sexta-feira, 30 de abril de 2010

terça-feira, 27 de abril de 2010

O Romantismo e as Ciências Sociais 11: Pobreza e Experiência


Man Ray, the gift (1921)

Jonatas Ferreira

Antes de ler Infância e História, nunca havia percebido suficientemente certas nuances do artigo “Experiência e Pobreza” (1933) de Walter Benjamin. Em minhas leituras desse texto, que versa sobre o sentido da vida nas sociedades modernas, sempre prevaleceu a percepção de um humor soturno ao qual eu opunha a visão mais solar de “Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936/1955). “Experiência e Pobreza” lembra muito o pessimismo com o qual Weber nos brinda em “Ciência como Vocação” (1919). Todos nos lembramos da passagem em que ele recorre a Tolstoi para concluir que a vida para o homem moderno não tem significado. Na verdade, não tenho grandes simpatias com relação ao projeto sociológico weberiano, porém essa coisa menos controlada, essa palestra proferida sob a emoção e impacto do pós-guerra, e renegada pouco tempo depois, comove pelo desespero do diagnóstico. Max Weber chuta o pau da barraca: para o homem moderno vida e morte não têm significado, ele afirma. “E não o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de um “progresso” infinito, segundo seu próprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim; pois há sempre um passo à frente do lugar em que estamos, na marcha do progresso”. (p. 166). A palestra prossegue afirmando que, por tudo isso, na sociedade industrial, moderna, podemos cansar-nos da vida mas jamais nos saciar dela. Bem, é verdade que para chegar à radicalidade dessa conclusão, que se assemelha em muito ao que Benjamin dirá no “Experiência e Pobreza”, repito, ele nos faz entrar num calvário de considerações sobre a vida acadêmica alemã do começo do século XX. Era um chato incurável. Quem já se deu ao trabalho de ler seus ensaios metodológicos haverá de concordar comigo.


domingo, 25 de abril de 2010

O “experimento” de Bobby McFerrin: Associações, expectativas e observação empírica

Cynthia Hamlin

Semana passada, no curso de teoria social realista que estou ministrando na Pós-Graduação, discutimos a relação entre teoria e observação, de uma perspectiva realista. O cerne da discussão é que, embora exista uma separação entre aquilo que observamos (os fenômenos e eventos do mundo) e o que pensamos acerca deles (nossas teorias, conceitos etc), não se pode efetuar uma distinção muito rígida entre essas duas coisas, pois nossa relação com o mundo é sempre mediada. Isso é outra forma de dizer que a mente humana tem um papel ativo na nossa experiência: ao contrário do que afirmavam os empiristas, nossa percepção não ocorre independentemente de nossas teorias ou, de forma mais ampla, de nossos conteúdos mentais. Até aí, tudo bem, afinal de contas, qualquer aluno de graduação é capaz de citar Popper e dizer que nossas observações são teoricamente embasadas ou, num grau de sofisticação um pouco mais elevado, de recorrer à ideia de Bachelard de que o fato não é simplesmente dado, mas (deve ser) construído. A coisa começa a complicar um pouco mais quando a relação é questionada no sentido contrário, isto é, quando se questiona a influência da observação empírica nos nossos conceitos e teorias.

Se, por um lado, nossas teorias informam nossas observações, as teorias também não podem ser reduzidas a coleções de observações de um mesmo tipo de fenômeno ou evento indutivamente generalizados. De uma perspectiva realista, elas não podem nem mesmo ser reduzidas a uma combinação de observações e de deduções lógicas a partir de princípios gerais (autoevidentes ou indutivamente generalizados), como querem os defensores de uma combinação do indutivismo empirista e do dedutivismo racionalista. Existe um outro processo envolvido na construção de conceitos e de teorias, e que também afeta nossas observações e experiências, que se baseia naquilo que Charles Peirce chamou de abdução ou retrodução. Para meus propósitos aqui, eu poderia definir a retrodução como a compreensão de algo desconhecido por meio da comparação (geralmente metafórica ou analógica) com algo já conhecido. A coisa funciona mais ou menos assim:



Na sequência do vídeo (aqui), John Schaefer, o radialista que presidia a “mesa redonda” composta de músicos e neurocientistas no World Science Festival, em Nova York, no ano passado, formula o problema em termos científicos: “O que diabos foi isso???”


