quarta-feira, 23 de junho de 2010

Greve ou motim francês na Copa Mundial de 2010 – negócio de Estado, de mídias e de celebridades



Tâmara de Oliveira

No dia 20 de junho de 2010, a Copa da África do Sul foi palco de um fato que eu, enquanto desconhecedora da história do futebol, penso ser inédito : todos os jogadores da equipe de França, em pleno campo de treinamento público, anunciaram que recusavam treinar por causa da exclusão oficial de um dos seus companheiros – o internacional e pouco tranquilo Nicolas Anelka – alegando que o procedimento de tal exclusão fôra incorreto. Segundo o documento dos grevistas ou amotinados (porque eles apresentaram um manifesto escrito !), a FFF (Federação Francesa de Futebol) excluiu o jogador fundamentando-se apenas em rumores das mídias, sem que a eles próprios, testemunhas da altercação verbal entre o treinador (Raymond Domenech) e Anelka, tivesse sido dado o direito de apresentar sua versão dos fatos. Nova revolução francesa ? Agora protagonizada pelos cidadãos-jogadores de um futebol milionário ?!!!


10 comentários:

Cynthia disse...

São loucos, esses gauleses.

Tâmara disse...

Cynthia,
O lado louco até que é bom; é muito engraçado. A ministra, por exemplo, não se cansa de fazer rir: em entrevista coletiva antes de ontem, assumindo o papel do treinador, o contraste entre a tonalidade solene do discurso e o arregalado dos olhos era tão hila'rio que pensei estar diante de um filme de Monty Pynthon sobre o discurso de De Gaulle de Londres. Ontem no jogo, a mesma criatura apareceu vestida com o mesmo blusão dos jogadores. Ou seja, o time francês tornou-se clube estatal...

Mas todo esse caos tem implicações realmente horri'veis. Exemplo: no universo das mitologias futeboli'sticas, a seleção que venceu o Brasil em 1998,apelidada Les Blancs, Beurs(a'rabes), Blacks, representa o sucesso da integração multicultural à la francesa; ora, ja' teve quem falasse que o ocorrido deve-se a um time de negros de periferia mal-educados...Parece que o futebol francês pode nutrir agora uma mitologia inversa: a da desintegração absoluta da sociedade francesa. Abraço

P.S.: embora não tenha o nome, acho que sou da fami'lia de seu orientador. A prova: estou preparando-me para ir a um show de Bob Dylan...Eu prefiro uma modernidade com poucos riscos e com vinho no lugar de scotch ...

Cynthia disse...

Ai, que inveja. Uma vez Bob Dylan tocou em Brighton, mas eu não pude ir. Adoraria acompanhar vocês e depois saírmos para uma farra regada a vinho nacional francês. Curta por mim!

Beijo

Leonardo Lima disse...

