesta como límite interpretativo del uso de la potencialidad metafórica del lenguaje la pluralidad de mundos de la vida. De todas maneras, dicha pluralidad, como se bosqueja más adelante, no carece de una vía metodológica para su análisis y resolución. Pero, es necesario enfatizar, que lo que interesa en función de este trabajo, es el “uso” cognitivo del lenguaje metafórico en tanto elemento constituyente del segundo momento de la doble hermenéutica al que se ha aludido. Por lo cual, para comprender mejor este “uso” se cree conveniente observar algunas opiniones sobre esta temática que provienen de distintas tradiciones, para que de este modo se pueda entender mejor lo que se intenta mostrar.
Para Richard Brown, "La cuestión del status cognitivo de las metáforas tiende a aparecer siempre que los filósofos discuten las cuestiones fundamentales de la similitud, la identidad, y la diferencia. Esto no es así solo porque las metáforas son usadas en todo dominio de conocimiento; esto es también, por que las metáforas son nuestros principales instrumentos para integrar diversos fenómenos y puntos de vista sin destruir sus diferencias." (Brown, R. H.1989:82). En la opinión de Brown se puede encontrar uno de los rasgos de la metáfora que es interesante subrayar. Ciertamente es el valor de permitir captar la relación sin destruir las diferencias lo que hace a la metáfora un instrumento cognitivo capaz de presentar eficazmente lo que una forma de conocimiento puede aportar a otra.
En otro sentido, para Mary Hesse es importante entender "que los datos no son "desprendibles" de la teoría, y que sus expresiones están permeadas por categorías teoréticas; que el lenguaje teorético de la ciencia es irreduciblemente metafóri¬co e informalizable; y que la lógica de la ciencia es una circular interpretación, reinterpretación y auto-corrección de los datos en términos de teoría, teoría en términos de datos.”(Hesse, 1980:173). Desde éste análisis, es evidente que la metáfora se presenta como “canal” de interpretación que permite comprender el componente no formalizable que hay en una teoría. Estas dos opiniones, nos lleva a considerar que, como afirma McCloskey; la metáfora, "...es un mapeo estructural de un dominio conceptual hacia otro" (McCloskey 1995:215); por lo que la metáfora se transforma en un plano conocido que se puede utilizar en “mundos” aún no explorados.
Tal como parece, por la presentación de los autores citados, disponemos ya de algunas pistas para reflexio¬nar sobre el uso de la Metáfora, a saber:
a) Es un recurso para nombrar lo diferente por aproxima¬ción, esto implica al menos, 1) la posibilidad que brinda para el traspaso de unidades de senti¬do de un contexto de conocimiento a otro ( tanto que se aplique la noción de campo objetual como de dominio de conocimiento para designar dicho contexto), y 2) la potencialidad de tener a la mano ciertas "reglas de argumentación" de la operación aludida.
b) Es un recurso limitado y no intrusivo, es decir, no presupone el traslado de "leyes" de un dominio a otro.
c) Implica un acto reflexivo, por lo que el análisis de los usos de la metáfora parecería "indicar" un camino de entrada al ámbito de lo que se podría denominar “contexto de descubrimiento” en Ciencias Sociales.
Ahora bien, una vez propuestas a las metáforas como “recurso” cognitivo es necesario establecer, al menos provisionalmente, algunos elementos para su análisis.
Parece conveniente partir de la comprensión que el uso de las analogías como recurso argumentativo se dispone en la teoría social como trama del proceso explicativo que enfrenta toda reflexión sobre la sociedad con cierto grado de pretensión de generalidad. Junto con la metáfora acompaña el modo por el cual la sociedad puede ser captada como objeto de discurso y como sujeto de análisis. Aparece aquí, lo que se afirmara respecto a que la dinamicidad del discurso metafórico proviene, entre otros factores, del rol de la analogía y su "uso" en la elaboración de modelos. El teórico social retoma reflexivamente el momento de doble hermenéutica incito en toda captación de la realidad social y desde las metáforas comúnmente compartidas, en tanto lego y en tanto científico, las vehiculiza como recurso comprensivo. Desde el valor cognitivo de esas metáforas, se puede emprende el camino que liga los diversos niveles del discurso científico en ciencias sociales. Es decir, otros de los roles de las metáforas es el de explicitar, por ejemplo, la relación entre los niveles ontológicos y epistemológicos de las teorías vehiculizando la trama de conexiones que supone la red conceptual y la realidad en ella presupuesta. En esta dirección se hace inteligible como las metáforas organicistas explicitan la relación entre las sociedad concebida como organismo y una postura epistémica de corte positivista, dado que la especificidad epistemológica de la biología se recorta al talle de las características de lo orgánico como ontología.
Por otro lado, cabe enfatizar el desde donde, extrae el teórico social las aludidas metáforas. Como se ha analizado en otra oportunidad, (Scribano 1996) los mecanismos de producción y reproducción de las imágenes del mundo, (por lo tanto también de las metáforas) son las tradiciones (sensu Alexander) y la doxa académica (sensu Bourdieu). Pero, además, si se plantea la cuestión de las fuentes discursivas de las metáforas debemos apelar al conocimiento de la sociedad en tanto lego y en tanto científico que tiene el sujeto que conoce. En el primer caso, las fuentes discursivas son innumerables y deben ser analizadas a la luz del horizonte pre-reflexivo que supone todo mundo de la vida particular. Caso para el cual, se proponen como válidos, al menos provisionalmente, los estudios biográficos e históricos sociales acerca de las condiciones de producción del discurso científico. En el segundo caso, es decir las fuentes "qua científico", se postula como beneficioso llevar la indagación por la siguiente vía: a) es notorio como los teóricos sociales utilizan, casi siempre, como metáforas, parte de las redes teóricas exitosas en otro campo disciplinar (especialmente proveniente de las ciencias naturales), piénsese, por ejemplo, en la utilización que Giddens hace de la física relativista como camino para presentar su teoría sobre el tiempo y el espacio, en la utilización que hace Luhmann de la biología sistémica, (si cabe la expresión) en su concepto de poiesis, etc.. b) Es también importante la utilización de metáforas proveniente de tradiciones o teoría exitosas en el propio campo disciplinar, en este sentido parece interesante recordar el “uso” sociolinguístico que Bourdieu realiza de los mecanismos de explicación de la circulación de los bienes económicos, y c) se presenta con fuerza también, el campo de la cultura, en especial el de la poesía y la pintura, como fuentes que permiten tener a la mano otro tipo de metáforas.
De este modo, se han resumido algunos de lo tópicos centrales de la investigación realizada en torno al lugar de la metáfora, ahora se pasa a sintetizar la postura de McMullin al respecto en el marco de su posición realista. Esperando que, en este análisis se observe, al menos desde el realismo, más nítidamente la relación entre analogía y metáfora, que hasta ahora solo ha sido aludida en este trabajo.
Uno de los caminos que se creen conveniente para pensar la relación entre metáfora y analogía es el recorrido por el realismo. Como es evidente existen muchas formas de realismo, por lo cual, a los fines de esta presentación se ha seleccionado a Ernan McMullin como un autor que si bien, sin duda, esta dentro de un enfoque más general sobre el uso de las metáfora en las teorías científica, aporta elementos muy importantes para el especial punto de vista adoptado aquí. Para que se pueda comprender mejor su aporte es necesario aclarar previamente que:
a) McMullin en una visión contrapuesta tanto al empirismo como al constructivismo entiende que las propiedades que postulan las teorías lo hacen refiriéndose a entidades complejas, que en el contexto de un modelo responden a ciertas estructuras y obedecen a determinados mecanismos que muestran dichos modelos y que podemos razonablemente asociar a la realidad en conexión con la capacidad pasada y futura que las teorías demuestren. Es decir, en relación con teorías exitosas. Cómo se analiza más adelante McMullin propone entender las teorías como redes conceptuales en el contexto del funcionamiento analógico del lenguaje científico rechazando la dicotomía teórico/observacional.
b) Una teoría es exitosa cuando se puede analizar su fertilidad como criterio para valorar su capacidad “explicativa”. McMullin propone entender de dos maneras la noción de fertilidad, a una de ellas le denominará fertilidad epistémica y a otra fertilidad heurística. A la primera, que designa como fertilidad P la asocia a las “evidencias” pasadas de la teoría, a los registros que la teoría ha posibilitado hallar y que el científico “usa”. Este criterio valorativo nos remite a pensar que la estructura postulada por la teoría corresponde razonablemente con lo real. Esta fertilidad es provisoria pero confiable, segura pero abierta, rasgos que según McMullin lo distinguen de la postura empirista. A la segunda, que designa como fertilidad U la pone en relación con el futuro, con la capacidad de la teoría de ser justamente “heurísticamente fértil”. Dicha capacidad se basa en la potencial extensionalidad del modelo que involucra la teoría.