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Metafora y Analogias




Adrián Scribano (Professor da Universidad Nacional de Villa María, Córdoba, da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do Conicet – Argentina).

Artigo originalmente apresentado em seminário na Universidad Nacional de Catamarca, em 1996.

Para poder captar una Imagen del Mundo postulamos que se deben responder dos preguntas: 1) ¿COMO es posible la constitución de una Imagen del Mundo?, cuya respuesta debe ser elaborada a partir de la identificación y análisis de los mecanismos de transmisión y reproducción de dichas imágenes, y 2) ¿CUAL es el MEDIO por el que las Imágenes toman forma?, pregunta que deberá contestarse señalando y analizando los instrumentos "lingüísticos" utilizados para la producción de las misma.

En función de responder la primera de las preguntas, es menester realizar una análisis desde dos enfoques, el de la Tradición y el de la Doxa Académica, debiendo estar alertas sobre el hecho de que aquí se conjugan tanto los estudios desde Sociología de la Ciencia como los realizados desde la Sociología del Conocimiento. Para obtener la segunda respuesta, se cree necesario explorar el camino del análisis del Discurso Científico en términos de la relación entre Analogías, Modelos y Metáforas, tema que nos preocupa en esta comunicación. Respuesta que se transitará, al menos parcialmente, en este trabajo.


quinta-feira, 22 de abril de 2010

A lógica asilar acabou? Uma crítica da crítica à assistência psiquiátrica




Publico a introdução do meu artigo "A lógica asilar acabou? Uma crítica da crítica à assistência psiquiátrica", que está no livro organizado pela prestigiosa professora Eliane Maria Monteiro da Fonte e pelo professor Breno Augusto Souto Maior Fontes: "Desinstitucionalização, redes sociais e saúde mental: análise de experiências da reforma psiquiátrica em Angola, Brasil e Portugal" (Editora UFPE).

Artur Perrusi

Introdução: respondendo a uma pergunta

Sem maiores delongas, evitando expectativas e tergiversações, responderemos logo à pergunta do título: não, a lógica asilar não acabou. Mas, o que significa, de fato, dizer que a lógica asilar não acabou? Significa dizer que o asilo não acabou? Não, já que a noção de “lógica asilar”, como tal, não se esgota no seu contexto empírico de origem, o asilo; na verdade, ultrapassa-o, podendo ser percebida não apenas como “lógica”, mas também como “prática” noutras estruturas, como o hospital psiquiátrico e até em serviços extra-hospitalares, por exemplo.

No fundo, como veremos mais adiante, a resposta a tais perguntas depende da postura epistemológica diante do saber psiquiátrico. O alcance da noção de “lógica asilar” é diferente segundo o tipo de crítica que se faz ao saber psiquiátrico: uma crítica total, uma autocrítica ou uma revalidação do saber psiquiátrico.

a) A primeira crítica nega a validade do saber psiquiátrico como saber científico e médico – uma das suas conseqüências seria a negação da própria noção de “doença mental” [1];

b) a segunda elenca os diversos erros históricos do saber psiquiátrico, re-configurando seu lugar na medicina – a noção de doença permanece, mas de forma secundária, e a psicopatologia passa a se nutrir, também, dos aportes das ciências humanas;

c) a terceira reafirma o saber psiquiátrico como saber médico e profissional – a noção de doença permanece, sendo naturalizada pelos aportes provenientes da neuropsiquiatria.

As três formas de crítica são diferentes e têm posturas antagônicas quanto à psiquiatria e à natureza da “doença mental”. Entre as três posições, inclusive, existe uma série de posturas intermediárias, tanto em relação às instituições psiquiátricas, quanto às definições sobre a loucura. As posições a) e b) fazem parte do que chamamos de teoria crítica da psiquiatria, enquanto a posição c), do discurso profissional da medicina psiquiátrica. Situando o alcance da noção de lógica asilar a partir de tais posturas, podemos percebê-la em dois extremos: num sentido fraco, a lógica asilar identificar-se-ia à instituição asilar ou, como já dissemos, ao seu referente empírico de origem, o asilo -- assim, acabando o asilo, conseqüentemente, ela desapareceria de pronto. Num sentido forte, a lógica asilar confundir-se-ia com todo processo institucional na psiquiatria, independentemente do fim do asilo. A psiquiatria, nesse caso, seria um mero dispositivo de poder, e o fim da lógica asilar identificar-se-ia com o próprio fim da psiquiatria.

