The Guardian, 25 de julho de 2010.
Por Cynthia Hamlin
Creio que a primeira vez que tive contato com algumas das questões levantadas pelo relativismo cultural foi na adolescência. À mesa do jantar, após um plantão emocionalmente desgastante, minha mãe lamentava a morte de uma menina indígena que teve uma parada cardíaca durante uma sessão de hemodiálise. Assim que seu coração parou, minha mãe iniciou uma massagem cardíaca, enquanto lutava para se livrar do pai da menina, que tentava a todo custo impedir a ressuscitação. O antropólogo que acompanhava pai e filha tentava segurá-lo enquanto traduzia seus gritos desesperados de que parassem com aquilo porque o espírito dela já havia partido. Minha mãe solicitou aos enfermeiros que o tirassem dali e prosseguiu com a ressuscitação. Para o bem ou para o mal, a menina morreu. Mais tarde, o antropólogo explicou que, caso a menina “voltasse”, seria com um espírito diferente do seu e não seria mais aceita na tribo. Perguntei à minha mãe por que ela simplesmente não deixou a menina morrer, e ela disse que aquilo se chocaria profundamente com seus princípios éticos.
Anos mais tarde, em 1994, um de meus irmãos me apresentou um problema semelhante: num artigo publicado naquele ano no New England Journal of Medicine, um médico estadunidense se perguntava o que fazer quando mulheres que já haviam passado por uma infibulação - a forma mais radical de mutilação genital feminina, envolvendo a remoção do clitóris, dos pequenos lábios e de parte dos grandes lábios, que são depois costurados - solicitavam que ele as costurasse novamente após o parto. Naquela época, diversos estados dos EUA proibiram a prática, sob a alegação de que constituía violação dos direitos humanos. Embora concordasse com o argumento presente no discurso universalista que embasava a legislação, o médico dizia empatizar com o que poderíamos qualificar de dimensão particularista do problema presente no discurso das mulheres que o procuravam: sem a infibulação, perderiam sua identidade étnica, seriam rejeitadas por seus maridos, sentir-se-iam “sujas”, “feias” e pouco “femininas”. Ciente de que sua recusa levaria muitas dessas mulheres a voltar aos seus países de origem e efetuar o procedimento com ajuda de uma pessoa não-qualificada do ponto de vista médico e sob condições de higiene inadequadas, ele se perguntava se a coisa certa a fazer não era ir adiante e fazer o que elas pediam.
Como se vê, o juramento hipocrático de não fazer o mal não admite uma interpretação única, especialmente diante do contato entre pessoas ou grupos de valores culturais distintos. Apesar disso, à medida que práticas como a Mutilação Genital Feminina (MGF, ou Circuncisão Feminina, para os adeptos de uma terminologia mais “neutra”) tornam-se mais visíveis nos meios de comunicação de massa, parece haver um aumento da tendência de interpretá-las a partir de uma perspectiva universalista que desconsidera todo e qualquer elemento contextual em sua caracterização. Creio que o problema não é tanto a adoção de uma perspectiva universalista no que diz respeito a determinadas posturas éticas, mas o fato de que não é possível compreender e, mais ainda, alterar, práticas como essas sem a referência aos significados atribuídos pelos grupos em questão. De fato, o tratamento unidimensional efetuado pelos meios de comunicação de massa – a este respeito, remeto ao filme “Flor do Deserto”, que conta a história da modelo somali Waris Dirie, ou aos inúmeros vídeos existentes no youtube – pode mesmo gerar uma espécie de backlash, ou de contra-reação por parte dos grupos envolvidos, sob a alegação de colonialismo. A defesa da prática torna-se, em parte, legitimada pelo próprio direito à diversidade cultural, um direito invocado pelas mulheres de origem islâmica na França no recente debate sobre o uso do véu (ver post de Tâmara de Oliveira: Véus Muçulmanos na França e Olhar Sociológico).