En este marco y desde la perspectiva de este trabajo es interesante comenzar el análisis desde cómo McMullin explicita su modelo de explicación estructural, respecto a esto McMullin a sostenido que, “Cuando las propiedades o comportamiento de una entidad compleja son explicadas haciendo alusión a la estructura de esa entidad, la explicación resultante puede ser llamada estructural. El término “estructura” se refiere aquí a un set constituido por entidades o procesos y a las relaciones entre ellas. Tal explicaciones son causales, dado que la estructura invocada para explicar puede también ser llamada causa del rasgo que esta siendo explicado.”(McMullin 1978 139). En el marco de un análisis de lo que denomina explicaciones mecánicas, nomológicas y dinámicas McMullin asocia a la explicación estructural la noción de explicación hipotética estructural. Lo que es necesario enfatizar aquí es los siguiente : que cuando se puede dar cuenta de las relaciones entre las entidades y procesos que constituyen a su vez una propiedad o un comportamiento complejo de una entidad se esta en presencia de una explicación estructural. Esto conduce a retomar la noción de modelo dado que la fertilidad heurística la implica y parece que el realismo se propone explicando las estructuras elucidar el valor de la teoría, como así también las razones que se tienen para creer que las entidades postuladas por ellas existen. En esta dirección y en conexión con la próxima conceptualización es prudente enfatizar que para nuestro autor los modelos postulan estructuras donde las teorías son el set de afirmaciones por las cuales dichas estructuras se describen provisionalmente; lo que conduce a entender que para McMullin las teorías se derivan de los modelos y no a la inversa, los modelos no son simples interpretaciones de las teorías. En este sentido, también es importante destacar que McMullin pensando en la frecuente confusión respecto a la ideas sobre la relación entre teoría y modelo afirma lo siguiente,“...es cierto, los enunciados de la teoría se aplican correctamente respecto al modelo. Pero esto se suscita porque la teoría se refiere a ese modelo, y no respecto a otra cosa. No puede ser interpretado por medio de alguna otra entidad al menos que algunos de los términos a través de los cuales describe este modelo se anulen.” (McMullin 1967:389 cursiva en el original). De este modo, la noción de modelo adquiere en la visión de McMullin una gran trascendencia.
Esto es tan importante que otras de las definiciones de realismo de McMullin hace referencia a ello directamente, “La versión de realismo que tengo en mente quiere sugerir que en varias partes de la ciencia, como la geología y la biología molecular, tenemos buenas razones para creer que los modelos postulados por nuestras teorías actuales aportan una idea confiable, aunque aún incompleta, acerca de las estructuras del mundo físico.” (McMullin 1982:22).
Esta definición conduce a realizar un análisis de la noción de modelo que McMullin utiliza. Para él, puede utilizarse la noción de modelo en tres sentidos, una que denominaré analógica y que el declara ser la que le parece más interesante, otra que hace referencia a los llamados modelos fenomenológicos usualmente usados por los científicos naturales en conexión a un set de datos interrelacionados que conforman la imagen del fenómeno que se quiere estudiar y finalmente lo que “clásicamente” se define como modelo matemático. En relación al primero McMullin explica que “un modelo puede ser una representación idealizada de una entidad material compleja o proceso, los elementos en la estructura postulada son análogos con las entidades, relaciones o procesos “efectivos” entendidos al menos parcialmente desde ellos”.(McMullin 1981:298). Es evidente que aquí nos encontramos con las nociones de entidad compleja y estructura que se supone en la explicación estructural, pero además se subraya que dichas estructuras son análogas a las postuladas como existentes. En este contexto explicación estructural, fertilidad de las teorías y extensionalidad del lenguaje metafórico se entrelazan para ser los ejes principales de la postura de McMullin. El modelo que esta asociado a una teoría o a un set de teorías de diverso grado de generalidad señala el comportamiento de las estructuras y predice su posibilidad de suceso. Lo primero, opera bajo el supuesto del “juego” metafórico del lenguaje que hace pensar en la posibilidad de extender, las propiedades del modelo a las entidades ; pero esto solo es posible dado que dicha extensionalidad permite también hacer referencia a la fertilidad heurística que en el futuro puede tener el modelo.
McMullin entiende que existen dos significados del término analogía, uno que se orienta a enfatizar la comparación y otro la similitud. En el primer sentido se realiza una comparación entre dos cosas A y B sabiendo que entre ambas existen semejanzas y diferencias, pero usando las semejanzas para conocer de B algo que no se conoce sino como rasgo o propiedad de A. En este sentido McMullin afirma, “la analogía es concebida aquí como un medio de extensión del conocimiento, y es un tipo de metáfora.” (McMullin 1981:297) El segundo sentido del término analogía, (y que él considera “más débil”) se refiere a la relación de similitud entre dos objetos A y B, siendo esta una relación simétrica. Pero para McMullin la importancia de la analogía se extiende más allá de esta diferenciación. Para nuestro autor, existe la posibilidad de establecer analogías formales y materiales, como así también distinguir entre analogías positivas, negativas y neutras; pero lo más importante en el contexto de este trabajo es que para McMullin los “argumentos analógicos” son parte del rol cognitivo de la metáfora y esta última es la que permite observar la fertilidad de los modelos y por ende de las teorías. En una clara contraposición a la distinción teórico/observacional postulada por el empirismo y enfatizando la relación conceptos/teorías/realidad, McMullin afirma lo siguiente: “nuestro único acceso es a través de los conceptos científicos. Dado que este concepto es parte de una red conceptual (la teoría) la cual ella misma es abierta a posteriores cambios y aún (en principio) siempre a una radical reformulación, debe ser considerado como provisional.” (McMullin 1981 :32) Por lo que, la teorías funcionan como una red que, como se afirmara ya, se conectan con los modelos, que funcionan analógicamente, gracias a la aceptación del valor cognitivo de lo metafórico en el lenguaje científico. Desde esta perspectiva se entiende mejor, al menos en una primera aproximación, el interés de este trabajo por enfatizar el rol del uso metafórico del lenguaje en la construcción de teoría dado que McMullin brinda la posibilidad de completar las sugerencias de la investigación a la que se hace mención en la introducción. Sin adquirir, demasiados compromisos ontológicos, (o asumiendo que esto puede ser efectuado sin compromisos substancialistas), la indagación sobre McMullin posibilita conectar metáfora, realidad y entidades teóricas de modo tal que, al menos preliminarmente, se puede entender como las metáforas pueden ser entendidas como recursos para nombrar lo diferente por aproximacción, siendo este un recurso limitado y no intrusivo e implicar un acto reflexivo por parte de los científicos sociales.
Como se puede advertir, la visión de McMullin, más allá que se refiera al ámbito de las Ciencias Naturales, permite aclarar la relación entre analogía y metáfora y muestra algunas pistas, a nuestro juicio acertadas, de cómo se puede analizar dicha relación en la construcción de teoría.
En el marco de nuestra investigación específica, se presenta como oportuno, extraer algunas conclusiones provisionales respecto a la temática aquí abordada, estas son las siguientes:
1) Las Metáforas, en tanto portadoras de "representaciones del mundo" no pueden ser tratadas como verdaderas o falsas, pero: a) PUEDEN SER tratadas como ADECUADAS O NO a los propósitos interpretativos; b) PUEDEN SER re-interpretadas como co-textos del discurso científico, y por lo tanto pasibles de tratamiento semiótico.
