"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
O pânico de Santa Maria
Por José de Souza Martins - Sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Metrópole], Segunda-feira, 28 de janeiro de 2013, p. C10.
Há no Brasil um elenco de tragédias decorrentes de pânico em recintos fechados, com numerosas vítimas fatais. Ficou na memória popular o caso ocorrido em 1938, numa matinê no Cine Oberdan, no bairro do Brás. Alguém gritou “fogo!” Os que estavam no balcão dispararam em direção às saídas. Trinta e uma pessoas morreram esmagadas, crianças na maior parte. Numa tarde de domingo de dezembro de 1961, um incêndio criminoso no Gran Circus Norte-Americano, em Niteroi, matou mais de 500 pessoas, 70% crianças. O caso de Santa Maria é um caso de pânico em recinto desprovido de meios adequados à atenuação de suas conseqüências mais graves. As vítimas tentaram escapar, mas não encontraram a saída.
O pânico é característico da sociedade moderna porque a multidão é dela praticamente constitutiva. É uma sociedade que frequentemente se expressa como corpo coletivo em grandes aglomerações humanas, temporárias, que atenuam ou anulam a competência para a reflexão individual e a decisão pessoal. Cada um se torna dependente do comportamento dos outros, comportamento por contágio.
O caso paradigmático de pânico foi o do Mercury Theatre, um programa radiofônico de Orson Welles, na noite de Halloween de 1938, que transmitia uma dramatização da obra de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos. Para imprimir realismo à apresentação, o programa foi interrompido com a transmissão de uma notícia extraordinária: marcianos estavam desembarcando em diferentes pontos do país. Segundo o estudo clássico de Hadley Cantril, The Invasion of Mars, milhares de pessoas foram atingidas pelo pavor.
O comportamento coletivo é tendencialmente irracional, provocado por fator geralmente repentino, como uma faísca, uma explosão, um grito, uma falsa notícia alarmante, em situações sociais em que as referências estáveis de conduta, que são as normais e corriqueiras, não operam plenamente. As pessoas estão cercadas, predominantemente, por desconhecidos e os códigos de conduta são em boa parte improvisados no momento, de reciprocidades meramente reativas. Quando um começa a correr, todos correm, mesmo sem saber o motivo. É essa característica sociológica do comportamento coletivo que impõe a prudência e a providência de que as situações de multidão sejam regulamentadas e condicionadas por marcos e instrumentos de referência de conduta e de segurança em situação de emergência: saídas largas e em número proporcional ao público presente, extintores de incêndio, especialistas em orientação de multidão, iluminação, etc. São os lembretes das normas sociais interiorizadas, que essas situações invariavelmente colocam entre parênteses. O caso de Santa Maria, pelas informações até agora disponíveis, sugere que o alto índice de mortes foi agravado pela falta desses cuidados.
Quando do pânico decorrem mortes, as pessoas surpreendidas nos trajes, nos atos, no cenário e na circunstância “impróprios para morrer”, numa cultura funerária como a nossa, tradicional, que pressupõe a morte em família, as sequelas sociais são imensas. Cria-se a situação culturalmente anômala do ausente que não chega, do filho que não volta. A espera passa a regular a vida da família, numa sociedade em que já não há lugar para esperar.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
Carta a Luciano Oliveira - Parte II
Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de
Gusmão
Vejamos mais uma questão levantada em suas
“Notas de leitura”. Eu faria, diz você, “malabarismo verbal” ao distinguir as
luminosas generalizações acerca dos seres humanos e suas interações duráveis,
encontradas na grande literatura e na melhor filosofia, das “teorias que os
sociólogos prezam”. Eu estou convencido de que as generalizações de Tchekhov e
Stendhal, citadas em O Fetichismo do
Conceito, constituem um sofisticado e valioso conhecimento do geral em
assuntos humanos. Diria também que esse saber, formulado exclusivamente com
base em conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente, apresenta,
num contraste vivo com os sistemas filosóficos particulares que buscaram
rupturas com o “vulgo”, algumas das características distintivas das ciências mais
avançadas: impessoalidade, generalidade e indubitável conteúdo empírico. Isso
não significa dizer, claro, que toda generalização formulada por literatos de
gênio possua essas características. Estou apenas buscando mostrar que a