Neste sentido, creio que todos nós temos muito o que aprender com os antropólogos em relação ao uso do relativismo cultural como recurso metodológico, embora não necessariamente ético. A fim de compreender essa distinção, é preciso ter em mente que o relativismo cultural, ou a tendência a se julgar cada cultura a partir de seu próprio contexto, aparece como um antídoto àquelas posturas etnocêntricas que buscam transformar o/a outro/a em uma cópia (imperfeita) do Homem do Iluminismo. Nas palavras de Ellen Gruenbaum (2001:26), o relativismo cultural não consiste em um posicionamento ético último, mas numa
técnica mental para ajudar as pessoas a evitar julgamentos negativos acerca de, por exemplo, preferências culinárias, formas de cumprimento, costumes maritais. [...] Ao passo que uma abordagem relativista cultural incorpora determinados dilemas éticos, ela consiste em um ponto de partida benéfico para a promoção do entendimento intercultural. Embora consista em um exercício mental útil para evitar um etnocentrismo não-refletido, o relativismo cultural geralmente requer algum grau de suspensão de valores éticos.
E a questão que imediatamente se coloca é o quão longe podemos ou devemos ir nessa suspensão. Essa não é uma questão simples e o problema tem se tornado mais concreto à medida que o processo de globalização tem possibilitado um maior contato entre culturas distintas, inclusive por meio de ondas migratórias das ex-colônias em direção aos países centrais do mundo globalizado. Não por acaso, a sociedade francesa se viu diante de um dilema acerca do uso do véu e, de forma crescente, os países centrais têm sido forçados a refletir sobre quanta diferença tolerar em suas sociedades. Só a titulo de ilustração, no mês de julho o jornal britânico The Guardian publicou 2 artigos (aqui e aqui) sobre a MGF, um deles chamando atenção para o fato de que entre 500 e 2000 meninas britânicas em idade escolar seriam submetidas à prática no verão de 2010, e conclamando as autoridades a aplicarem a lei - desde 1985, a MGF é proibida no Reino Unido e, desde 2003, a prática é proibida em qualquer mulher que resida permanentemente no país, mesmo se desempenhada em outro lugar. Apesar disso, nunca houve condenações por prática de MGF no país.
Claramente, a “dor do outro distante”, tratada no excelente post de Gabriel Peters, tem se tornado cada vez mais próxima. Mas será que a forma como o problema vem sendo exposto nos meios de comunicação de massa não tem contribuído para gerar um efeito contrário ao pretendido, isto é, a visão de um outro desumanizado, incivilizado e, portanto, não sujeito a determinados valores éticos? O que explicaria, por exemplo, a não aplicação da lei no Reino Unido? Seria isso uma espécie de “indiferença” ao sofrimento alheio? Talvez. Embora não pretenda sugerir aqui que os meios de comunicação de massa são responsáveis diretos por este fenômeno, acredito que isso pode ser percebido como uma espécie de efeito perverso, ou conseqüência negativa não-pretendida, da forma unilateral como a MGF é caracterizada. Aquilo que Gabriel chamou de “via média” entre o otimismo e o ceticismo relativo às consequências da recepção midiática de imagens da dor do outro (e de si próprio!) requer, antes de tudo, uma via média na produção dessas imagens. Como fazer, por exemplo, com que as mulheres se reconheçam na “estória única” contada pelos meios de comunicação de massa e pelas agências humanitárias e organismos internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde? E se não se reconhecem da forma como são descritas, como (ou por que) alterar seus valores e práticas? Como evitar que a forma desumanizada como o islã vem sendo retratado não degenere num backlash movido por um sentido de resistência ao imperialismo cultural?
Ellen Gruenbaum, que desenvolveu uma extensa pesquisa sobre MGF no Sudão na década de 1990, demonstra que as razões dadas por pais e mães que decidiam operar suas filhas, ou por mulheres que decidiam ser reinfibuladas, eram selecionadas a partir de um conjunto de razões culturalmente disponíveis em função daquelas que pareciam melhor se adequar à situação específica. Em outras palavras, os por quês da circuncisão feminina não admitem uma resposta única, nem mesmo quando se considera uma única sociedade. Em uma pesquisa efetuada no Sudão com uma amostra de 1.804 mulheres e 1.787 homens, Rushwan e seus colegas descobriram que a maioria dos homens (59%) alegavam motivos religiosos, mas apenas 14% das mulheres alegavam esse motivo. A maioria das mulheres (42%) responderam que se tratava de “uma boa tradição”, mas só 28% dos homens recorreram a este motivo. Vinte e oito por cento dos homens e 19% das mulheres afirmaram que ela promovia a higiene, ao passo que apenas uma minoria se referiu ao aumento de fertilidade (1% das mulheres e 2% dos homens). A proteção da virgindade, uma das principais razões mencionadas nos meios de comunicação de massa, aparece como motivo para apenas 10% das mulheres e 11% dos homens, enquanto que o “aumento nas chances de arranjar um marido” é mencionado por 9% das mulheres e incríveis 4% dos homens. Por fim, 13% das mulheres e 21% dos homens se referiram ao aumento do prazer do marido como razão para efetuar a circuncisão feminina ou a reinfibulação (apud Gruenbaum, 2001: 49).