2) Un análisis de las Metáforas en los sentidos arriba expuesto trae aparejado las siguientes ventajas mínimas: a) Permite discutir los relatos que están implicados en el lenguaje metafórico sin necesidad de caer en el relativismo; b) Permite re-pensar los momentos de creatividad de la tarea científica sin caer en el "esteticismo".
De este modo, se cree que, al menos desde una de las vías de análisis posible, se ha mostrado la importancia que tiene el entender que, la dinamicidad del discurso metafórico proviene, entre otros factores, del rol de la analogía y su "uso" en la elaboración de modelos que anidan en las imágenes del mundo que suponen las teorías.
Referencias
BROWN, R. H. (1989 ) Social Science as Civic Discourse. University Chicago Press. Chicago.
HESSE, M. (1980) Revolution and Reconstructions in the Philosophy of Science. Harvester. Brighton.
MCCLOSKEY, D. (1995) “Metaphors Economists” en Social Research, Vol.62, N 2 (Summer)
MCMULLIN, E. (1982) “Values in Science” PSA Volume 2, 3-27
________(1981) “Medalist´s Adress: The Motive for Metaphor” en Infinity Proceedings of the American Catholic Philosophical Association. Dahlstrom, D., Ozar, D. and Sweeney, L. Eds 27-39.
________(1978) “Structural Explanation” American Philosophical Quarterly Vol. 15, Numer 2 April
________(1976) “The Fertility of Theory and the Unit for Appraisal in Science” en Essays in Memory of Irme Lakatos. Cohen, R.S. Ed. 395-432
________(1976) “What do Physical Models Tell Us? En Logic, methodology and Philosphy of Science III. Proceedings of 3ª International Congress for Logic, Methodology and Philosophy of Science. Edited by Van Rostselar, B. and Staal, F. 385-396.
SCRIBANO (1995) Post-empirismo y rol normativo de la Filosofía de las Ciencias Sociales. en Red de Filosofía y Teoría Social. Scribano, A, (comp.) UNCa. pp. 231-252
________(1996) Ontología e Imagen del Mundo: Algunas Hipótesis para su interpretación. Segundo Encuentro Red de Filosofía y Teoría Social. Adrián Scribano (comp.). Centro Editor de la Secretaría de Ciencia y Tecnología de la Universidad Nacional de Catamarca. Pp. 209-227.
________(1997) El Problema de la Acumulación de Conocimiento en las Ciencias Sociales. Estudios Sociológicos Vol. XV, Num, 45, Septiembre-Diciembre. 1997.Pp 857-869 Colegio de México. México, D.F.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
A lógica asilar acabou? Uma crítica da crítica à assistência psiquiátrica
Publico a introdução do meu artigo "A lógica asilar acabou? Uma crítica da crítica à assistência psiquiátrica", que está no livro organizado pela prestigiosa professora Eliane Maria Monteiro da Fonte e pelo professor Breno Augusto Souto Maior Fontes: "Desinstitucionalização, redes sociais e saúde mental: análise de experiências da reforma psiquiátrica em Angola, Brasil e Portugal" (Editora UFPE).
Artur Perrusi
Introdução: respondendo a uma pergunta
Sem maiores delongas, evitando expectativas e tergiversações, responderemos logo à pergunta do título: não, a lógica asilar não acabou. Mas, o que significa, de fato, dizer que a lógica asilar não acabou? Significa dizer que o asilo não acabou? Não, já que a noção de “lógica asilar”, como tal, não se esgota no seu contexto empírico de origem, o asilo; na verdade, ultrapassa-o, podendo ser percebida não apenas como “lógica”, mas também como “prática” noutras estruturas, como o hospital psiquiátrico e até em serviços extra-hospitalares, por exemplo.
No fundo, como veremos mais adiante, a resposta a tais perguntas depende da postura epistemológica diante do saber psiquiátrico. O alcance da noção de “lógica asilar” é diferente segundo o tipo de crítica que se faz ao saber psiquiátrico: uma crítica total, uma autocrítica ou uma revalidação do saber psiquiátrico.
a) A primeira crítica nega a validade do saber psiquiátrico como saber científico e médico – uma das suas conseqüências seria a negação da própria noção de “doença mental” [1];
b) a segunda elenca os diversos erros históricos do saber psiquiátrico, re-configurando seu lugar na medicina – a noção de doença permanece, mas de forma secundária, e a psicopatologia passa a se nutrir, também, dos aportes das ciências humanas;
c) a terceira reafirma o saber psiquiátrico como saber médico e profissional – a noção de doença permanece, sendo naturalizada pelos aportes provenientes da neuropsiquiatria.
As três formas de crítica são diferentes e têm posturas antagônicas quanto à psiquiatria e à natureza da “doença mental”. Entre as três posições, inclusive, existe uma série de posturas intermediárias, tanto em relação às instituições psiquiátricas, quanto às definições sobre a loucura. As posições a) e b) fazem parte do que chamamos de teoria crítica da psiquiatria, enquanto a posição c), do discurso profissional da medicina psiquiátrica. Situando o alcance da noção de lógica asilar a partir de tais posturas, podemos percebê-la em dois extremos: num sentido fraco, a lógica asilar identificar-se-ia à instituição asilar ou, como já dissemos, ao seu referente empírico de origem, o asilo -- assim, acabando o asilo, conseqüentemente, ela desapareceria de pronto. Num sentido forte, a lógica asilar confundir-se-ia com todo processo institucional na psiquiatria, independentemente do fim do asilo. A psiquiatria, nesse caso, seria um mero dispositivo de poder, e o fim da lógica asilar identificar-se-ia com o próprio fim da psiquiatria.
Tais posições delimitam o campo de tensão que perpassa o saber psiquiátrico, principalmente no que se refere ao seu objeto profissional: a “doença mental”. Afinal, seria em torno do seu objeto profissional que gira o debate sobre a validade do saber psiquiátrico. Porém, o que torna tão especial a discussão sobre a natureza da “doença mental”? Para entender melhor essa questão, inferimos as seguintes hipóteses sobre as tensões que perpassam o saber psiquiátrico quanto à “doença mental” (DM) e, de certa maneira, o campo profissional da saúde mental:
- a "doença mental" é um fenômeno sui generis na medicina. Ela jamais conseguiu ser enquadrada pelo paradigma biomédico da medicina. Sendo o objeto profissional da psiquiatria, sua instabilidade, enquanto representação médica de doença, condiciona diversas dificuldades no campo do saber psiquiátrico: falta de consenso etiológico, confronto de diversos paradigmas de doença, desvalorização do conhecimento psiquiátrico. A psiquiatria, por causa da sua incapacidade de enquadrar cientificamente a DM, possui uma fragilidade disciplinar no campo da formação profissional da medicina. Tais problemas estabelecem diversas tensões na identidade profissional dos profissionais que atuam no campo da saúde mental;
- a saúde mental possui um aparato institucional (hospital psiquiátrico, rede extra-hospitalar...) diferente e separado do campo organizativo da saúde. Provavelmente, tal diferença e separação tenham, entre outros fatores, uma relação com a percepção social da “doença mental”. Independentemente disso, o fato é que a organização institucional da saúde mental condiciona o modo como se realiza o trabalho profissional ― a psiquiatria é, por exemplo, praticamente uma profissão dentro da profissão médica, tendo uma grande importância institucional no campo da medicina;
- por causa da condição sui generis da “doença mental” e do singular aparato institucional da saúde mental, a prática profissional, no campo da saúde mental, possui características diferentes das práticas profissionais dos outros profissionais da saúde.
- Tais situações foram sempre tensas e importantes para a legitimação da psiquiatria. O reconhecimento científico do saber médico teve um papel capital na legitimação social da medicina, abjurando outras formas de conhecimento, de tratamento e cura do campo profissional e se tornando o único detentor de uma competência reconhecida para o tratamento das doenças (Freidson, 1984; Foucault, 1987). Tal processo de legitimação social, através de uma forma de organização profissional, baseou-se evidentemente numa luta e no uso de poder, mas estava conectado aos imperativos da reprodução e manutenção de um saber.