capacidade de produzir generalizações sumamente inteligentes e verdadeiras em
assuntos humanos não constitui, ao contrário do que ocorre em relação ao
conhecimento da natureza, um privilégio epistêmico profissional, não requer a
iniciação prévia num saber especializado. Contudo, não estou contrapondo, em
termos gerais, “a teoria que os sociólogos prezam” às generalizações já
disponíveis na chamada grande cultura humanista. Podemos localizar, sim,
conclusões gerais de inegável valor cognitivo nas obras dos mais importantes
teóricos sociais. Em O Fetichismo do
Conceito, admito esse fato da forma mais clara e explícita possível. Com
efeito, logo depois de fazer o elogio das geniais observações de Stendhal sobre
a paixão de poder, escrevo: “essas lúcidas generalizações de Stendhal poderiam
ser combinadas, numa mesma análise, com algumas generalizações de Weber, não
menos lúcidas, formuladas contra um implausível reducionismo economicista em
sociologia política”. E mais adiante, numa demonstração inequívoca de que não
se trata de negar a importância do conhecimento teórico para as investigações
sociais, mas sim de, rejeitando um injustificável cientificismo, ampliar
as bases teóricas dessas investigações:
“se,
abrindo mão da ideia de imaginárias rupturas com a sabedoria de senso comum,
entendermos, sensata e realisticamente, por ‘base teórica’ da investigação
social apenas uma boa coleção – das mais distintas procedências – de conclusões
gerais, inteligentes, plausíveis e bem documentadas acerca dos seres humanos e
suas relações duráveis, então, cabe reconhecer, as generalizações de Stendhal e
Weber podem sim funcionar perfeitamente como tal” (p. 102-103).
Não
temos aqui, obviamente, a desqualificação dogmática das generalizações
formuladas pelos grandes teóricos sociais em seu conjunto. Na realidade, para
todos eles vale a observação feita sobre Marx: “a rejeição completa e dogmática
de um grande autor soa tão pouco inteligente e sensata quanto sua acolhida
incondicional, e Marx, sem dúvida, é um grande autor” (p. 64). Por outro lado,
vale a pena sublinhar, a crítica de dispensáveis e problemáticos jargões
sociológicos não implica, em absoluto, a rejeição de toda generalização
formulada pelos teóricos sociais. Cabe lembrar que algumas das melhores
generalizações sociológicas foram expressas na linguagem corrente, sem o
recurso a nenhum vocabulário “técnico”. Eis duas delas, mencionadas no livro:
1) as condições materiais da vida coletiva influenciam os aspectos políticos,
morais e intelectuais dessa vida (Marx); 2) a
política não pode ser invariavelmente deduzida da economia, pois “o homem não luta
pelo poder apenas para enriquecer economicamente” (Weber). Temos aqui duas
inteligentes e verdadeiras generalizações empíricas que são, aliás,
perfeitamente compatíveis entre si, desde que não interpretemos a primeira como uma “lei
geral”, pois, nesse caso, não seria muito difícil desmenti-la. Como podemos ver,
ambas dispensam completamente a utilização afetada de esotéricos jargões
sociológicos. A insistência em usar esse tipo de vocabulário “técnico”
evidencia apenas um ingênuo e infundado cientificismo. Nada mais.
Vejamos, agora, as dificuldades que você aponta em meu elogio do
senso comum. Esse elogio, sobretudo por estar associado ao balanço impiedoso do
interpretativismo teoricista, incomodou bastante. Alguns − você é um deles −
viram aqui a mais injustificável indulgência para com o “vulgo”. Nesse aspecto,
os sociólogos lembram muito os filósofos sistemáticos, sempre preocupados em
guardar uma boa distância desse “vulgo”, em convencer o seu leitor de que o
esoterismo de seus vocabulários “técnicos”, similarmente ao que ocorre no mundo
das ciências naturais, é o preço a ser pago para o acesso privilegiado a
segredos ocultos do mundo. A substituição da
linguagem corrente, a única empregada pelo “vulgo”, por jargões
esotéricos e o acesso a tais segredos, constituiriam, assegura-se, os dois
lados de uma mesma moeda. Venho reunindo nos últimos tempos materiais para um
novo livro sobre o fetichismo do conceito na filosofia (muito pior do que na
sociologia...), no qual tentarei mostrar, com incontáveis exemplos, que essas
tentativas de romper com os significados usuais, de senso comum, dos termos da
linguagem corrente, forjando jargões esotéricos nos quais esses termos assumem
significados “técnicos”, longe de levar, como se pretendia, a enunciados tão
impessoais, universais e verdadeiros como os das ciências mais avançadas,
acabou produzindo conclusões que só têm em comum com as formulações científicas