Claro que compreender as razões de determinadas práticas não implica em simplesmente aceitar como verdade aquilo que é oferecido como explicação. De fato, se fosse esse o caso, seria melhor concordar com os defensores de um relativismo epistemológico que colocam no mesmo nível explanatório ciência, literatura e religião. Entretanto, é necessário reconhecer que as crenças (mesmo as falsas) têm um impacto causal na ação das pessoas. E isso implica não apenas identificar corretamente o repertório de crenças disponíveis em uma determinada cultura, mas também os contextos específicos nos quais elas são mobilizadas por agentes e grupos de agentes particulares. Isso certamente não é possível sem a suspensão temporária de valores éticos que possibilite a abertura ao diálogo e, portanto, ao entendimento mútuo.
Mais uma vez, não se trata de negar que a MGF é uma prática que deve ser abolida. A questão é que sua própria abolição requer um entendimento mais profundo do tema do que o que vem sendo propagado pela grande mídia. Por que, por exemplo, um filme como “Flor do Deserto” não poderia ter focado um pouco mais nos dilemas e escolhas que certamente as mulheres de sua família devem ter encontrado? Seria sua mãe uma simples idiota cultural, para tomar emprestada a expressão de Garfinkel, incapaz de questionar os valores de sua cultura, ou alguém cujas circunstâncias particulares não possibilitaram uma escolha diferente da sua?
Dito isto, um dos melhores tratamentos que vi ao tema veio da literatura. Em um excelente livro intitulado Possessing the Secret of Joy (“Possuindo o Segredo da Alegria”), Alice Walker (1991) narra a estória de Tashi, suspensa entre dois universos morais incomensuráveis e para quem a única resposta possível é a loucura. O livro foi brilhantemente resumido e analisado por Débora Diniz (2000; ver também Diniz, 2001), de quem faço uma citação extensa:
O romance de Walker se passa em uma comunidade imaginária da África Setentrional, os Olinkas, uma região endêmica da cirurgia de mutilação genital. O enredo tem como fio-da- meada a infeliz biografia da personagem principal, Tashi, que também esteve presente no livro “A Cor Púrpura”. O início do livro narra a chegada de missionários protestantes à aldeia de Tashi. Esta cena inicial é de fundamental importância para a compreensão da história, pois aponta para um enigma que somente ao final do romance o leitor poderá compreender. Ao contrário de toda a aldeia que se encontrava em festa pela chegada dos missionários, Tashi e sua mãe, Nafa, estavam profundamente abatidas. As duas mulheres viviam o luto pela morte de Dura, a única irmã de Tashi. Para o leitor, a razão da morte de Dura permanece desconhecida até quase as últimas páginas do livro. O fato é que a morte da primeira filha fez com que Nafa decidisse preservar Tashi da cerimônia de iniciação ritual, não permitindo que a mutilassem. Definitivamente, esta era uma opção impensável para a estrutura social a que estas mulheres estavam inseridas.
Mas, em nome desta infração da mãe, um ato seguramente imoral para os padrões valorativos da sociedade Olinka, Tashi não encontra outra saída senão se casar com um estrangeiro, o único homem capaz de aceitar seu corpo não-iniciado. Tashi casa-se, então, com o filho do missionário protestante de sua aldeia e vai com ele morar nos Estados Unidos. A distância geográfica e social de seu povo a permitia sobreviver na imoralidade do corpo não-mutilado. Na verdade, a integridade genital era a condição para a normalidade e a moralidade em sua nova pátria. Tashi foi capaz de viver alguns anos felizes com o marido, até o dia em que seu povo decidiu proclamar a liberdade colonial. Mais tardiamente que os povos vizinhos, os Olinkas engajaram-se no movimento pela independência dos estados africanos. Ouviam-se histórias de massacres, de abandono de aldeias, de dissolução do grupo. Este sentimento de perda das origens provocou em Tashi um vazio quanto à sua identidade cultural, um deslocamento afetivo de seu povo como nunca antes havia sentido. Tashi passou a se sentir uma cidadã sem referências, uma imigrante vinda de lugar nenhum.
