segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Risco como questão política, versão 2.0: minimamente revisado



Jonatas Ferreira

[Esse texto curto seria a base de minha participação num seminário internacional sobre nanotecnologia. Iria falar sobre nanobiotecnologia e risco. Infelizmente a doença da qual ainda me recupero, uma hérnia de disco, não me permitiu comparecer ao tal seminário. Publico então no Cazzo a parte mais teórica de minha comunicação, deixando de lado as questões técnicas e empíricas da discussão para a qual pretendia contribuir. Procurei ser bastante pomposo e sociólogo nesse texto, mas a inspiração me faltou. Espero ao menos ter sido suficientemente obscuro.]

Pensar o desenvolvimento e introdução das novas tecnologias a partir da categoria risco tem sido uma constante ao longo dos últimos 50 anos e isso parece particularmente verdadeiro quando consideramos as nanotecnologias. A introdução de novos materiais, com suas novas propriedades químicas e físicas, a possibilidade de nanopoluição e a constatação de que nosso organismo não estaria sequer habilitado biologicamente para identificar alguns desses materiais radicalizam a percepção de um mundo técnico extremamente arriscado. É claro que a reconfiguração radical da natureza promovida pela Revoluçaõ Industrial já traz em si esse fantasma. A criação de seguros, da previdência pública constituíram uma evidência de que seria preciso compartilhar, democratizar eventuais danos atrelados ao desenvolvimento capitalista: custos sociais, tais como, saúde, emprego, danos ao meio ambiente. O cálculo de risco consolidou a crença de que, embora haja efeitos não-pretendidos no progresso do capitalismo, esses efeitos poderiam ser submetidos a um cálculo probabilístico que viesse a capacitar o sistema como um todo a arcar com eventuais desastres ambientais, sociais, econômicos. Creio, porém, que é a partir da invenção das armas de destruição em massa que fica mais claro que capitalismo e risco, modernidade e risco, se quiserem, andam de mãos dadas. E, no entanto, que tipo de cálculo pode democratizar, socializar os custos econômicos, sociais, ambientais e morais de algo como a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial? Que tipo de cálculo pode estabelecer um colchão de proteção contra eventos como o acidente ocorrido em 1986 em Chernobil, Ucrânia? Como equacionar e assimilar o aquecimento de 4 ou 5 graus do clima na terra? Há um paradoxo no cálculo de risco: ele se torna mais urgente precisamente num cenário cultural, político e técnico em que esse tipo de cálculo se torna inócuo. O futuro já não se apresenta como destino, porém a tentativa de calculá-lo, de antecipá-lo não nos torna mais confiantes. Pelo contrário, esse gesto nos impõe a ansiedade, o pânico. O sonho por um tipo de controle que constatamos ser cada vez mais irrealizável, paradoxalmente, reforça o lugar do cálculo de risco em nossa cultura. Para o bem e para o mal, a ação das novas tecnologias nas sociedades contemporâneas se apresenta em uma escala cuja racionalização se apresenta sempre como um desafio. Mas quem haverá de tomar para si tal desafio senão a tecnociência?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Pedido de desculpas

A jornalista Luce Pereira apresentou hoje, em sua coluna no Diário de Pernambuco, suas desculpas a tod@s que compõem o PPGS/UFPE, em especial a Marcelo:

Desculpas I
Um pedido de desculpas ao doutorando Marcelo Miranda e aos integrantes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, onde ele apresenta, hoje, a pesquisa Sentidos ambivalentes e possíveis desconstruções da heteronormatividade via programa televisivo recifense papeiro da Cinderela.

Desculpas II

Em nota publicada no dia 24, sob o título Papeiro pomposo, usei um tom brincalhão para observar que até produções do gênero besteirol, como é o caso do programa objeto da pesquisa de Miranda, ganham, nos trabalhos acadêmicos, a companhia de termos tão formais que o resultado final nem de longe lembra a imagem de deboche e vulgaridade costumeiramente passada por elas. Em momento algum houve intenção de desqualificar o trabalho, como entenderam professores da casa.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Mais uma da imprensa pernambucana...