- A psiquiatria é uma das poucas disciplinas médicas, senão a única, que nunca teve um consenso etiológico e nosológico [2] estável, isto é, uma representação única e estável guiando a conduta dos psiquiatras, sempre sofrendo assim uma inadequação permanente com a representação biomédica de doença. Num certo sentido, ela sempre foi "fraca" no aparato de formação médica e na luta pelo seu reconhecimento disciplinar dentro da própria medicina, conseguindo tardiamente e de forma mitigada diferenciar-se da neurologia, e "forte" no campo institucional, com seus aparelhos de tratamento especiais, separados do campo da saúde em geral. Não conseguindo, do ponto de vista disciplinar, assegurar um consenso, o saber psiquiátrico fica mais "frágil" diante das interpelações de outras esferas de saber produtoras de representações sobre a “doença mental”, embora compense essa situação com seu forte aparato institucional. Por isso, a dificuldade em enquadrar de forma normativa a “doença mental”, como um objeto profissional da psiquiatria e da saúde mental como um todo. Não causa surpresa que tal enquadramento tenha sido interpretado, por diversos autores [3], muito mais como uma questão de poder do que de saber. Assim, a transformação da “doença mental” num objeto profissional da psiquiatria envolve, também, um conflito político com outras representações de “doença mental”, disseminadas de forma difusa em vários segmentos sociais, seja incorporando-as, seja eliminando-as ou diminuindo seu alcance cognitivo (Perrusi, 2007). É um embate importante, pois envolve a preponderância de quem pode classificar uma categoria social tão vital, como a “doença mental”. Dessa forma, é a disputa por um mandato social que permite a um grupo social determinar, de forma exclusiva, categorizações sobre um fenômeno social. Ao transformar a “doença mental” em objeto profissional, logo, numa representação profissional, a “doença mental” torna-se um objeto específico, pois marcada pelo grupo profissional. E seria através dessa especificidade, enquanto objetos profissionais, que são valorizados socialmente.
- Assim, como objeto profissional, a “doença mental” é de difícil conformação e, inclusive, seria fonte de representações exatamente por ser polimorfa e de difícil apreensão. Como tal, está numa situação diferente da doença dita somática, cuja normalização é mais profunda e antiga, sendo um objeto profissional de muito mais fácil apreensão e controle. Devido ao seu caráter um tanto inapreensível, a necessidade de controle do seu objeto profissional, para os psiquiatras, tornou-se uma questão de identidade e de coesão social (coesão de grupo). Sua apropriação, enquanto objeto, constitui um desafio que coloca em xeque a legitimidade profissional da psiquiatria. Ao contrário dos objetos profissionais da profissão médica, a “doença mental” não possui um consenso etiológico, permitindo assim a concorrência de diversas representações psiquiátricas do objeto profissional, criando uma profusão de nosologias e práticas terapêuticas. Sem consenso, os psiquiatras e os profissionais da saúde mental não estariam, como os neurologistas, por exemplo, submetidos a uma instância de regulação que definiria um sistema ortodoxo (conjunto de regras e práticas relacionadas, no caso da medicina, ao diagnóstico e, principalmente, ao tratamento) de controle do objeto profissional. Além do mais, mesmo que possamos admitir que exista, de fato, um sistema ortodoxo na psiquiatria, ele não seria consensual, estando sujeito a revisões constantes e sendo fonte de eternos conflitos entre os psiquiatras e os profissionais da saúde mental.
- Com um sistema ortodoxo de fraco enquadramento normativo, a delimitação de fronteiras entre saberes e representações é fundamental na construção do campo da saúde mental. A questão é importante, pois a psiquiatria lutou sempre pela transformação da "loucura" em "doença mental", portanto, pela ratificação da “doença mental” como seu objeto de conhecimento e profissional. A luta foi e é também por um monopólio discursivo — a logorréia da psiquiatria sobre o seu objeto corresponde ao silêncio das outras produções discursivas sobre o fenômeno mais geral da loucura.
Enfim, tais hipóteses serão o pano de fundo de nossa análise. Posto assim, como nosso objeto de estudo é outro, voltemos às posições críticas assinaladas acima. Como tais, já que demarcam o alcance da noção de lógica asilar, têm relações com o debate sobre a instituição psiquiátrica, isto é, com os diversos modelos de assistência psiquiátrica. Por isso, ao analisar as conseqüências da Reforma Psiquiátrica, nosso intuito não será fazer uma análise histórica da psiquiatria brasileira. Preferimos, na realidade, uma discussão sincrônica e conceitual, tentando perceber quais são os fatores estruturantes da formação assistencial psiquiátrica brasileira. Mesmo assim, achamos necessário, ainda que de forma esquemática, citar alguns dados que são sintomas da longa transição da assistência psiquiátrica brasileira: do modelo asilar original, passando atualmente por uma fase ainda hospitalocêntrica, para um futuro, quiçá, modelo psicossocial (Costa-Rosa, 2000), isto é, completamente extra-hospitalar. Centraremos nossa atenção no período recente de implantação da Reforma Psiquiátrica:
- Desde 1997 até 2004, a proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos Serviços Extra-Hospitalares mudou consideravelmente. Há uma clara tendência, embora possa haver retrocessos futuros, de aumento nos gastos extra-hospitalares em detrimento dos hospitalares:
GASTOS:
Gastos Hospitalares em Saúde Mental
1997: 93,14%
2001: 79,54%
2004: 63,84%
Gastos Extra-hospitalares em Saúde Mental
1997: 6,86%
2001: 20,46%
2004: 36,16%
Fonte: Ministério da Saúde (Brasil, 2005)
- Em 1996, havia 72514 leitos psiquiátricos no Brasil; em 2005, 42076, com 228 hospitais psiquiátricos. *
- Em 2007, já existiam 918 CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) em funcionamento, 120 deles voltados, exclusivamente, ao atendimento de dependentes de álcool e drogas. Havia ainda 475 serviços residenciais terapêuticos, 350 ambulatórios, 36 Centros de Convivência e Cultura (Brasil, 2009). Tais formas de assistência são organizações que rompem com o modelo hospitalocêntrico, embora possam e, na verdade, estejam subordinados, na atual conjuntura, ao modelo hospitalar.
- Desde 2003, existe o Programa de Volta para Casa e Inclusão Social pelo Trabalho, que tem como objetivo “contribuir efetivamente para o processo de inserção social das pessoas com longa história de internações em hospitais psiquiátricos, através do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação, no valor de R$240,00 (duzentos e quarenta reais, aproximadamente 110 dólares) aos seus beneficiários. Para receber o auxílio-reabilitação do Programa De Volta para Casa, a pessoa deve ser egressa de Hospital Psiquiátrico ou de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, e ter indicação para inclusão em programa municipal de reintegração social” (Brasil, 2005: 17)
Os dados ainda mostram uma assistência psiquiátrica centrada no hospital psiquiátrico, embora comprovem, também, uma substituição paulatina da estrutura hospitalar por uma extra-hospitalar. Os dados acima não revelam, porém, as desigualdades regionais na inserção da Reforma Psiquiátrica nos Estados (ver Brasil, 2005); assim, há regiões bem mais hospitalocêntricas do que outras, como também regiões onde a Reforma está bem sedimentada do ponto de vista institucional. De todo modo, podemos dizer que a assistência psiquiátrica está numa situação de transição, com uma tendência para a perda de hegemonia institucional do hospital psiquiátrico.