Dominada por este sentimento confuso sobre sua nacionalidade, Tashi resolveu fugir e alistar-se nos campos de refugiados dos Olinkas. Sua decisão era fazer parte do exército de libertação de seu povo. No entanto, para os Olinkas, Tashi era uma figura confusa ou mesmo inesperada: uma mulher casada com um estrangeiro e não-mutilada. A desconfiança em relação a ela era enorme. Definitivamente, Tashi não era uma mulher Olinka. Era um híbrido de mulher. Em nome disso, Tashi resolveu submeter- se, mesmo que tardiamente, à cirurgia de mutilação genital. Para ela, este seria o “selo” definitivo da cultura Olinka em seu corpo. De posse desta marca cultural, ela não seria mais alvo de desconfiança ou repúdio, podendo ser aceita como uma mulher comum. Com a mutilação, Tashi não era mais uma mulher imoral; devolveram-lhe a dignidade da moralidade. Mas se a cirurgia de mutilação genital já apresenta sérios riscos à saúde e à integridade física das meninas, mesmo quando executadas em tempos de paz, a cirurgia de Tashi nos campos de guerra deixou graves seqüelas no seu corpo. Foi exatamente neste período de convalescência pós- cirúrgica que seu marido a encontrou.
De volta aos Estados Unidos, Tashi, já recomposta, engravida. E é exatamente a gravidez de Tashi o que inicia o segundo momento narrativo do livro: a nova imoralidade de Tashi, isto é, ser uma mulher não-mutilada para os Olinkas era um fato tão inesperado quanto ser uma mulher mutilada para nos Estados Unidos. Tashi tornou-se uma peça alegórica nos hospitais e clínicas onde passava. Seu corpo era objeto de análises e estudos. Sem esperar, Tashi retorna ao espaço solitário da imoralidade, da anormalidade da diferença. Sua moralidade Olinka é algo inesperado e repudiado pelos estadunidenses. Um corpo mutilado como o seu deveria ser escondido, banido ou, se possível, recomposto. Ora, esta passagem da imoralidade para a moralidade Olinka e desta para a imoralidade estadunidense foi mais forte do que Tashi poderia suportar. Apesar dos esforços no sentido de devolver-lhe a dignidade, a narrativa final de Walker apresenta Tashi como uma personagem louca. E a loucura de Tashi é exatamente a absoluta falta de perspectiva para julgar os padrões de certo e errado, da moralidade ou da imoralidade. A liberdade insana de Tashi a tornou uma figura sem referências no mundo cultural: uma estranha para os Olinkas, uma escrava para os estadunidenses. Uma mulher sem amparo cultural. Mas definitivamente uma mulher livre.
A história de Tashi, e para isso pouco importa os limites da narrativa ficcional de Walker, tem a propriedade de desnudar os limites da crítica cultural. Sim, ao mesmo tempo que é preciso e urgente a crítica moral, a pergunta que permanece é como deve ser conduzido este processo, para que se consiga evitar o abandono dos indivíduos à liberdade da loucura. Libertar os indivíduos das amarras opressivas de cada código moral não é o mesmo que torná-los insanos. A dúvida moral é um processo saudável e necessário, mas para que possa ser levado adiante é preciso que estejamos aptos a viver em um mundo recheado de imorais livres e não de indivíduos moralizados e vítimas de códigos culturais opressivos. Tashi é um exemplo radical de submissão aos códigos morais: sua mãe a confinou à imoralidade Olinka, seu casamento à moralidade estadunidense, a guerra à moralidade Olinka, sua gravidez à imoralidade estadunidense. Não houve outra saída senão a loucura. Mas, infelizmente, como diz o dito popular, “não é louco quem quer”. Tashi foi vítima da loucura. (Diniz, 2000: 2-3).