Em nota no Caderno C4 do Diário de Pernambuco de hoje, a jornalista Luce Pereira publicou o seguinte texto, sob o (excelente) título de "Papeiro Pomposo":

Os termos nascidos [sic] para batizar teses em universidades são tão pomposos que até criações do gênero besteirol completo ficam parecendo coisa séria. Sexta-feira, no Seminário do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, um doutorando apresenta trabalho em torno do tema - Sentidos ambivalentes e possíveis descontruções da hetenormatividade via programa televisivo recifense papeiro da Cinderela.

Segue a resposta, com solicitação de publicação no referido jornal, assinada por mim, por Eduarda e por Silke:

Em nota publicada no dia 24/11 no Diario de Pernambuco, a jornalista Luce Pereira utiliza o tom pejorativo para se referir à tese de doutorado desenvolvida por Marcelo Miranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPE. Destacando o título de um trabalho acadêmico, a jornalista sugere que os termos utilizados nas universidades emprestam seriedade a criações do “gênero besteirol” – desqualificando, dessa forma, a pesquisa desenvolvida pelo doutorando no Programa supracitado, bem como a própria produção cultural contemporânea neste gênero. A fim de compreender como um produto cultural pode ser uma “coisa séria”, convidamos a jornalista a participar do Seminário intitulado “Sentidos ambivalentes e possíveis desconstruções da hetenormatividade via programa televisivo recifense papeiro da Cinderela”, a se realizar na Sala de Seminários do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, 12 andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE.

Cynthia Hamlin, Maria Eduarda Rocha e Silke Weber (Professoras do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE)

sábado, 20 de novembro de 2010

É errado comer a sua tia

Mulheres e crianças Tupinambá devorando o corpo de um prisioneiro, por Theodor de Bry (1557)

O sociólogo canadense Fuyuki Kurasawa (2004) cunhou o termo “imaginação etnológica” a fim de propor uma inversão no olhar intercultural tradicional e “antropologizar” - no sentido de desfamiliarizar, desnaturalizar e contextualizar - os costumes, crenças e arranjos institucionais do Ocidente por meio da justaposição de uma série de "alteregos não-ocidentais". Embora fique aí a indicação do excelente livro de Kurasawa, eu quero mesmo é falar de outro livro, o Eating your Auntie is Wrong, the Stephen Arnott. Trata-se de uma brincadeira antropológica, uma espécie de imaginação etnológica (des)invertida, ou uma compilação daquilo que Arnott chama de “os costumes mais estranhos do mundo”. Abaixo, uma pequena amostra do avesso do avesso de Kurasawa, ou o politicamente incorreto dos estudos pós-coloniais. Entre parênteses, minhas reflexões sócio-antropológicas sobre as citações do livro do Arnott.

“Em algumas tribos aborígenes, fatias de carne eram retiradas de um cadáver pouco antes de seu enterro. Essas fatias eram entregues às pessoas enlutadas, para serem comidas. No entanto, algumas normas regulavam quem comia quem. Por exemplo, um homem podia comer o marido de sua irmã e a mulher de seu irmão, mas não seus próprios filhos. Uma criança não podia comer seu pai, enquanto que uma mãe podia comer seus filhos e vice-versa”. (E foi em resposta a essas práticas bárbaras que surgiu o complexo de Édipo).

“ Na América do Norte, os Algoquin e os Huron costumavam casar suas redes de pesca com jovens mulheres. Acreditava-se que as redes ficariam mais felizes com suas esposas e pegariam mais peixes”. (Caso a poligamia fosse proibida entre esses povos, fico imaginando as terríveis dúvidas que acometiam essas pobres moças: “um homem ou uma rede, um homem ou uma rede?”).

“Os gregos antigos acreditavam que uma mulher não poderia conceber se colocasse sobre o umbigo um tubo contendo o testículo de um gato”. (Infelizmente o livro não especifica o momento exato em que isso deve ser feito, de forma que talvez seja melhor tentar o método dos antigos egípcios: fezes de crocodilo. Sim, melhor depois, em consideração ao seu parceiro).