Cara Tâmara

Gostaria de parabenizá-la pelo texto, pois a despeito de seu "desconhecimento" da história do futebol, você conseguiu nos trazer um rico relato dos acontecimentos, num sentido etnográfico mesmo, e o fez com muita ousadia, já que não é fácil abordar um evento que ainda parece reservar alguns próximos capítulos.
Entretanto, duas questões não saem de minha cabeça: no episódio narrado, qual foi o papel (se é que teve) do ex-jogador Zinedine Zidane, que, segundo a imprensa, teria sido o pivô de tudo isso, atuando nos bastifores? Além do mais, soube que alguns dos patrocinadores da seleção francesa resolveram rescindir o contrato de patrocínio, de modo a se afastar da imagem negativa ("perdedores", vergonha nacional) deixada pelos Bleus nesta Copa. A reação desses atores ficou só nisso, ou há algo mais que nós, aqui no Brasil, não estejamos sabendo? Pergunto isso porque no futebol globalizado atual, a importância dos entes privados do Mercado é cada vez maior e mais significativa. Daí cogitei, por alguns momentos, se eles não tiveram ou terão alguma participação nesses fatos bizarros, sejam eles de natureza extra-campo ou não.
Por fim, sobre se a ação dos jogadores franceses está mais para greve ou motim, acredito que a segunda opção seria a mais correta, ao menos do ponto de vista empírico. E digo isto porque greve não seria um conceito muito aplicável às relações entre jogadores e federações e associações nacionais de futebol (neste caso, a FFF) durante a realização de Copas. Até onde sei, os jogadores de cada seleção não estabelecem qualquer contrato salarial com tais entidades para jogar por até um mês a Copa do Mundo. O que há, na verdade, são premiações coletivas (mas que são distribuídas equitativamente em caso de cumprimento da meta firmada), cujos valores são definidos previamente pelas próprias federações (seja através de diálogo com os jogadores e comissão técnica ou não). Os jogadores também podem ganhar um trocado graças aos inúmeros merchandising que eles protagonizam, sobretudo na TV, no período copista (nem sei se existe este adjetivo rsrsrsrsrs).
Ademais, salvo engano, haja vista que hoje em dia os clubes (em especial os grandes europeus) parecem ser tão ou mais importantes que os próprios selecionados, cada federação nacional acaba tendo de pagar uma certa quantia àqueles pelo empréstimo de seus jogadores para a disputa das Copas. Funciona mais ou menos como uma espécie de contrato de seguro, que, em caso de lesão séria de algum atleta, a qual o impeça de retornar imediatamente às atividades futebolísticas quando do regresso ao seu clube, serve de indenização prévia.
Diante desses elementos, acredito que fica um tanto difícil caracterizar o movimento dos jogadores franceses como uma greve. Assim, ele se constituíria como um motim, tal como você definiu no seu texto.
Não tendo mais nada a falar (ou melhor, escrever), vou ficando por aqui...mas não sem antes parabenizá-la novamente, e desta vez pelo conjunto de sua obra no Cazzo. Seus textos e comentários têm sido preciosos e deliciosos de ler! Posso dizer que a sua "pegada" sociológica é daquelas que deixam marcas em nós...UI!

Leonardo Lima disse...

Cara Tâmara

Gostaria de parabenizá-la pelo texto, pois a despeito de seu "desconhecimento" da história do futebol, você conseguiu nos trazer um rico relato dos acontecimentos, num sentido etnográfico mesmo, e o fez com muita ousadia, já que não é fácil abordar um evento que ainda parece reservar alguns próximos capítulos.
Entretanto, duas questões não saem de minha cabeça: no episódio narrado, qual foi o papel (se é que teve) do ex-jogador Zinedine Zidane, que, segundo a imprensa, teria sido o pivô de tudo isso, atuando nos bastifores? Além do mais, soube que alguns dos patrocinadores da seleção francesa resolveram rescindir o contrato de patrocínio, de modo a se afastar da imagem negativa ("perdedores", vergonha nacional) deixada pelos Bleus nesta Copa. A reação desses atores ficou só nisso, ou há algo mais que nós, aqui no Brasil, não estejamos sabendo? Pergunto isso porque no futebol globalizado atual, a importância dos entes privados do Mercado é cada vez maior e mais significativa. Daí cogitei, por alguns momentos, se eles não tiveram ou terão alguma participação nesses fatos bizarros, sejam eles de natureza extra-campo ou não.
Por fim, sobre se a ação dos jogadores franceses está mais para greve ou motim, acredito que a segunda opção seria a mais correta, ao menos do ponto de vista empírico. E digo isto porque greve não seria um conceito muito aplicável às relações entre jogadores e federações e associações nacionais de futebol (neste caso, a FFF) durante a realização de Copas. Até onde sei, os jogadores de cada seleção não estabelecem qualquer contrato salarial com tais entidades para jogar por até um mês a Copa do Mundo. O que há, na verdade, são premiações coletivas (mas que são distribuídas equitativamente em caso de cumprimento da meta firmada), cujos valores são definidos previamente pelas próprias federações (seja através de diálogo com os jogadores e comissão técnica ou não). Os jogadores também podem ganhar um trocado graças aos inúmeros merchandising que eles protagonizam, sobretudo na TV, no período copista (nem sei se existe este adjetivo rsrsrsrsrs).
Ademais, salvo engano, haja vista que hoje em dia os clubes (em especial os grandes europeus) parecem ser tão ou mais importantes que os próprios selecionados, cada federação nacional acaba tendo de pagar uma certa quantia àqueles pelo empréstimo de seus jogadores para a disputa das Copas. Funciona mais ou menos como uma espécie de contrato de seguro, que, em caso de lesão séria de algum atleta, a qual o impeça de retornar imediatamente às atividades futebolísticas quando do regresso ao seu clube, serve de indenização prévia.
Diante desses elementos, acredito que fica um tanto difícil caracterizar o movimento dos jogadores franceses como uma greve. Assim, ele se constituíria como um motim, tal como você definiu no seu texto.
Não tendo mais nada a falar (ou melhor, escrever), vou ficando por aqui...mas não sem antes parabenizá-la novamente, e desta vez pelo conjunto de sua obra no Cazzo. Seus textos e comentários têm sido preciosos e deliciosos de ler! Posso dizer que a sua "pegada" sociológica é daquelas que deixam marcas em nós...UI!