o esoterismo vocabular. Já na sabedoria fragmentária encontrada na grande
literatura e na filosofia assistemática (obras de autores como Montaigne e
Pascal, por exemplo), temos a situação exatamente inversa: sem afetadas e
infundadas proclamações de ruptura com a linguagem do “vulgo”, sem a retórica
das profundezas, sem nenhuma preocupação com definições “exatas”, são
formuladas conclusões que só não partilham com as hipóteses gerais da ciência a
dimensão sistemática e o esoterismo vocabular. Nesse aspecto, podemos
aproximar, sim, Shakespeare de Newton. Temos aqui verdades gerais, sem dono,
impessoais, de validade trans-histórica, cujos conteúdos empíricos se colocam,
de fato, acima da dúvida razoável. O elogio do conhecimento de senso comum
consiste tão somente na afirmação da possibilidade dessas verdades. Não, não se
trata apenas de bom senso, como você conjectura. O conhecimento de senso comum
é todo conhecimento formulado apenas com base em conceitos cujos significados
foram estabelecidos pelo uso padrão nas rotinas da vida cotidiana; é todo conhecimento
que não envolve ruptura alguma com esses significados. Como Shakespeare e
Montaigne, para tomarmos dois exemplos ilustres, empregam, em suas luminosas
observações acerca da condição humana, os termos da linguagem corrente em seus
significados usuais, consagrados, não realizando nenhuma ruptura com tais
significados, soa perfeitamente legítimo identificar suas observações como um
conhecimento de senso comum. Não temos, simplesmente não temos, outro termo tão
abrangente para denominá-las. Se eu encontrasse outro, não veria problema em
descartá-lo: não estou discutindo palavras, mas sim uma forma de conhecimento
cuja realidade não está em discussão. Além disso, não estou sozinho ao
entender o conhecimento de senso comum nesses termos: não é outra a postura dos
mencionados filósofos sistemáticos. Não é outra também a postura de teóricos
sociais como Durkheim e Bourdieu: o conhecimento social de senso comum é neles
explicitamente associado ao uso de conceitos sociais cujos significados foram
fixados na vida cotidiana, e não no âmbito de um saber teórico especializado.
Por outro lado, não nego, obviamente, a realidade da estupidez e do preconceito
no âmbito do conhecimento de senso comum, muito pelo contrário. Com efeito, em O Fetichismo do Conceito podemos ler:
"Não
estamos sugerindo, naturalmente, que a identificação do conhecimento de senso
comum em termos de uma compreensão mais superficial, mais tosca, insuficiente
ou simplesmente errada acerca dos seres humanos e do seu mundo seja de toda
inaceitável. Isso não seria muito sensato. É bastante provável que
Schopenhauer, ecoando aqui uma convicção muito disseminada entre os homens de
espírito de todos os tempos, esteja coberto de razão quando observa ter sido a
humanidade, no que diz respeito aos seus atributos morais e intelectuais,
‘tristemente dotada pela natureza’. Petrarca, citado com aprovação por
Schopenhauer, faz o mesmo ‘registro etnográfico’ quando, num belo e comovente
elogio da solidão, informa ao seu leitor ter sempre buscado uma vida solitária para
‘fugir aos espíritos disformes e embotados que perderam o caminho do céu’” (p.
46-47).
Mas,
como esclareço igualmente no livro, “tal admissão não compromete o nosso elogio
do conhecimento de senso comum, pois este abriga também o acervo em questão (de
observações e análises de indubitável valor cognitivo), e a distinção aqui não
é entre conhecimento científico e conhecimento pré-científico, mas sim entre
estupidez e sabedoria no âmbito de um mesmo universo intelectual” (p. 47). Na
verdade, longe de ser indulgente com os “espíritos disformes e embotados” e
seus preconceitos, eu não escondo minha convicção de que, tratando-se de
assuntos humanos, como é o caso das investigações sociais, nenhum aprendizado
profissional, nenhum iniciação teórica especializada poderá operar milagres: “a
leitura mais atenta, mais exaustiva dos grandes teóricos sociais, como, de
resto, qualquer outra leitura, não faz milagres, não transforma, como num passe
de mágica, pessoas intelectualmente acanhadas em indivíduos de espírito, em
inteligências invulgares, e, cabe reconhecer, apenas indivíduos assim são
realmente capazes de concluir coisas sumamente inteligentes e profundas sobre a
vida social” (p. 45). Em quase três décadas de experiências acadêmicas, tenho
encontrado, cotidianamente, evidências empíricas esmagadoras em favor dessa
conclusão. Aposto que você também! Minha reflexão epistemológica possui,
acredite, uma dimensão estritamente etnográfica...