“As obrigações de alguns reis de tribos da África Ocidental eram tão perigosas e desagradáveis que os candidatos tinham que ser seqüestrados e forçados a assumir o trono”. (Parece incrivelmente familiar...)

“Os romanos antigos acreditavam que cortar o cabelo no mar traria má sorte. A crença sobreviveu na Marinha Real Britânica e os marinheiros só cortavam seus cabelos durante tempestades violentas, já que, pela lógica, o tempo não podia piorar”. (Um claro indício da “mentalidade primitiva” dos ingleses, que, obviamente, não conheciam as leis de Murphy).

“Na Índia, um espirro único era sinal de má sorte, mas espirros múltiplos eram considerados boa sorte. Outra pessoa espirrando à sua frente ou ao seu lado direito significava má sorte, enquanto um espirro vindo de trás ou da esquerda era bom. Se alguém espirrasse enquanto plantava sementes, aplicava um remédio ou começava a aprender alguma coisa, isso era sinal de sucesso. O espirro de um quadrúpede, de uma pessoa em frente a uma janela, de um homem com os cabelos despenteados ou de alguém carregando instrumentos de tortura era sempre sinal de má sorte”. (Por isso, a educação no hinduísmo antigo envolvia a aprendizagem de quatro princípios básicos: a vida virtuosa (dharma), o acúmulo de riqueza (artha), o prazer pelos sentidos (kama) e a ciência do espirro (tchim). Como esta se mostrou excessivamente complicada, foi depois substituída pelo princípio do desprendimento (moksha), de onde deriva a ideia de reincarnação).

Cynthia Hamlin

Referências (afinal de contas, isso é um blog acadêmico!)

Kurasawa, Fuyuki (2004). The Ethnological Imagination: a cross-cultural critique of modernity. Minneapolis e Londres, University of Minnesota Press.
Arnott, Stephen (2004). Eating your Auntie is Wrong: the world’s strangest customs. Londres, Ebury Press.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010


O bicho fofo do Cazzo faz aniversário todo dia 15 de novembro. E desde que nasceu, segundo Perrusi Pai. Difícil foi a gente conseguir se juntar para a foto, mas, com três dias de atraso - voilà!

Parabéns, Arture!

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Ahmadinejad e Obama ou o fardo da democracia de lobbies















Tâmara de Oliveira

Outro dia, conversando aqui com cientistas sociais sobre o ataque religioso-fundamentalista em nossa última campanha eleitoral, ataque que inevitavelmente chocara laicos tão ortodoxos como costumam ser intelectuais franceses, ouvi de um deles a apresentação de outra problemática sobre a sucessão governamental no Brasil: sua “preocupação” devido ao “acordo” do governo Lula com o Irã de Ahmadinejad e seus aiatolás. Fiquei passada. Constrangida mesmo, afinal de contas quem, vivendo na Europa, não sabe que o Irã é representado quase exclusivamente como um totalitarismo religioso fianciador do terrorismo islâmico internacional, a quem governantes democráticos não devem dizer nem bom dia ?

Mas eu tinha uma resposta na ponta da língua : acho até importante que a América Latina e outros emergentes baguncem um pouco a geo-política no oriente médio, já que Israel parece-me uma democracia que cai há um bom tempo em armadilhas do fundamentalismo religioso e, considerando os efeitos geo-políticos da aliança EUA/Israel e da culpa européia pelo nazismo, isso prejudica inclusive a sustentabilidade de Israel. Todavia, o risco de que com essa resposta eu fosse acusada imediatamente por anti-semitismo-de-esquerda, era grande demais. Preferi então temperar a goela com o vinhozinho nacional deles (a França ainda tem seus encantos) e responder constrangida que as relações Brasil/Irã não implicam em afinidades entre o governo brasileiro e o fundamentalismo islâmico e que, além disso, as prioridades brasileiras são outras. Mas fiquei com aquilo atravessado na garganta. Haja vinho francês !

domingo, 7 de novembro de 2010

A resolução liberal do paradoxo da identidade democrática


Artur Perrusi

Aproveito o ensejo (não sei bem qual seria, mas acho legal começar o texto assim) e publico uma resenha do livro de "MESURE, Sylvie & RENAUT, Alain (1998). Alter Ego: les paradoxes de l'identité démocratique. Paris: Flammarion".