Embora não tenha aqui a pretensão de responder à questão colocada por Diniz em relação a como a crítica cultural deve ser efetuada, certamente o caminho não é o tratamento unilateral e desumanizador adotado pela grande mídia e que tem se revelado incapaz de estabelecer o diálogo necessário ao entendimento mútuo, por um lado, e o questionamento de nossas próprias práticas, por outro. Ou ninguém aqui ouviu falar do sucesso das cirurgias plásticas genitais que tem gerado um exército de vulvas de designer no Ocidente?
Refêrencias
Diniz, Débora (2000) A Cirurgia de Mutilação Feminina. SérieAnis, Vol. 11, Brasília, LetrasLivres, pp. 1-3, junho. Disponível em: http://www.anis.org.br/serie/visualizar_serie.cfm?IdSerie=17. Consultado em 06 de setembro de 2010.
________ (2001) Antropologia e os Direitos Humanos: O dilema moral de Tashi. In Regina Reyes Novaes Roberto Kant de Lima (orgs) Antropologia e Direitos Humanos. Niterói, Ed. da UFF.
Gruenbaum, Ellen (2001) The Female Circumcision Controversy: an anthropological perspective. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.
Walker, Alice (1991). Possessing the Secret of Joy. Londres, Vintage.
16 comentários:
Muito bom texto, Cynthia. Só não ousei ver o vídeo, no entanto. Na verdade, quase não li seu artigo por conta dele.
Há uns cinco anos, creio, li um livro de Habermas, sobre o qual falei em alguns textos, que trata de problemas parecidos. A partir da tal perspectiva da razão comunicacional ele se colocava o problema de pensar eticamente os diagnósticos genéticos pré-implantação. Para facilitar, pensemos em processos de intervenção genética em embriões humanos. Para ele, trata-se de algo imoral e como tal deve ser combatido por não permitir a(o) outro(a) condições de redefinir uma intervenção feita a partir de princípios, muitas vezes transitórios, de algo como uma melhoria biológica. A solução que Habermas apresenta para o problema é bastante fraca, mas o problema, não. Aplica-se ao nosso compromisso com as meninas submetidas aos processos de mutilação genital.
A perspectiva habermasiana é a de um liberal, mas um liberal que vê o seu liberalismo fazendo água: não há como pensar em um diálogo entre cidadãos em busca de um consenso quando a principal parte interessada ainda não pode exercer cidadania. Agora, é claro que valores como cidadania, respeito ao corpo das crianças (penso também em um amigo judeu que me falava do trauma que para ele significou sua circuncisão, este ato de vínculo entre o judeu e seu Deus), respeito à diferença são parte de nosso repertório cultural. Como tratar um contexto cultural como este, sabendo que ali ocorre tamanha violência contra o corpo de meninas indefesas - questão com a qual dona Magnólia já se deparara, de certo modo, há muitos anos?
Como não sou liberal, e não acredito em uma perspectiva olímpica para pensar a diferença, creio que deveremos tentar entender essas práticas para simplesmente tentar transformá-las. Porque não consigo em relação a isso falar de uma perspectiva que não seja da imanência de minha indignação. Resposta pífia à sutileza e complexidade de seu texto. Jonatas
Gostei muito de seu texto também, Cynthia. E sua complexidade, hélas, é perfeitamente adequada à complexidade do problema.
Como muitos dentre no's, às vezes sinto-me universalista, às vezes relativista - os contextos de pra'ticas e representações dessas mutilações ou circuncisões são bastante diversos e seu texto nos mergulha nessa diversidade.
Agora, so' para complicar mais um pouco, sua argumentação sobre o tratamento das mi'dias fez-me pensar num aspecto grave do contexto globalizado nessa segunda década do século XXI, qual seja o do aumento da xenofobia, do medo e desprezo do outro (ou de quem é classificado como outro) nos ditos pai'ses capitalistas avançados. Coisas como o véu, o Ramadan, as circuncisões, têm sido cada vez mais apresentadas e tratadas como a manifestação da "incompatibilidade" entre "imigrantes" (ou seus descendentes) e "ocidentais". Quando não são os pro'prios governos desses pai'ses a exibi-las como "taras" de muçulmanos, ciganos e outros "selvagens" - como é o caso da França sarkozysta. De formas que estamos, neste caso, diante de formas de universalismo voluntariamente implicadas com um etnocentrismo poli'tico, banalizando e legitimando discursos que, até dez anos atra's, eram classificados como de extrema-direita; legislando e executando poli'ticas de repressão ou expulsão pura e simples de quem é classificado como "o outro". E tudo isso em nome da cidadania e da liberdade.