Mesmo se existe, de fato, essa tendência, lembramos que está sendo extremamente difícil, ainda, colocar em prática a lógica institucional do SUS, principalmente na área da saúde mental, pois a predominância do setor privado inverte a lógica proposta: o privado complementando o público – o que ocorre é o contrário: 58% dos leitos psiquiátricos eram privados até 2005 (Brasil, 2005). A saúde mental brasileira é estruturada economicamente de tal forma que o setor privado, inclusive como modo de sobreviver financeiramente, precisa sufocar o desenvolvimento do setor público. A manutenção do hospitalocentrismo, além das controvérsias ideológicas, possui um fundamento econômico e privado: dado o desenvolvimento das instituições psiquiátricas, calcadas no setor privado, o hospital psiquiátrico é a melhor forma de sustentação econômica, já que a rentabilidade privada é proveniente da exploração da internação, logo, do leito ocupado. O investimento privado em estruturas extra-hospitalares não tem contrapartidas financeiras, isto é, por enquanto, não é rentável. Juntando isso ao fato de que o serviço público em saúde mental jamais escapou completamente da lógica hospitalocêntrica, até mesmo por causa da falta de recurso para investir em estruturas extra-hospitalares, pode-se entender por que o hospitalocentrismo hegemoniza a assistência psiquiátrica brasileira.
Atualmente, a estrutura do sistema psiquiátrico brasileiro organiza-se da seguinte forma:
- hospital psiquiátrico público;
- clínica psiquiátrica privada (sua atividade está regida por contrato com o SUS);
- hospital universitário (mais de um terço dispõe de um serviço psiquiátrico geral. A formação do psiquiatra brasileiro é realizada nessas instituições, onde domina o paradigma biomédico, inclusive no ensino da psiquiatria);
- serviço público extra-hospitalar (ambulatório, hospital-dia,CAPS, residência terapêutica...)
[1] Aspeamos a noção "doença mental" (DM), pois o que existe de fato é o doente ou a pessoa com algum tipo grave de sofrimento psíquico. Colocar o problema desse modo não é negar a sua pertinência no campo da psicopatologia, mas sim mostrar que a “doença mental" pode ser vista, também, como uma categoria de valor e como "objeto profissional" da psiquiatria.
[2] Etiológico, porque a psiquiatria nunca teve um consenso a respeito das causas da doença mental; nosológico, porque nunca teve um consenso a respeito de quais doenças trata a psiquiatria.
[3] Foucault (1978, 1979, 1984), Castels (1976, 1981), Basaglia (1976), Berlinguer (1985), entre outros.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010
O Politicamente Correto e o Comunismo
Cynthia Hamlin
Que existe uma relação entre o politicamente correto (PC) e um certo tipo de construtivismo social sempre me pareceu evidente: se se parte do princípio de que as palavras não apenas nomeiam, mas de alguma forma constituem os objetos a que se referem, parece óbvio que uma das maneiras de se mudar a ordem social é alterando o significado das palavras (embora já não seja tão óbvio que isso possa ser feito apenas mediante o uso de palavras diferentes, ainda que menos ideologicamente carregadas, como querem alguns defensores do PC).
Também nunca tive dúvidas acerca das raízes do politicamente correto na academia norte-americana, especialmente por meio daquelas disciplinas de alguma forma relacionadas aos estudos culturais, como é o caso dos amorfos “estudos de raça” e de gênero, cuja preocupação principal (e legítima) consiste na erradicação do racismo e do sexismo. Agora, a relação entre politicamente correto e comunismo, essa eu confesso que me escapou completamente. Pois aqui vai um vídeo do ultraconservador Bill Lindt, explicando tudo direitinho.
Sua tese central, exposta no início do vídeo, é a de que “o politicamente correto não é nada mais do que ideologia marxista – o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais”. E essa “tradução” parece seguir uma linha bastante clara para Lindt: de marxistas ocidentais como Gramsci e Lukács, passando pela Escola de Frankfurt (aparentemente os grades vilões do PC, em particular Marcuse), pela Nova Esquerda e desembocando no feminismo e nos estudos culturais.
De fato, é possível pensar acerca de todas essas tradições a partir de um denominador comum, amplamente apropriado por Marx: a negação da famosa separação operada por David Hume entre fato e valor e que é comum a todas as teorias críticas, entendidas como aquelas que se propõem a alterar a realidade que estudam, assim como suas próprias práticas teóricas e metodológicas. Também é possível pensar no desenvolvimento do marxismo ocidental em termos de uma ênfase progressiva na dimensão humanista do pensamento de Marx (talvez à exceção de Althusser) e, portanto, de elementos culturais.
O que Lindt parece “esquecer” é que, especialmente nos EUA, a tradição liberal teve uma influência muito mais marcante nisso que estou chamando genericamente de “estudos culturais” do que o marxismo. Basta pensarmos, por exemplo, na força relativa do feminismo liberal em relação ao feminismo marxista naquele país. Além disso, parece-lhe “escapar” que mesmo nas tradições de raízes claramente marxistas, como é o caso da Escola de Frankfurt, o comunismo, especialmente em sua forma histórica, o Socialismo Soviético, era encarado com ceticismo, o que lhes rendeu acusações sérias em relação a uma ausência de engajamento político – os “residentes do Grande Hotel do Abismo”, nas palavras de Lukács, que se limitavam a olhar para o abismo de dentro de seus quartos confortáveis, ocasionalmente atirando lá uma peça de mobília.
Parece-me, entretanto, que o mais complicado na “análise” de Lindt não é o que ele não sabe, mas a má-fé absoluta com a qual ele interpreta o trabalho de especialistas como Martin Jay (aliás, o que diabos o Martin Jay está fazendo em um vídeo como esse?). Algumas passagens saltam aos olhos.
“O termo teoria crítica foi buscado como um jogo de palavras. Fica-se tentado a perguntar o que é a teoria crítica. A resposta é: a teoria é “criticar”. E, mais adiante, recorre a Jay para fundamentar sua interpretação ao afirmar que “a Escola de Frankfurt teve o cuidado de não definir para quê servia – apenas contra o quê servia. Mais uma vez, Martin Jay, o historiador semi-oficial da Escola de Frankfurt”:
Mais esquisita ainda é a relação que Lindt estabelece entre a Dialética do Esclarecimento e o movimento ambientalista: “Os teóricos críticos chegaram mesmo a integrar a causa PC mais em moda, o ambientalismo, em seu marxismo cultural por meio da Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer”. E, novamente, recorre a Jay:
O estabelecimento de uma relação tão direta entre as preocupações de Adorno e Horkheimer com a racionalidade instrumental presente na técnica e o movimento ambientalista me parece tão legítimo quanto afirmar Heidegger como precursor do veganismo (exceto, talvez, pela dificuldade de justificar o gosto deste pela carne de mulheres judias).
A mesma má-fé parece estar em jogo quando recorre a Jay, em sua explicação acerca do enfraquecimento da classe operária como agente histórico hegemônico, a fim de afirmar “o papel da Escola de Frankfurt na criação [dos] grupos de vítimas que constituem a coalizão PC”:
Não resta dúvidas de que o politicamente correto é por vezes não apenas ingênuo, mas totalitário em suas críticas. O caráter inócuo de formulações como “verticalmente prejudicado/a” em substituição a “baixo/a” parece autoevidente. No entanto, ataques por parte de conservadores como Lindt, que se valem da acusação de fundamentalismo e da defesa de liberdade de expressão como pilar da democracia norte-americana, parecem esquecer que o uso de uma linguagem ofensiva pode, sim, funcionar como elemento de exclusão social. É por essa razão que não apenas os defensores de uma linguagem politicamente correta, mas também aqueles que advogam em favor da reapropriação irônica de termos originalmente derrogatórios (como o uso do termo “queer” pelo movimento gay dos EUA), enfatizam o uso da linguagem como forma de assujeitamento. E como antídoto para os exageros do PC, parece-me apropriado lembrar a ironia que estava na base do surgimento do termo “politicamente correto”, conforme mencionado por David Macey em seu Dictionary of Critical Theory (Londres: Penguin, 2000):
E, no caso brasileiro, a defesa mais interessante que vi recentemente da importância de uma linguagem politicamente correta foi feita por Antônio Prata, citada no blog Na Prática, a Teoria é Outra:
Disse tudo.