Gostaria de concluir esta resposta, que já se
alonga demais, analisando os dois exemplos apresentados de superação do senso
comum a partir do conhecimento sociológico profissional. No primeiro exemplo,
você assegura que pessoas teoricamente “desarmadas”, ou seja, ainda não familiarizadas com a literatura
sociológica, “partindo do pressuposto de que quem comete crime vai preso”,
estariam inclinadas a concluir pela
exatidão da crença segundo a qual os pobres delinquem mais, um erro que poderia
ter sido evitado se essas pessoas tivessem entrado em contato com as reflexões
sociológicas de Howard Becker sobre o etiquetamento. Ficaria claro para elas,
então, que os pobres são mais vulneráveis, “estão mais propensos a ser pegos
nas malhas da lei do que os bem-nascidos”, e, por conta disso, acabam
constituindo a imensa maioria da população carcerária. A sociologia de Becker,
“acessando camadas subterrâneas da realidade”, ajudaria a compreender a
inexatidão da mencionada crença de senso comum, expressão tão somente de detestáveis
preconceitos, ao evidenciar o quanto ela
está baseada numa duvidosa conclusão: não, simplesmente não é verdade que todo
criminoso acaba nas prisões, pois nestas estão, sobretudo, os mais
“etiquetáveis”, e os ricos e poderosos, ao contrário dos pobres, não são
facilmente “etiquetáveis”: dispondo de mais capital, o econômico, o social e o
cultural (vamos colocar Bourdieu também no pedaço, multiplicando assim as
“armas teóricas”), poderiam escapar de rótulos infamantes, de etiquetas
socialmente desqualificadoras.
Eu
seria a última pessoa deste mundo a negar que a leitura de um sociólogo
empírico tão inteligente e sensato como o Becker possa ser útil. A sociologia
empírica sempre pode ser útil se desejarmos ampliar e aprofundar o nosso
conhecimento da realidade social. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. A
leitura de O Fetichismo do Conceito é
perfeitamente dispensável para sociólogos de fato envolvidos na pesquisa
empírica, que não alimentem ilusões acerca do alcance de simples quadros
conceituais. Tudo bem, mesmo estes costumam mencionar um parzinho de conceitos,
em geral para não que não sejam incomodados pela cobrança protocolar da
utilização de uma adequada “base teórica”, na imensa maioria das vezes feita
pelos colegas menos envolvidos no trabalho empírico. Eu ficaria muito contente
se o meu livro pudesse ser utilizado contra esse tipo de cobrança
despropositada, invertendo assim certa hierarquia acadêmica... Mas voltemos ao
seu exemplo. Nesse caso, a leitura de Becker (assim como a de Bourdieu), soa,
lamento dizê-lo, em larga medida dispensável. Façamos um experimento mental
para mostrar isso. Imagine um indivíduo formado em Direito, cujo único contato
com a teoria sociológica foi uma experiência acadêmica traumática: o seu
professor de Introdução à Sociologia, um aluno de doutorado absorvido com sua
pesquisa, sem muito tempo para preparar aulas, deu o pior dos cursos, faltou a incontáveis
aulas e, como se não bastasse, numa demonstração inequívoca de sadismo, aplicou
provas dificílimas, reprovando um bom número de alunos. O nosso pobre rapaz
escapou, esteve entre os aprovados, mas concluiu a disciplina detestando com
toda a sua alma Marx, Weber e Durkheim, os únicos autores que chegou a ler,
ainda assim de forma rápida e superficial. Ele não leu, claro, uma linha de
Becker e tampouco de Bourdieu. Anos depois, encontramos o nosso personagem
desempenhando com sucesso o papel de delegado da Polícia Federal. É agora o
responsável por uma dessas investigações que nos últimos anos vem revelando a
atuação criminosa de poderosas quadrilhas infiltradas no serviço público
brasileiro. Inteligente, íntegro e muitíssimo bem informado, ele já está
acostumado a ver, com indignação, com amargura, políticos e funcionários
públicos graúdos escapando da prisão, defendidos com êxito pelos melhores
advogados, pelos mais caros. Ele sabe também que a criminalidade descoberta não
é toda a criminalidade, que muitos outros criminosos desse tipo, bem-nascidos,
filhos das elites, donos do poder, ainda não foram descobertos e,
provavelmente, jamais virão a sê-lo. Pergunto: você acha realmente que esse
delegado tão plausível e representativo, na sua completa ignorância de Becker,
levaria a sério a afirmação segundo a qual todo criminoso vai preso? Você acha
realmente que ele precisaria conhecer algum teórico particular para descobrir a
falsidade dessa afirmação? Na realidade, eu até exagerei na qualificação
profissional em meu experimento: não é
necessário ser um bem informado delegado da Polícia Federal à frente de
investigações sigilosas para saber que existe, sim, um bom número de criminosos
que estão longe de ser pobres, e estes, devido ao seu poder econômico e social,
às suas poderosas influências, “estão
menos propensos a ser pegos nas malhas da lei.” Não temos aqui nenhuma
revelação cognitiva acessível unicamente aos iniciados na moderna teoria
sociológica, mas sim uma sensata, verdadeira e bem fundamentada conclusão do
conhecimento social de senso comum ao alcance de qualquer pessoa que lê jornais
e acompanha o noticiário da TV. Felizmente, não?