E nem sei como terminar meu comenta'rio...Espero que outros leitores consigam refletir mais; quando voltar ao ar daqui a duas semanas, passarei pelo Cazzo para ver o que outros pensaram e escreveram sobre o seu texto. Abração.
Também não sei como sair deste labirinto e só posso elogiar texto tão rico e instigante. Vou me permitir apenas uns comentarios crus, quase banais e provavelmente exagerados.
1. “Ou a tendência a se julgar cada cultura a partir de seu próprio contexto” – na realidade, para se manter coerente com a perspectiva advogada de relativismo, não se deveria falar em julgar, mas em compreender. Mas acho que o sentido do post é esse, e ele é muito bem vindo.
2. Se bem me lembro, acho que a perspectiva relativista-metodológica prescreve a ausência de um julgamento holístico da cultura, mas nada diz sobre o julgamento de uma prática ou outra. Não sei faz diferença, mas o esclarecimento poderia ajudar na procura por um caminho que resultasse num diálogo e combate efetivo em direção à mudança.
3. O problema é que este relativismo deixou de ser uma parte do processo para se tornar o processo – nos obriga cada vez mais a não falar um ai sobre quem quer que seja, como se criticar um procedimento qualquer fosse a própria negação do outro. Isso impede, inclusive, que se chame em questão os procedimentos de determinada cultura em relação a seus próprios princípios, como se somente o “Homem do Iluminismo” fosse incoerente e criasse seus “monstros da razão”. Somente nós somos bárbaros, os outros sempre possuem uma razão compreensível ao que fazem. Mais: nos coloca um imperativo ético de adaptação, de cuidado para não ofendermos ninguém, sem um procedimentos igualitário de apresentar o mesmo comportamento aos membros de outras culturas.
4. E aí, numa volta do parafuso, essa perspectiva fica sendo a única exótica. Somente os gregos, os teólogos medievais ou os iluministas seriam uns “coitados” que, muito etnocentricamente, imaginavam que um apelo universal não passava de um aspecto irredutível de sua cultura particular. Em vez de desetnetizar e procurar realçar nossa comunhão, todos eles são apresentados como pertinentes apenas a seu restrito universos histórico-cultural, de forma a que eles só possam se comunicar à comunidade de descendência – nós.
5. Isso acaba então, tendo um certo apelo paternalista. Nós os entendemos, os outros não. No fundo, é isso que a direita diz. Daí que seja ela, na Europa, pelo menos, a que mais utiliza o discurso universalista de forma efetiva e direta, mesmo quando nega sua essência na prática.
6. O meu palpite é que isso não é tão novo. A forma pela qual certos costumes populares na própria Europa foram combatidos guarda certa relação com essa manipulação do universalismo. Mas, naquelas épocas, não se achava que a luta por direitos, respeito ou cidadania passava pela defesa da cultura originária, embora resistências cotidianas fossem exercidas, às vezes com afinco. Nosso problema é que no mundo da hipercultura, da assertiva "cultura é política", das guerras culturais, do acesso à cidadania através das políticas culturais e do reconhecimento cultural, isso se tornou impossível.
Jonatas,
Eu também não acredito muito nessa estória de consenso. Mas acredito no "é conversando que a gente se entende". O que fazer com esse entendimento são outros quinhentos...
Tâmara,
realmente, o governo do Sarkozy é meio punk. Parece que eles traçam a linha demarcatória no lugar errado: se, por um lado, concordo com a prisão da "parteira" que foi flagrada efetuando MFG na França, ainda tenho muitíssimas dúvidas em relação à questão do véu.