Que existe uma relação entre o politicamente correto (PC) e um certo tipo de construtivismo social sempre me pareceu evidente: se se parte do princípio de que as palavras não apenas nomeiam, mas de alguma forma constituem os objetos a que se referem, parece óbvio que uma das maneiras de se mudar a ordem social é alterando o significado das palavras (embora já não seja tão óbvio que isso possa ser feito apenas mediante o uso de palavras diferentes, ainda que menos ideologicamente carregadas, como querem alguns defensores do PC).
Também nunca tive dúvidas acerca das raízes do politicamente correto na academia norte-americana, especialmente por meio daquelas disciplinas de alguma forma relacionadas aos estudos culturais, como é o caso dos amorfos “estudos de raça” e de gênero, cuja preocupação principal (e legítima) consiste na erradicação do racismo e do sexismo. Agora, a relação entre politicamente correto e comunismo, essa eu confesso que me escapou completamente. Pois aqui vai um vídeo do ultraconservador Bill Lindt, explicando tudo direitinho.
Sua tese central, exposta no início do vídeo, é a de que “o politicamente correto não é nada mais do que ideologia marxista – o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais”. E essa “tradução” parece seguir uma linha bastante clara para Lindt: de marxistas ocidentais como Gramsci e Lukács, passando pela Escola de Frankfurt (aparentemente os grades vilões do PC, em particular Marcuse), pela Nova Esquerda e desembocando no feminismo e nos estudos culturais.
De fato, é possível pensar acerca de todas essas tradições a partir de um denominador comum, amplamente apropriado por Marx: a negação da famosa separação operada por David Hume entre fato e valor e que é comum a todas as teorias críticas, entendidas como aquelas que se propõem a alterar a realidade que estudam, assim como suas próprias práticas teóricas e metodológicas. Também é possível pensar no desenvolvimento do marxismo ocidental em termos de uma ênfase progressiva na dimensão humanista do pensamento de Marx (talvez à exceção de Althusser) e, portanto, de elementos culturais.
O que Lindt parece “esquecer” é que, especialmente nos EUA, a tradição liberal teve uma influência muito mais marcante nisso que estou chamando genericamente de “estudos culturais” do que o marxismo. Basta pensarmos, por exemplo, na força relativa do feminismo liberal em relação ao feminismo marxista naquele país. Além disso, parece-lhe “escapar” que mesmo nas tradições de raízes claramente marxistas, como é o caso da Escola de Frankfurt, o comunismo, especialmente em sua forma histórica, o Socialismo Soviético, era encarado com ceticismo, o que lhes rendeu acusações sérias em relação a uma ausência de engajamento político – os “residentes do Grande Hotel do Abismo”, nas palavras de Lukács, que se limitavam a olhar para o abismo de dentro de seus quartos confortáveis, ocasionalmente atirando lá uma peça de mobília.
Parece-me, entretanto, que o mais complicado na “análise” de Lindt não é o que ele não sabe, mas a má-fé absoluta com a qual ele interpreta o trabalho de especialistas como Martin Jay (aliás, o que diabos o Martin Jay está fazendo em um vídeo como esse?). Algumas passagens saltam aos olhos.
“O termo teoria crítica foi buscado como um jogo de palavras. Fica-se tentado a perguntar o que é a teoria crítica. A resposta é: a teoria é “criticar”. E, mais adiante, recorre a Jay para fundamentar sua interpretação ao afirmar que “a Escola de Frankfurt teve o cuidado de não definir para quê servia – apenas contra o quê servia. Mais uma vez, Martin Jay, o historiador semi-oficial da Escola de Frankfurt”:
A própria teoria critica relutava em se colocar em uma camisa de força de sistematização e desafiava sua redução a uma definição única.
Mais esquisita ainda é a relação que Lindt estabelece entre a Dialética do Esclarecimento e o movimento ambientalista: “Os teóricos críticos chegaram mesmo a integrar a causa PC mais em moda, o ambientalismo, em seu marxismo cultural por meio da Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer”. E, novamente, recorre a Jay:
Eles [os teóricos da teoria crítica] estavam interessados no que chamavam de dominação da natureza. A Dialética do Esclarecimento deslocou a ênfase da dominação econômica para a dominação do mundo natural pela espécie [humana], inclusive daquilo que poderia ser visto como uma natureza interna, com base na compreensão psicanalítica da repressão. Então, eles estavam muito interessados em reconhecer que precisamos de uma relação mais cuidadosa e, digamos, equilibrada, entre a humanidade e o mundo natural.
O estabelecimento de uma relação tão direta entre as preocupações de Adorno e Horkheimer com a racionalidade instrumental presente na técnica e o movimento ambientalista me parece tão legítimo quanto afirmar Heidegger como precursor do veganismo (exceto, talvez, pela dificuldade de justificar o gosto deste pela carne de mulheres judias).
A mesma má-fé parece estar em jogo quando recorre a Jay, em sua explicação acerca do enfraquecimento da classe operária como agente histórico hegemônico, a fim de afirmar “o papel da Escola de Frankfurt na criação [dos] grupos de vítimas que constituem a coalizão PC”:
... a classe trabalhadora já não poderia desempenhar o papel hegemônico que os marxistas tradicionais esperavam dela e, assim, eles esperavam que os estudantes, os negros, as mulheres e outros grupos minoritários estivessem aptos a se unir.
Não resta dúvidas de que o politicamente correto é por vezes não apenas ingênuo, mas totalitário em suas críticas. O caráter inócuo de formulações como “verticalmente prejudicado/a” em substituição a “baixo/a” parece autoevidente. No entanto, ataques por parte de conservadores como Lindt, que se valem da acusação de fundamentalismo e da defesa de liberdade de expressão como pilar da democracia norte-americana, parecem esquecer que o uso de uma linguagem ofensiva pode, sim, funcionar como elemento de exclusão social. É por essa razão que não apenas os defensores de uma linguagem politicamente correta, mas também aqueles que advogam em favor da reapropriação irônica de termos originalmente derrogatórios (como o uso do termo “queer” pelo movimento gay dos EUA), enfatizam o uso da linguagem como forma de assujeitamento. E como antídoto para os exageros do PC, parece-me apropriado lembrar a ironia que estava na base do surgimento do termo “politicamente correto”, conforme mencionado por David Macey em seu Dictionary of Critical Theory (Londres: Penguin, 2000):
Embora seja parte do senso-comum afirmar que a demanda por correção política indica uma aborrecida ausência de qualquer senso de humor, existem evidências de que o inverso seja verdadeiro. A expressão [politicamente correto], e a correlata “ideologicamente correto”, podem ter se originado no feminismo dos anos de 1970, quando broches dizendo “Eu sou uma feminista sem senso-de-humor” gozaram de alguma popularidade e podiam ser usados em um sentido auto-derrogatório. Um cartão postal amplamente circulado naquela época reproduzia uma fotomontagem de Ray Lowry no qual uma mulher diz para um homem: “Eu poderia tê-la tornado tão feliz, Beryl...”. Uma amiga responde, no lugar de Beryl: “Ela não quer ser feliz, Graham. Ela quer ser ideologicamente correta...”. Beryl acrescenta “Isso mesmo!”.
E, no caso brasileiro, a defesa mais interessante que vi recentemente da importância de uma linguagem politicamente correta foi feita por Antônio Prata, citada no blog Na Prática, a Teoria é Outra:
Imagine uma escola religiosa na Dinamarca. Flores nas janelas, cheiro de lavanda no ar, vinte alunos loiros, com cristo no coração e leite A correndo pelas veias, respondendo a uma chamada oral sobre o Pequeno Príncipe. Ali, o garoto que se levantar e cuspir no chão será ousado. Mostrará que a despeito do aroma de lavanda, o ser humano é áspero, é contraditório, é violento. Quando a realidade fica muito Saint-Exupéry, é importante que surjam uns Sex Pistols para equilibrar. Agora, cuspir no chão de uma escola municipal em São Paulo, diante da professora assustada que não consegue fazer com que os alunos, analfabetos aos dez anos, fiquem quietos, não tem nenhuma valentia. Quando a realidade da polis é o caos, o som e a fúria são a correção política.