Tais posições delimitam o campo de tensão que perpassa o saber psiquiátrico, principalmente no que se refere ao seu objeto profissional: a “doença mental”. Afinal, seria em torno do seu objeto profissional que gira o debate sobre a validade do saber psiquiátrico. Porém, o que torna tão especial a discussão sobre a natureza da “doença mental”? Para entender melhor essa questão, inferimos as seguintes hipóteses sobre as tensões que perpassam o saber psiquiátrico quanto à “doença mental” (DM) e, de certa maneira, o campo profissional da saúde mental:

  • a "doença mental" é um fenômeno sui generis na medicina. Ela jamais conseguiu ser enquadrada pelo paradigma biomédico da medicina. Sendo o objeto profissional da psiquiatria, sua instabilidade, enquanto representação médica de doença, condiciona diversas dificuldades no campo do saber psiquiátrico: falta de consenso etiológico, confronto de diversos paradigmas de doença, desvalorização do conhecimento psiquiátrico. A psiquiatria, por causa da sua incapacidade de enquadrar cientificamente a DM, possui uma fragilidade disciplinar no campo da formação profissional da medicina. Tais problemas estabelecem diversas tensões na identidade profissional dos profissionais que atuam no campo da saúde mental;
  • a saúde mental possui um aparato institucional (hospital psiquiátrico, rede extra-hospitalar...) diferente e separado do campo organizativo da saúde. Provavelmente, tal diferença e separação tenham, entre outros fatores, uma relação com a percepção social da “doença mental”. Independentemente disso, o fato é que a organização institucional da saúde mental condiciona o modo como se realiza o trabalho profissional ― a psiquiatria é, por exemplo, praticamente uma profissão dentro da profissão médica, tendo uma grande importância institucional no campo da medicina;
  • por causa da condição sui generis da “doença mental” e do singular aparato institucional da saúde mental, a prática profissional, no campo da saúde mental, possui características diferentes das práticas profissionais dos outros profissionais da saúde.
  • Tais situações foram sempre tensas e importantes para a legitimação da psiquiatria. O reconhecimento científico do saber médico teve um papel capital na legitimação social da medicina, abjurando outras formas de conhecimento, de tratamento e cura do campo profissional e se tornando o único detentor de uma competência reconhecida para o tratamento das doenças (Freidson, 1984; Foucault, 1987). Tal processo de legitimação social, através de uma forma de organização profissional, baseou-se evidentemente numa luta e no uso de poder, mas estava conectado aos imperativos da reprodução e manutenção de um saber.
  • A psiquiatria é uma das poucas disciplinas médicas, senão a única, que nunca teve um consenso etiológico e nosológico [2] estável, isto é, uma representação única e estável guiando a conduta dos psiquiatras, sempre sofrendo assim uma inadequação permanente com a representação biomédica de doença. Num certo sentido, ela sempre foi "fraca" no aparato de formação médica e na luta pelo seu reconhecimento disciplinar dentro da própria medicina, conseguindo tardiamente e de forma mitigada diferenciar-se da neurologia, e "forte" no campo institucional, com seus aparelhos de tratamento especiais, separados do campo da saúde em geral. Não conseguindo, do ponto de vista disciplinar, assegurar um consenso, o saber psiquiátrico fica mais "frágil" diante das interpelações de outras esferas de saber produtoras de representações sobre a “doença mental”, embora compense essa situação com seu forte aparato institucional. Por isso, a dificuldade em enquadrar de forma normativa a “doença mental”, como um objeto profissional da psiquiatria e da saúde mental como um todo. Não causa surpresa que tal enquadramento tenha sido interpretado, por diversos autores [3], muito mais como uma questão de poder do que de saber. Assim, a transformação da “doença mental” num objeto profissional da psiquiatria envolve, também, um conflito político com outras representações de “doença mental”, disseminadas de forma difusa em vários segmentos sociais, seja incorporando-as, seja eliminando-as ou diminuindo seu alcance cognitivo (Perrusi, 2007). É um embate importante, pois envolve a preponderância de quem pode classificar uma categoria social tão vital, como a “doença mental”. Dessa forma, é a disputa por um mandato social que permite a um grupo social determinar, de forma exclusiva, categorizações sobre um fenômeno social. Ao transformar a “doença mental” em objeto profissional, logo, numa representação profissional, a “doença mental” torna-se um objeto específico, pois marcada pelo grupo profissional. E seria através dessa especificidade, enquanto objetos profissionais, que são valorizados socialmente.
  • Assim, como objeto profissional, a “doença mental” é de difícil conformação e, inclusive, seria fonte de representações exatamente por ser polimorfa e de difícil apreensão. Como tal, está numa situação diferente da doença dita somática, cuja normalização é mais profunda e antiga, sendo um objeto profissional de muito mais fácil apreensão e controle. Devido ao seu caráter um tanto inapreensível, a necessidade de controle do seu objeto profissional, para os psiquiatras, tornou-se uma questão de identidade e de coesão social (coesão de grupo). Sua apropriação, enquanto objeto, constitui um desafio que coloca em xeque a legitimidade profissional da psiquiatria. Ao contrário dos objetos profissionais da profissão médica, a “doença mental” não possui um consenso etiológico, permitindo assim a concorrência de diversas representações psiquiátricas do objeto profissional, criando uma profusão de nosologias e práticas terapêuticas. Sem consenso, os psiquiatras e os profissionais da saúde mental não estariam, como os neurologistas, por exemplo, submetidos a uma instância de regulação que definiria um sistema ortodoxo (conjunto de regras e práticas relacionadas, no caso da medicina, ao diagnóstico e, principalmente, ao tratamento) de controle do objeto profissional. Além do mais, mesmo que possamos admitir que exista, de fato, um sistema ortodoxo na psiquiatria, ele não seria consensual, estando sujeito a revisões constantes e sendo fonte de eternos conflitos entre os psiquiatras e os profissionais da saúde mental.
  • Com um sistema ortodoxo de fraco enquadramento normativo, a delimitação de fronteiras entre saberes e representações é fundamental na construção do campo da saúde mental. A questão é importante, pois a psiquiatria lutou sempre pela transformação da "loucura" em "doença mental", portanto, pela ratificação da “doença mental” como seu objeto de conhecimento e profissional. A luta foi e é também por um monopólio discursivo — a logorréia da psiquiatria sobre o seu objeto corresponde ao silêncio das outras produções discursivas sobre o fenômeno mais geral da loucura.