João Paulo,
Acho que o sentido de "julgar" que a Ellen Gruenbaum utiliza quando fala de relativismo cultural refere-se à emissão de juízos de fato a partir da suspensão temporária de nossos valores éticos. Como diz um neo-kantiano qualquer que ajudou a criar a tradição compreensiva na sociologia (que não me lembro mais quem pode ter sido), "pensar é julgar". Sendo assim, não faria muito sentido a distinção entre "julgar" uma cultura como um todo ou aspectos desta a partir de seus próprios padrões. A impossibilidade do primeiro julgamento sob critérios relativistas só se dá em termos do referente, que se torna ausente (relativo a que, se não pode haver critério externo à própria cultura?).
No mais, concordo com você que vivemos na era da hipercultura.
Abraços.
Cynthia,
Bom ponto. A despeito disso, há que se levar em consideração dois aspectos: nenhuma cultura é um universo isolado (padrões são semelhantes ou até compartilhados) e a atividade de compreensão necessita tanto da suspensão quanto da reafirmação de nossos próprios valores. "É preciso outra cultura para conhecer outra cultura", na bela síntese de Marshall Sahlins. Ele não advogava, é claro, o julgamento, como se estivéssemos numa agência de classificação dos bons modos culturais, mas acho que a gente pode apelar para essa epistemologia com o fito de permitir a crítica sem recair no etnocentrismo.
Um abraço.
Você tem razão, João Paulo. E é por isso que devem existir limites: compreender algo não significa necessariamente aceitá-lo como justo ou como verdadeiro.
Abraço
Excelente texto, Cynthia! E, como você bem diz no final ao lembrar as cirurgias plásticas de vulva e etc., lança luzes sobre outras situações nada distantes de nós. Falo da violência, claro, e da imensa dificuldade que temos de compreender e explicar as razões das mulheres para entrarem e permanecerem em relações amorosas abusivas. Vítimas absolutas ou cúmplices do poder masculino tem sido as alternativas explicativas usuais. Acho pouco e frágil. Seu texto aponta para o grau de complexidade com que temos que lidar nesses casos. Muito bacana.
Obrigada, Ana Paula. Como o Gabriel colocou no seu texto sobre o a dor do outro distante, sempre há essa possibilidade de essas questões serem vistas como puro entretenimento e nos fazerem pensar como somos "diferentes" e superiores. Mas acho que uma perspectiva menos simplista gera a possibilidade de exergarmos que, em muitos casos, as formas de violência mudam, mas o fato persiste. Vinhos velhos em novas garrafas...
Quando teremos o prazer de publicar alguns dados sobre seus estudos sobre violência aqui no Cazzo?
Eita Ana, lembrei justamente de vc e essa sua observação/exemplo ao ler o texto!
Quando eu (re)começar a escrever, nem se preocupe, mando alguma coisa pra vocês. Adoraria ouvir seus comentários. No momento, tô revendo tudo, aproveitando o luxo que é poder para estudar e entender melhor as coisas...
Cynthia,
Passei aqui para juntar-me ao coro: um texto instigante e corajoso sobre um tema dos mais complicados. Concordo com a tese de que a via média que buscamos é a de um universalismo, mas um universalismo contextualmente informado e que não dê a si próprio uma vida fácil, incorporando a “técnica mental” relativista como um indispensável regulador ou momento (com o perdão da hegelianice) dos seus juízos ético-políticos. Parabéns pelo ótimo post (mais um!).
uau...
mutchas cositas a se pensar...
mas, sem retirar a validade de toda a complexificação analítica da situação, me lembrei da biografia de Ayaan Ali. e pensei na repulsa do jonatas ao ver (ou não ver) o vídeo.
tenho a impressão de que o nosso medo de etnocentrizar as coisas está nos tornando meio "educadinhos” demais, quase medrosos. Mornos diante de coisas que pedem posturas enfáticas.
O fato é que eu não tenho muita certeza de que escutar a versão desta galera que (apóia ou compreende ou relativiza) a validade da circuncisão mudaria algo em mim acerca da cretinice que ela me parece. Andamos com muito medo de radicalizar, temendo que nos tornemos intolerantes e propagadores de ódio cultural.
Mas eu creio na validade de certos radicalismos. Até mesmo, admiro certos radicais. (da mesma forma que também odeeeeio tantos outros).