O sarcasmo dirigido aos intelectuais de esquerda seria audaz e iconoclasta caso o Brasil tivesse vivido de 37 a 45 e de 64 a 85 sob as ditaduras de Antonio Candido e Paulo Freire. Se antropólogos de pochete e índios com camisa do Flamengo estivessem ameaçando o agronegócio, devastando lavouras de soja para plantar urucum e cabaça para fazer berimbau. Se durante o carnaval as feministas pusessem no lugar da Globeleza drops de filosofia com Marilena Chauí e Susan Sontag. Se a guitarra elétrica fosse banida da MPB pela banda de pífanos de Caruaru. Do jeito que as coisas são, contudo, o neoconservadorismo faz sucesso não porque choca a burguesia, ao cuspir no solo de onde brotam seus nobres valores, mas porque assina embaixo da barbárie vigente – e ri dela.
Disse tudo.
segunda-feira, 19 de abril de 2010
o olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 3
Cynthia Hamlin
Um dos problemas com a psicologia de James diz respeito ao seu individualismo (Lewis & Smith, 1981), o que impossibilita uma concepção de sujeito que transcenda o problema subjetivismo-objetivismo. De fato, o sujeito de James é hipossocializado e acredito que sua concepção de mente como uma esfera privada que se baseia na noção de “isolamento absoluto” da consciência e do eu é tão solipsista que tornaria impossível mesmo uma disciplina como a psicologia, dado que nenhuma comunicação seria possível. O problema que o individualismo representa para uma abordagem realista é que ela nega os poderes causais tanto das estruturas sociais quanto da cultura, tratando-as como epifenômenos e levando a um tipo de reducionismo que Archer chama de “conflação de baixo para cima” (Archer, 1995; 2000).
Peirce tinha aversão suficiente ao solipsismo para afirmar que tinha vontade de substituir o nome de sua filosofia por pragmaticismo, um nome tão feio que ninguém (leia-se, James) ia querer se apropriar dele (Lewis & Smith, 1981). (Fico imaginando o que ele teria pensado se tivesse lido Rorty...). A versão de Peirce do pragmatismo, a semiótica, enfatiza a realidade (objetiva) dos signos, que são, por este motivo, essencialmente públicos ou coletivos. Isso significa dizer que o pensamento, que é nada mais do que um conjunto articulado de signos, é algo privado, mas faz uso de meios públicos. Isso faz toda diferença, pois pressupõe a socialização do sujeito, admitindo a influência dos fatores estruturais e culturais.
Uma das características da filosofia de Peirce é que ele não parte dos problemas “tradicionais”, epistemológicos, da filosofia moderna (“como conhecer isso?”), mas retoma o debate medieval, grandemente apoiado nos clássicos gregos, que foca a questão ontológica realismo/nominalismo (“o que é isso?”). Não é de surpreender, portanto, que, de acordo com Archer (2003), ele tenha sido o primeiro filósofo ocidental a retomar os insights da filosofia clássica acerca da “fala silenciosa”, transformando-os em uma teoria da conversação interior. Aliás, se me permitem um parêntesis, talvez à exceção de Dewey, os pragmatistas tinham uma queda por práticas e conhecimentos “não-modernos”: o conceito de fluxo da consciência de James apóia-se fortemente em práticas budistas e o moço era chegado em formas não-ortodoxas de expansão da consciência a fim de compreender o funcionamento da mente humana, como o uso de beladona e de óxido nitroso (gás do riso). (Seria James um tanto bicho-grilo ou isso seria uma forma de pós-colonialismo avant la lettre?).
Voltando a Peirce, a ideia da “fala silenciosa” é tomada de Platão e, juntamente com sua noção de que todo pensamento é um signo, isso tem conseqüências importantes. Em suas palavras:
O pensamento, afirma Platão, é a fala silenciosa da alma consigo mesma. [...] Da proposição que todo pensamento é um signo, segue que todo pensamento deve se referir a um outro pensamento, deve determinar um outro, dado que essa é a essência do signo. (Peirce apud Short, 2007:34).
Esta última frase introduz a questão da sequencialidade do pensamento e, assim como o dialogo, ele envolve uma alternância entre as falas e implica numa “escuta”: “dado que a alternância é intrínseca à conversação, dado que falar e responder são sequenciais e não simultâneos, o problema intratável de se ter que se postular uma consciência dividida não se coloca” (Archer, 2003: 66). A alternância, por seu turno, implica na capacidade do sujeito de se projetar, por assim dizer, no tempo, o que leva Peirce a conceber o pensamento como um dialogo interior entre diferentes “fases” do ego. Essa diferenciação do ego em fases - na verdade uma distinção meramente analítica que não comporta reificação (o self é contínuo, constituindo uma unidade, da mesma forma que o ego freudiano ou o self de Mead) - baseia-se em duas proposições: a primeira é que um self pré-existente necessariamente antecede as atividades dialógicas que o transformam; a segunda, que o self elaborado (modificado) necessariamente se sucede àquelas atividades (Ibid. 71).
Na linguagem da semiótica, essas “fases” são definidas em termos de um esquema tripartite que envolve um “objeto” (ou um referente), um “signo” (que representa o objeto em termos de algo diferente) e um “intérprete” (aquele sobre o qual um efeito é exercido). Archer, embora reconheça que Peirce nunca utilizou esses termos, traduz o esquema em termos de um “Mim” (objeto), o “Eu” presente (signo) e um “Você” futuro como um intérprete. O Mim que, grosso modo, equivale ao que Peirce chama de “self crítico”, representa basicamente um resumo do passado, o ponto final de ciclos semióticos anteriores. Em linguagem mais simples, o Mim é um conjunto de hábitos ou disposições do sujeito no sentido de responder de uma maneira particular a determinadas circunstâncias, hábitos esses que representam o resultado de nossas interpretações em contextos anteriores. Assim, quando nos perguntamos o que fazer em uma determinada situação, é a este Mim ou “self crítico” que recorremos: é ele que resume a nossa experiência passada. Ele dá conta, portanto, de nossas ações e pensamentos habituais, rotinizados, o que sugere que é “crítico” no sentido específico da incorporaração de normas, crenças e valores que restringem (embora também capacitem) comportamentos (como o superego freudiano).
O Eu de Peirce, por outro lado, representa uma fonte de criatividade e inovação (ele é o único capaz de ação, já que se encontra no presente) e, diferentemente do Id freudiano, não diz respeito a um conjunto de pulsões primárias (e inatas), mas a poderes de transformação que se atualizam (no sentido do realismo critico, i.e., se “manifestam”) como resposta aos problemas colocados pelo ambiente sócio-cultural. São, neste sentido, as contingências dos sistemas sociais e culturais que, por seu caráter essencialmente aberto, possibilitam a reflexividade e a ação humana. O Você, por seu turno, diz respeito à projeção de nossos selves no futuro em função dos problemas colocados ao Eu. À medida que este Você é delineado a partir de um conjunto de possibilidades de selves futuros, ele torna-se o Eu do presente.
A conversação interna envolve, então, dois momentos, analiticamente separados: o primeiro diz respeito à relação entre o Eu e o Mim (como quando nos damos conta de que nossas formas rotineiras de agir não mais nos permitem “prosseguir” no fluxo de nossas ações e tentamos nos convencer que deveríamos adotar um curso de ação alternativo); o segundo momento envolve uma conversação entre o Eu e o Você (como quando usamos nossa imaginação para projetarmos como seria se fôssemos ou agíssemos de outra forma). Obviamente que nem tudo é fala: existem as imagens, muitas delas sem direção ou propósito específicos.