Enfim, tais hipóteses serão o pano de fundo de nossa análise. Posto assim, como nosso objeto de estudo é outro, voltemos às posições críticas assinaladas acima. Como tais, já que demarcam o alcance da noção de lógica asilar, têm relações com o debate sobre a instituição psiquiátrica, isto é, com os diversos modelos de assistência psiquiátrica. Por isso, ao analisar as conseqüências da Reforma Psiquiátrica, nosso intuito não será fazer uma análise histórica da psiquiatria brasileira. Preferimos, na realidade, uma discussão sincrônica e conceitual, tentando perceber quais são os fatores estruturantes da formação assistencial psiquiátrica brasileira. Mesmo assim, achamos necessário, ainda que de forma esquemática, citar alguns dados que são sintomas da longa transição da assistência psiquiátrica brasileira: do modelo asilar original, passando atualmente por uma fase ainda hospitalocêntrica, para um futuro, quiçá, modelo psicossocial (Costa-Rosa, 2000), isto é, completamente extra-hospitalar. Centraremos nossa atenção no período recente de implantação da Reforma Psiquiátrica:

  • Desde 1997 até 2004, a proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos Serviços Extra-Hospitalares mudou consideravelmente. Há uma clara tendência, embora possa haver retrocessos futuros, de aumento nos gastos extra-hospitalares em detrimento dos hospitalares:
GASTOS:
Gastos Hospitalares em Saúde Mental
1997: 93,14%
2001: 79,54%
2004: 63,84%
Gastos Extra-hospitalares em Saúde Mental
1997: 6,86%
2001: 20,46%
2004: 36,16%
Fonte: Ministério da Saúde (Brasil, 2005)
  • Em 1996, havia 72514 leitos psiquiátricos no Brasil; em 2005, 42076, com 228 hospitais psiquiátricos. *
  • Em 2007, já existiam 918 CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) em funcionamento, 120 deles voltados, exclusivamente, ao atendimento de dependentes de álcool e drogas. Havia ainda 475 serviços residenciais terapêuticos, 350 ambulatórios, 36 Centros de Convivência e Cultura (Brasil, 2009). Tais formas de assistência são organizações que rompem com o modelo hospitalocêntrico, embora possam e, na verdade, estejam subordinados, na atual conjuntura, ao modelo hospitalar.
  • Desde 2003, existe o Programa de Volta para Casa e Inclusão Social pelo Trabalho, que tem como objetivo “contribuir efetivamente para o processo de inserção social das pessoas com longa história de internações em hospitais psiquiátricos, através do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação, no valor de R$240,00 (duzentos e quarenta reais, aproximadamente 110 dólares) aos seus beneficiários. Para receber o auxílio-reabilitação do Programa De Volta para Casa, a pessoa deve ser egressa de Hospital Psiquiátrico ou de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, e ter indicação para inclusão em programa municipal de reintegração social” (Brasil, 2005: 17)