A resenha saiu, originalmente, na revista Política & Trabalho (aqui). Ela é antiga, mas o livro ainda continua bem atual, até porque não foi traduzido no Brasil, existindo apenas uma tradução portuguesa (aqui). Além do mais, o tema interpela a nossa conjuntura.

Lá vai:

"Como articular a individualidade, e, portanto, a singularidade de todo ser humano com a condição de que todo indivíduo faz parte de uma comunidade, onde compartilha valores e identidades em comum? Como fazer isso em plena era democrática, cujos alicerces são os direitos humanos e a liberdade individual? Como conciliar a sacralização do indivíduo com a necessidade de normas coletivas? A reafirmação do sentido comunitário de toda identidade não entraria em contradição com a lógica do individualismo contemporâneo? O comunitarismo ou o multiculturalismo são incompatíveis com a visão liberal da democracia? São questões que o livro de Mesure e Renaut tentam esclarecer através de uma análise sutil e profunda, cujo mérito é a explicitação da polêmica, sem subterfúgios ou tergiversações sobre a complexidade do assunto, e o respeito às diversas posições sobre o tema, principalmente em relação ao multiculturalismo americano.

Vale dizer que não é a primeira vez que os dois autores escrevem juntos. Em 1996, produziram um instigante estudo sobre a questão dos valores na Contemporaneidade, retomando a discussão weberiana sobre o politeísmo dos valores e a "guerra dos deuses" (MESURE & RENAUT, 1996). Nitidamente, são pensadores que desconfiam do relativismo e do niilismo contemporâneo, criticando a desconstrução do sujeito patrocinada pelo pós-estruturalismo francês e procurando uma saída filosófica, cuja estratégia passaria pelo resgate da ética e por uma filosofia que tratasse racionalmente os valores do mundo moderno . Pois tanto Mesure como Renaut fazem parte de uma nova geração filosófica que, nos anos 90, começa a substituir a antiga geração pós-estruturalista. Há, nesse período, uma preocupação acentuada com a valorização da ética e da democracia, da individualidade e da subjetividade. Aparentemente, uma volta aos "velhos temas", quiçá impulsionada pelo recuo de várias filosofias, antes dominantes no cenário filosófico, agora fenecendo diante das reviravoltas da história. A década de noventa, talvez, pareça um deserto cheio de cadáveres reluzindo ao sol: Marx virou um tijolinho, vendido como souvenir do Muro nos mercados capitalistas; Freud só resiste nos delírios dos lacanianos; Heidegger, depois do "caso Farias", foi banido pelo Tribunal de Filosofias, e Nietzsche dançou feio nos bailes do neokantismo.

Dos dois autores, Sylvie Mesure seria a menos conhecida e a mais acadêmica, sem tintura midiática. Tradutora de Dilthey e Scheler, é autora de um ensaio sobre Aron (MESURE, Sylvie, Raymond Aron et la raison historique, Paris: Vrin, 1984) e de um estudo sobre Dilthey (Ibid. Dilthey et la fondation des sciences historiques. Paris: PUF, 1990). Já Alain Renaut é um pensador envolvido em várias polêmicas filosóficas, sendo uma figura um tanto midiática, embora não se iguale ao seu grande parceiro de co-autorias, Luc Ferry. É deles, inclusive, o ambicioso e controverso "O pensamento 68" (FERRY, Luc & RENAUT, Alain. La pensée 68.Paris: Gallimard, 1988), cuja crítica implacável ao chamado pós-estruturalismo gerou vários inimigos no campo acadêmico francês. E não pararam por aí: organizaram uma coletânea, "Por que não somos nietzschianos?" (FERRY, Luc & RENAUT (orgs), Porquoi nous ne sommes pas Nietzscheens. Paris: Grasset, 1991), que destrói a marteladas Nietzsche e, claro, como conseqüência, o nietzschianismo francês.