Tâmara disse...

Caro Leonardo,
Muito obrigada, mesmo, por seus parabéns. Principalmente porque você reparou que eu tento aproveitar os benefi'cios da etnografia para as ciências sociais.
Vamos às suas questões. Zizou tem sim relação com o ocorrido, o que ocorre e ainda vai ocorrer, porque existe por tra's disso tudo uma guerra entre a tradição da FFF e a geração de jogadores de 1998. Uma boa parte dos jogadores daquele time que foi campeão, entre os quais Zidane, esta' organizada ha' algum tempo contre a FFF e esta Copa parece ter sido uma ocasião que eles não perderam para implodi-la. E olhe que essa geração de 1998 tem dificuldades com os novos jogadores, porque estes são realmente complicadas estrelas infanto-globalizadas e nunca respeitaram o mito dos campeões do mundo 1998. Mas Zidane não é o li'der; ele nunca teve temperamento para isso e existem outros jogadores (daquela época) muito mais competentes politicamente do que ele para organizar o movimento. Mas é verdade que eles não iam perder o potencial simbo'lico de Zidane diante da opinião pu'blica.
Quanto aos patrocinadores, é verdade sim que um ja' abandonou a seleção francesa:exatamente um dos bancos mais envolvidos com o banditismo financeiro da crise de 2008 que ainda vivemos; como é linda a moral capitalista, não é mesmo? Finalmente, o governo francês, em baixi'ssimo i'ndice de popularidade, invadiu completamente o sistema FFF: essa o'pera-bufa estatizou a tal ponto o futebol nacional do pai's que o presidente da repu'blica esta' hoje em reunião com Thierry Henry (que estava impressionantemente silencioso diante de toda a confusão e que faz parte da geração 1998).
Quanto a greve ou motim, sua argumentação é muito boa e demonstra que você conhece o futebol infinitamente mais do que eu. Fico com você - por enquanto.
No mais, eu gosto demais do Cazzo, tem sido um espaço que abre minha sensibilidade à importância de tornar pu'blico, reflexivo e prazeiroso o olhar das ciências sociais sobre o mundo. Um comenta'rio como o seu faz-me ganhar o dia - e o mês, o ano, quase a eternidade. Brigadão e um grande abraço.

João Paulo Rodrigues disse...

Texto excelente. A melhor análise do evento, de longe.
Eu só fiquei me perguntando onde entraria nessa confusão toda o apego de Domenech pela astrologia, ainda mais num país afeito ao ceticismo e ao racionalismo.

Tâmara disse...

Muito obrigada, João Paulo. Foi escrito com muita vontade e atenção; vai ver é por isso que deu para compensar um pouco o fato de que conheço quase nada de futebol (segundo os homens com os quais convivo e que são experts desde criancinhas).
Quanto a Domenech, rapaz, eu não sei se é verdade essa histo'ria de consultar o mapa astral dos jogadores para seleciona'-los. Eu que achava, na copa anterior, que ele parecia um gentil professor de geografia, atualmente acho que seu caso é psicanali'tico e psiquia'trico. E ai', nem me meto! Abraço.

Leonardo Lima disse...

Tâmara

Segue abaixo um outro texto que escontrei sobre a crise do futebol francês. Não sei se vc já o leu...bem, ele foi publicado no La Repubblica de ontem e seu autor é Bernardo Valli.
Eis o link:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=33697

Abraços!

Tâmara disse...

Valeu, Leonardo. Vou consultar agorinha.