Os dados ainda mostram uma assistência psiquiátrica centrada no hospital psiquiátrico, embora comprovem, também, uma substituição paulatina da estrutura hospitalar por uma extra-hospitalar. Os dados acima não revelam, porém, as desigualdades regionais na inserção da Reforma Psiquiátrica nos Estados (ver Brasil, 2005); assim, há regiões bem mais hospitalocêntricas do que outras, como também regiões onde a Reforma está bem sedimentada do ponto de vista institucional. De todo modo, podemos dizer que a assistência psiquiátrica está numa situação de transição, com uma tendência para a perda de hegemonia institucional do hospital psiquiátrico.

Mesmo se existe, de fato, essa tendência, lembramos que está sendo extremamente difícil, ainda, colocar em prática a lógica institucional do SUS, principalmente na área da saúde mental, pois a predominância do setor privado inverte a lógica proposta: o privado complementando o público – o que ocorre é o contrário: 58% dos leitos psiquiátricos eram privados até 2005 (Brasil, 2005). A saúde mental brasileira é estruturada economicamente de tal forma que o setor privado, inclusive como modo de sobreviver financeiramente, precisa sufocar o desenvolvimento do setor público. A manutenção do hospitalocentrismo, além das controvérsias ideológicas, possui um fundamento econômico e privado: dado o desenvolvimento das instituições psiquiátricas, calcadas no setor privado, o hospital psiquiátrico é a melhor forma de sustentação econômica, já que a rentabilidade privada é proveniente da exploração da internação, logo, do leito ocupado. O investimento privado em estruturas extra-hospitalares não tem contrapartidas financeiras, isto é, por enquanto, não é rentável. Juntando isso ao fato de que o serviço público em saúde mental jamais escapou completamente da lógica hospitalocêntrica, até mesmo por causa da falta de recurso para investir em estruturas extra-hospitalares, pode-se entender por que o hospitalocentrismo hegemoniza a assistência psiquiátrica brasileira.

Atualmente, a estrutura do sistema psiquiátrico brasileiro organiza-se da seguinte forma:

  1. hospital psiquiátrico público;
  2. clínica psiquiátrica privada (sua atividade está regida por contrato com o SUS);
  3. hospital universitário (mais de um terço dispõe de um serviço psiquiátrico geral. A formação do psiquiatra brasileiro é realizada nessas instituições, onde domina o paradigma biomédico, inclusive no ensino da psiquiatria);
  4. serviço público extra-hospitalar (ambulatório, hospital-dia,CAPS, residência terapêutica...)
______________________

[1] Aspeamos a noção "doença mental" (DM), pois o que existe de fato é o doente ou a pessoa com algum tipo grave de sofrimento psíquico. Colocar o problema desse modo não é negar a sua pertinência no campo da psicopatologia, mas sim mostrar que a “doença mental" pode ser vista, também, como uma categoria de valor e como "objeto profissional" da psiquiatria.

[2] Etiológico, porque a psiquiatria nunca teve um consenso a respeito das causas da doença mental; nosológico, porque nunca teve um consenso a respeito de quais doenças trata a psiquiatria.

[3] Foucault (1978, 1979, 1984), Castels (1976, 1981), Basaglia (1976), Berlinguer (1985), entre outros.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O Politicamente Correto e o Comunismo

Cynthia Hamlin

Que existe uma relação entre o politicamente correto (PC) e um certo tipo de construtivismo social sempre me pareceu evidente: se se parte do princípio de que as palavras não apenas nomeiam, mas de alguma forma constituem os objetos a que se referem, parece óbvio que uma das maneiras de se mudar a ordem social é alterando o significado das palavras (embora já não seja tão óbvio que isso possa ser feito apenas mediante o uso de palavras diferentes, ainda que menos ideologicamente carregadas, como querem alguns defensores do PC).