Além de Luc Ferry, pode-se incluir nessa "nova geração" Robert Legros, Vincent Descombes, Andre Comte Sponville, Alain Boyer; além desses, convém lembrar, na renovação dos anos 90, a produção filosófica de um Alain Finkielkraut ou de um E. de Fontenay, todos os dois da matriz neo-heideggeriana, como também um conjunto de pensadores, conhecidos como neo-toquevilianos, todos devedores de alguma forma de Louis Dumont: G. Lipovetsky, M. Gauchet e A. Ehrenberg.

De todo modo, a nova geração não é homogênea filosoficamente, apresentando diferenças evidentes, embora tenha os mesmos adversários. Ou tinha, pois, nos anos 90, a nova filosofia francesa decretou a morte do dito pensamento 68 (Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, Althusser, Bourdieu...). De qualquer forma, com a morte física de praticamente todos os "soixante-huitards" , além do fato de não terem deixado, pelo menos por enquanto, nenhum sucessor de relevo, a polêmica tornou-se unilateral, sem verdadeiros interlocutores, com o campo adversário repleto de fantasmas. Realmente, nem de tudo ficou um pouco e o que sobrou foi um deserto.

Mas a vida continua e, se os velhos adversários desapareceram, sempre surgem outros, florindo um pouco o deserto. E o tempo, convenhamos, amolece até mesmo os mais duros: o "Alter Ego", apesar de todos os combates, não é um livro demolidor — ao contrário, a crítica mantém-se respeitosa, mesmo nos grandes momentos de discordância, diante das posições dos adversários. Parece que, quando Renaut escreve com Ferry, é mais contundente e peremptório, suavizando o tom na companhia de Mesure. Ou, talvez, a explicação seja outra: os principais adversários de "Alter Ego", a começar por Charles Taylor, não apregoam o fim do sujeito e nem percebem a subjetividade como o campo da dominação, como faz, por exemplo, o pós-estruturalismo; por isso, a crítica pôde ser feita sem que se estabelecesse uma diferença intransponível. Além do mais, como a pretensão de Mesure e Renaut seria a de "corrigir" o liberalismo político, incorporando criticamente as objeções que lhe fazem o multiculturalismo e o republicanismo, as divergências estão mais no campo das interpretações e das soluções propostas do que em diferenças de fundo paradigmático; afinal, dois expoentes do multiculturalismo, como o próprio Taylor e Michael Walzer, dizem-se "liberais" e propõem uma crítica ao liberalismo clássico a partir de uma posição liberal dita mais hospitaleira.

[Para acessar o texto completo, em PDF, clique aqui]

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Memória eletrônica e desterritorialização


Jonatas Ferreira e Aécio Amaral

“Se a memória pode se industrializar, isso se deve ao fato de que ela é tecnologicamente sintetizada, e se essa síntese é originária, é porque aquilo que define o quem é sua finitude retencional: sendo sua memória limitada, essencialmente faltante, radicalmente desmemoriada [...], ela deve ser suplementada por suportes que não sejam apenas os meios de a conservar, mas as próprias condições de sua elaboração” (Stiegler, 1996, vol. 2: 16)