O agente Peirciano é, ao mesmo tempo, ativo e passivo: afetado por elementos externos, mas capaz de alterar sua situação. Em outros termos, Peirce tem uma concepção de agente que possibilita relacionar os “poderes” (ou capacidades, ou modos de ação específicos) particulares da estrutura social, da cultura e das pessoas. Mas não fica claro como os poderes do agente humano permitem que ele transforme não apenas a si mesmo (o que é explicado por Peirce), mas o seu ambiente, sobretudo, o social. Isso porque sua ênfase não recai na questão sociológica de saber como os atores usam a reflexividade no sentido de reavaliar seus projetos pessoais à luz de suas circunstâncias sociais e vice-versa. Esta é a principal tarefa que Archer se coloca em sua teoria da agência humana ao substituir a noção de introspecção pela de conversação interna. Quem sabe um dia eu escreva algo sobre isso por aqui.
Referências
ARCHER, Margaret (1995). Realist Social Theory: the morphogenetic approach. Cambridge, Cambridge University Press.
________ (2000). Being Human: the problem of agency. Cambridge, Cambridge University Press.
________ (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
COLLIER, Andrew (1994). Critical Realism: an introduction to Roy Bhaskar’s philosophy. Londres e Nova York, Verso.
LEWIS, David; SMITH, Richard (1980). American sociology and pragmatism: Mead, chicago sociology, and symbolic interaction. Chicago, University of Chicago Press.
SHORT, Thomas (2007). Peirce’s Theory of Signs. Cambridge, Cambridge University Press.
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sábado, 17 de abril de 2010
O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 2
Cynthia Hamlin
Na primeira parte deste texto, coloquei o problema identificado por Kant em relação à introspecção como forma de autoconhecimento: se, por um lado, seria indubitável que o sujeito pode pensar acerca de si mesmo como um objeto, por outro, não se pode explicar como este sujeito é, simultaneamente, sujeito e objeto de seu pensamento.
O que está pressuposto na noção de introspecção (intra spectare, ou “olhar para dentro”) é que aquele que observa é o mesmo que é observado. Nas palavras de Auguste Comte (apud Archer, 2003: 53), “o pensador não pode se dividir em dois, onde um pensa enquanto o outro o observa pensando. Sendo o órgão observado e o órgão que observa idênticos neste caso, como poderia ocorrer a observação?”. Alguns, como o próprio Comte - e Durkheim e os behavioristas depois dele - tomam isso como prova irrefutável de que a o autoconhecimento é impossível. Sendo assim, nenhuma ciência deveria se basear no conhecimento de conteúdos mentais, já que não é possível observá-los.
O modelo observacional de autoconhecimento tem como principal metáfora o olhar, uma metáfora de raízes claramente empiristas (Collier, 1994). O empirismo, na medida em que reduz a experiência àquela que pode ser apreendida pelos sentidos (ao contrário, por exemplo, da noção de experiência mais ampla pressuposta no conceito de Nacherleben ou vivência, utilizada por autores como Dilthey), acaba por privilegiar a visão por seu caráter intersubjetivo supostamente não problemático. O caráter limitado desta metáfora, mesmo tomando a experiência de um ponto de vista exclusivamente sensorial, pode ser melhor compreendido quando consideramos que a visão é o único dos nossos sentidos que não nos permite sermos simultaneamente sujeitos e objetos de nossa ação (não sem a ajuda de um espelho). Ao contrário do que ocorre com a visão, somos simultaneamente sujeitos e objetos quando ouvimos nossa própria voz, sentimos a dor causada pelo beliscão no próprio braço, sentimos o cheiro de nossos corpos etc.
É com base na rejeição do autoconhecimento fundamentado no metafórico “olho interior” da introspecção que Archer desenvolve seu conceito de reflexividade como a “conversação interior” que ocorre privadamente em nossas mentes. A partir de uma leitura realista de pragmatistas como William James e Charles Peirce, Archer (assim como Gadamer o faz por outras vias) substitui o modelo observacional baseado na visão por um que enfatiza a audição. Em vez de considerar o pensamento como simples decorrência da impressão de formas e cores em nossa mente à moda de empiristas como Berkeley, este passa a ser considerado como uma espécie de fala e escuta interior. Antes de expor sucintamente a leitura que Archer efetua dos pragmatistas no capítulo 2 de seu Structure, Agency and the Internal Conversation, é importante ter-se em mente que se trata de um modelo, isto é, uma forma de representação analógica ou metafórica que se baseia em um tipo de inferência lógica desenvolvido por Peirce e que se conhece como retrodução ou abdução.
A importância que Archer atribui a William James refere-se ao abandono progressivo da visão em favor da audição em suas tentativas de lidar com aquilo que ele considera o aspecto mais central de nossa vida mental: o pensamento. Se em textos metodológicos James é um defensor ardoroso da introspecção (ou, mais apropriadamente da retrospecção) como forma de se “descobrir” estados de consciência, mais tarde em sua obra, ao refletir sobre a natureza do pensamento, ele passa a concebê-lo como uma conversação.
De um ponto de vista ontológico, o pensamento não pode ser concebido como “desincorporado” (uma rejeição do dualismo cartesiano mente-corpo ou mente-matéria) e os pensamentos particulares (subjetivos, dado que intrinsecamente ligados aos seus portadores) devem ser distinguidos de ideias abstratas, que fazem parte do domínio público (como uma teoria, por exemplo). Neste sentido, todo pensamento tem uma ontologia, ou um modo de existência, baseado na primeira pessoa: “todo pensamento é parte de uma consciência pessoal” (James apud Archer 2003: 59) representando, portanto, um domínio privado de atividade mental (o “isolamento absoluto” da mente que fala James) . Este domínio não pode ser acessado pelo sujeito via retrospecção (baseada na memória da introspecção original, como a revivência de Dilthey) porque cada experiência é única, no sentido de que o próprio “olhar para trás” implícito na retrospecção implica em uma atenção diferenciada aos diferentes elementos do nosso pensamento. A corrente de consciência que caracteriza nossos pensamentos impede que se tenha uma visão clara deles, que são, na maioria das vezes, fugidios, vagos e nebulosos. Dessa forma, a analogia estabelecida anteriormente entre captar um pensamento e “olhar” para dentro de si mesmo é considerada inadequada.
Apesar disso, a corrente de consciência tem sua continuidade garantida por aquilo que ele chama de “comunidade do self”, isto é, a continuidade do self no tempo e que permite que eu me reconheça como a mesma pessoa ao longo da vida. Essa continuidade da corrente de consciência por vezes gera aquilo que James chama de “perspectiva premonitória”, a sensação de que vamos dizer algo antes de dizê-la, ou que pensamentos emergirão antes que eles tenham emergido e, portanto, antes que se tenha algo para observar. Nossa consciência de nossos estados mentais não tem, assim, uma relação com a ideia de auto-observação, mas com a capacidade de atentarmos à articulação precisa de nossos pensamentos, um processo ativo de auto-monitoramento que envolve desde premonições relativamente incoerentes, em seu nível mais baixo, até a articulação de sentenças inteiras, em seu nível mais alto. A ideia, portanto, é que temos que “ouvir” a nós mesmos quando articulamos nossos pensamentos em sentenças, o que envolve um auto-monitoramento no qual “escolhemos” as palavras mais apropriadas, rejeitando algumas e aceitando outras.
O problema que Archer vê nesta solução é que ele impede formas mais complexas de deliberação reflexiva, como a auto-dúvida, a autocrítica e a autocorreção: o sujeito descrito por James dá conta apenas de uma reflexividade simples, na qual “ouvimos” ou registramos aquilo que dizemos para nós mesmos e que é considerado não problemático. Ocorre, entretanto, que nem sempre nossas deliberações reflexivas meramente registram aquilo que pensamos. Com freqüência, nos colocamos questões (“o que eu vou jantar hoje?”) que podem levar a um longo dialogo interno sobre “nossas preferências, disponibilidade dos itens, padrões de consumo, hábitos saudáveis, restrições orçamentárias, produção de alimentos orgânicos, direitos animais...” (Ibid. 97). Em outros termos, o modelo de James é essencialmente monológico e não dá conta da nossa habilidade e respondermos nossas próprias perguntas, que é uma forma especial de autoconhecimento. Essa questão foi desenvolvida por Charles Peirce. Falarei disso em um próximo post.
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