Pensando que o conceito de Benhabib de “igualdade pela diferença” é a forma mais pragmática e aplicável de um universalismo saudável, penso que temos direito de não endossar nada que nos pareça desumano, nem mesmo escutando as supostas motivações que conduzem a isso. Por outro lado, se alguém quiser fazê-lo, por mim, tudo bem.
Assim, na minha cabecinha medíocre, corroborando com Ayaan (ela própria, circuncisada), esse tipo de prática não merece nenhum tipo de tentativa de explicação. Ela é criminosa, cruel e algumas vezes fatal. Algo que deve ser plenamente criminalizado e suprimido. E eu me dou o direito de radicalizar diante daquilo que me parece desumano. Não vejo possibilidade de diálogo. Entretanto, meu radicalismo jamais dará margem à qualquer tipo de violência como forma de punição. Abomino todas as formas de violência, mas se proibir tal prática é entendido como exercer violência cultural, me descubro uma violentadora.
É isso. Espero ter me feito entender e não ser execrada pela comunidade mais educadinha.
Oi, Gabriel,
Como eu havia lhe dito por email, a publicação do seu post e esse que escrevi tinham como objetivo lançar algumas possibilidades de reflexão para um seminário na minha turma de fundamentos de sociologia. O objetivo do seminário era incorporar conceitos como culura, etnocentrismo e relativismo cultural em um debate sobre política social. Eu acho que o que deixa os alunos desse nível de ensino mais aflitos é o reconhecimento da dificuldade de uma proposta política universal quando se considera os diversos elementos de uma situação qualquer. Eu acho um exercício muito interessante para destruir as concepções simplistas e demonstrar a necessidade de uma argumentação bem construída.
No seminário em questão, os alunos chegaram ao conceito de "universalismo contextual" como solução para o problema da relação "universalismo/relativismo", mas era interessante perceber como os elementos universalistas ("vida", "liberdade" etc.) eram tomados de forma absoluta. Tornou-se óbvio que o problema era que, implicitamente, eles haviam estabelecido uma relação bastante rígida e automática entre universalismo/etnocentrismo e particularismo/relativismo. Não me restou outra saída que não "relativizar" o relativismo e expor a ideia de "universalismo contextual" como um oxímoro (da próxima vez, vou seguir seu exemplo e usar o termo "hegelianice" - haha!).
Não tenho certeza de que o problema ficou 100% claro, mas a julgar pelas expressões atônitas, creio que saíram da aula questionando suas certezas, o que é o primeiro passo para a construção do conhecimento.
Mais uma vez, obrigada por ter contribuído para o nosso debate. Espero que possamos contar com outras contribuições suas num futuro próximo.
Beijo.
Verí,
Concordo com você em relação a diversos pontos, mas não acho que a ideia de diálogo e de compreensão implique a ideia de relativização. De um ponto de vista teórico-metodológico, a questão que me interessa é como o diálogo pode gerar entendimento sem, necessariamente, recorrer à tradição como elemento de validação (o que geraria o relativismo a que vc se refere). Neste sentido, concordo com a ideia Habermasiana de crítica da tradição, mas não com sua solução, que se baseia no estabelecimento de um consenso construído a partir de um diálogo que ocorre em uma situação ideal de fala.
Creio que o perigo de uma "fusão de horizontes" cuja validação depende exclusivamente do apoio na tradição está bem ilustrado na fala da Kavita Ramdas, no vídeo acima: coisas tão distintas como o uso da burca com fins estritamente estratégicos por parte de uma mulher jurada de morte pelo talibã é percebido como algo equivalente a um coral de mulheres lésbicas que recorrem a canções tradicionais da Bósnia e da Sérvia a fim de promover a integração entre tradições culturais que se colocaram de forma antagônica e beligerante nos conflitos dos Balcãs. Sem nenhum desrespeito ao trabalho dessas últimas, e reconhecendo o significado que "sair do armário" pode ter em um lugar como a Bósnia, simplesmente não dá para dizer que o uso que que se faz da tradição é equivalente nos dois casos. Em outros termos, a compreensão jamais pode envolver uma relativização que torne equivalentes coisas que não o são. Creio, neste sentido, que o relativismo deve estar a serviço da compreensão, mas não necessariamente o contrário.
Beijo.
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