Os suportes de memória não são apenas meios de conservação, “mas as próprias condições de sua elaboração”. Essa proposição, cuja orientação derridiana parece evidente, deve ser recuperada em uma tradição bastante antiga. Já Platão oferece uma reflexão bastante elaborada acerca da relação que existe entre suporte e memória. Segundo ele argumenta, pensada como suporte mnemotécnico, a escrita alfabética não é apenas um instrumento servil do pensamento, mas uma estrutura sobre a qual as possibilidades específicas do pensar são estabelecidas. Por perceber a seriedade dessa constatação, ele questiona a conveniência de se proceder ao registro escrito da reflexão filosófica. Suspenso do contexto de sua produção, o saber, paralisado na memória escrita, seria incapaz de responder às demandas dinâmicas e sempre localizadas da vida (Ferreira, 2003). O saber verdadeiro demandaria a presença de interlocutores ativamente envolvidos no desvelamento do real. Talvez por esse motivo Santo Agostinho estranhe o hábito de seu mestre, Santo Ambrósio, de ler em silêncio: “[...] na Numídia, ele redigiria suas Confissões e ainda o inquietaria aquele singular espetáculo: um homem em um aposento, com um livro, lendo sem articular palavras” (Borges, 1999, vol. 2: 100-101). A leitura pública é sempre uma experiência menos radical de acesso à palavra escrita que a leitura solitária do texto. É essa experiência radical da escrita, de uma portabilidade semelhante àquela que experimentamos quando escutamos uma orquestra sinfônica através de walkman, que parece espantar Santo Agostinho.


Séculos depois, Maurice Halbwachs comentaria a respeito do registro histórico que apenas em sociedades onde a memória coletiva, a força orientadora da tradição tiver perdido sua tensão, onde a própria idéia de comunidade ameaçar perder-se no esquecimento, a história escrita ganha importância. Essa desconfiança com relação à escrita, à prótese, faz-nos pressentir algo fundamental acerca da relação entre memória e suporte técnico. Trata se de decidir se a boa educação deve ou não se apoiar no registro escrito, sobre uma muleta técnica. De modo sub-reptício, entretanto, insinua-se na realidade a necessidade de decidir entre dois padrões de suporte de memória, e não mais entre “técnica” ou “liberdade”. Um padrão técnico oral e presencial e outro escrito e nômade. Diferentes suportes mnemotécnicos geram possibilida des existenciais e sociais distintas.

À revelia de sua preocupação teórica central, nomeadamente, afirmar um campo “não-técnico”, “não-protético”, como condição de existência de uma memória e um agir legitimamente humanos, o pensamento metafísico inevitavelmente se depara com a perspectiva de uma conclusão inesperada. Há em seu argumento um passo não dado; uma conclusão de implicações poderosas permanece sufocada. A memória não pode existir sem o suporte técnico, como algo puramente cerebral; o passado não pode sobreviver sem os suportes técnicos que nos inscrevem numa determinada cultura, tradição. Posto que a memória não é possível sem artifícios como a linguagem, a escrita, falar da memória é falar do esquecimento. É falar daquilo que não podemos reter e
recuperar, por certo. Mas também daquilo que suprimimos, sublimamos de nossos arquivos de memória para que o próprio arquivamento seja política e epistemologicamente possível. A partir de Freud, já sabemos que a experiência da memória é associada ao reprimido, àquilo que precisa ficar oculto para que uma determinada estrutura de rememoração possa ser legitimada. E aí mesmo reside seu elemento político. Falar de memória é fala de uma certa estrutura de arquivamento que nos permite experiências socialmente significativas do passado, do nosso presente e de nossa percepção do futuro. Se isso é verdade, como acreditamos, a digitalização da memória, a constituição de uma memória eletrônica, instantaneamente acessível, deve ser entendida como um acontecimento maior de nossa história recente. Quando nada, tomam pela própria oportunidade de acessar instantaneamente uma quantidade colossal de memória escrita, fotografada, gravada – fato tanto celebrado por uns, Pierre Lévy e sua “inteligência coletiva”, por exemplo, como lamentado por outros. O que deve ficar nas sombras para que um tal arquivo seja produzido? A instantaneidade de acesso à informação, para Virilio, deve ser pensada dentro de um contexto tecnológico em que a informação não pode mais viabilizar a reflexão. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de, numa sociedade global, o volume de informação relevante para decidirmos acerca de nossas vidas ser extremamente elevado - donde um certo pânico em lidar com uma quantidade sobre-humana de memória. Quem não se recorda daquele conto tão citado de Borges em que um determinado imperador se empenha numa cartografia absolutamente inútil precisamente por ser excessiva? A memória deve alimentar a decisão.


[O texto completo foi publicado na revista Política e Sociedade da UFSC. Clique aqui para obter todo o arquivo em PDF].