Também nunca tive dúvidas acerca das raízes do politicamente correto na academia norte-americana, especialmente por meio daquelas disciplinas de alguma forma relacionadas aos estudos culturais, como é o caso dos amorfos “estudos de raça” e de gênero, cuja preocupação principal (e legítima) consiste na erradicação do racismo e do sexismo. Agora, a relação entre politicamente correto e comunismo, essa eu confesso que me escapou completamente. Pois aqui vai um vídeo do ultraconservador Bill Lindt, explicando tudo direitinho.



Sua tese central, exposta no início do vídeo, é a de que “o politicamente correto não é nada mais do que ideologia marxista – o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais”. E essa “tradução” parece seguir uma linha bastante clara para Lindt: de marxistas ocidentais como Gramsci e Lukács, passando pela Escola de Frankfurt (aparentemente os grades vilões do PC, em particular Marcuse), pela Nova Esquerda e desembocando no feminismo e nos estudos culturais.

De fato, é possível pensar acerca de todas essas tradições a partir de um denominador comum, amplamente apropriado por Marx: a negação da famosa separação operada por David Hume entre fato e valor e que é comum a todas as teorias críticas, entendidas como aquelas que se propõem a alterar a realidade que estudam, assim como suas próprias práticas teóricas e metodológicas. Também é possível pensar no desenvolvimento do marxismo ocidental em termos de uma ênfase progressiva na dimensão humanista do pensamento de Marx (talvez à exceção de Althusser) e, portanto, de elementos culturais.


segunda-feira, 19 de abril de 2010

o olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 3



Cynthia Hamlin

Um dos problemas com a psicologia de James diz respeito ao seu individualismo (Lewis & Smith, 1981), o que impossibilita uma concepção de sujeito que transcenda o problema subjetivismo-objetivismo. De fato, o sujeito de James é hipossocializado e acredito que sua concepção de mente como uma esfera privada que se baseia na noção de “isolamento absoluto” da consciência e do eu é tão solipsista que tornaria impossível mesmo uma disciplina como a psicologia, dado que nenhuma comunicação seria possível. O problema que o individualismo representa para uma abordagem realista é que ela nega os poderes causais tanto das estruturas sociais quanto da cultura, tratando-as como epifenômenos e levando a um tipo de reducionismo que Archer chama de “conflação de baixo para cima” (Archer, 1995; 2000).

Peirce tinha aversão suficiente ao solipsismo para afirmar que tinha vontade de substituir o nome de sua filosofia por pragmaticismo, um nome tão feio que ninguém (leia-se, James) ia querer se apropriar dele (Lewis & Smith, 1981). (Fico imaginando o que ele teria pensado se tivesse lido Rorty...). A versão de Peirce do pragmatismo, a semiótica, enfatiza a realidade (objetiva) dos signos, que são, por este motivo, essencialmente públicos ou coletivos. Isso significa dizer que o pensamento, que é nada mais do que um conjunto articulado de signos, é algo privado, mas faz uso de meios públicos. Isso faz toda diferença, pois pressupõe a socialização do sujeito, admitindo a influência dos fatores estruturais e culturais.


sábado, 17 de abril de 2010

O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 2



Cynthia Hamlin

Na primeira parte deste texto, coloquei o problema identificado por Kant em relação à introspecção como forma de autoconhecimento: se, por um lado, seria indubitável que o sujeito pode pensar acerca de si mesmo como um objeto, por outro, não se pode explicar como este sujeito é, simultaneamente, sujeito e objeto de seu pensamento.

O que está pressuposto na noção de introspecção (intra spectare, ou “olhar para dentro”) é que aquele que observa é o mesmo que é observado. Nas palavras de Auguste Comte (apud Archer, 2003: 53), “o pensador não pode se dividir em dois, onde um pensa enquanto o outro o observa pensando. Sendo o órgão observado e o órgão que observa idênticos neste caso, como poderia ocorrer a observação?”. Alguns, como o próprio Comte - e Durkheim e os behavioristas depois dele - tomam isso como prova irrefutável de que a o autoconhecimento é impossível. Sendo assim, nenhuma ciência deveria se basear no conhecimento de conteúdos mentais, já que não é possível observá-los.