No segundo e último exemplo de uma possível
superação do senso comum com base no conhecimento sociológico especializado,
você mobiliza Gilberto Freyre, autor a quem admiro muitíssimo, embora não o
tenha citado uma única vez em todo o meu livro – não queria, entre outras
coisas, que o elogio entusiasta de Freyre levasse a tolas interpretações do meu
trabalho: já bastava o elogio do pernambucano Evaldo Cabral... Na sua opinião,
o contato com a antropologia de Franz Boas teria viabilizado Casa Grande & Senzala, pois no meio
social em que Freyre nasceu não seria possível encontrar a clara distinção
entre raça e cultura, tão decisiva em seu grande livro. Estou inclinado a
concordar quase inteiramente com a sua conclusão. Com efeito, as elites sociais
nordestinas eram, nas primeiras décadas do século XX, certamente racistas,
confundiam raça e cultura, e se Freyre tivesse permanecido entre elas, em vez
de viajar para os Estados Unidos e se tornar antropólogo, poderia, sim, ter
acolhido suas crenças e preconceitos, e jamais teríamos Casa Grande & Senzala. Digo “quase”, porém, porque não podemos
simplesmente deduzir essa plausível hipótese, dispensando o estudo empírico
biográfico: é que jovens brilhantes podem, afinal, em certas circunstâncias,
desafiar as crenças vigentes em seu meio social e descobrir bons argumentos
para justificar sua rebeldia nos livros mais antigos. As elites nordestinas em
questão também eram sexistas, confundiam sexo e cultura, mas não podemos
excluir, de forma dedutivista, a efetiva possibilidade de uma “menina de engenho”
feminista, capaz de, sem sair de Pernambuco nem virar antropóloga com tese
sobre Sexo e Temperamento, de Mead,
colocar papai e maninhos em apuros recorrendo a argumentos feministas já
disponíveis nas Cartas Persas, do
melhor Montesquieu.
Contudo, deixando de lado essa possibilidade,
estou inclinado, repito, a concordar com você: não, não foi de fato baseado nos
preconceitos de senso comum, predominantes no mundo em que nasceu, que Freyre
escreveu Casa Grande & Senzala.
Só não vejo nisso um efetivo contra-exemplo das minhas principais conclusões
epistemológicas, entre as quais não está, asseguro, a de que grandes autores,
incluindo-se ai teóricos sociais, não podem contribuir, com suas ideias e
argumentos, para a superação de erros e preconceitos historicamente datados.
Admito isso sem nenhum problema. Diria apenas que tais contribuições não
constituem privilégio epistêmico de nenhum grupo profissional, nem resultam
exatamente de avanços científicos. Na realidade, a crítica inteligente e bem
fundamentada dos preconceitos racistas, sexistas, etnocêntricos etc. já pode
ser encontrada, pelo menos, em grandes pensadores dos séculos XVI, XVII e XVIII
(que não podemos rotular de “cientistas” sem inflacionar demais o conceito de
ciência), ou seja, muito antes do advento da moderna teoria social. As
inspiradas passagens de Montaigne contra o eurocentrismo de seus
contemporâneos, sua bela e comovente denúncia da conquista da América pelos
europeus, são muito conhecidas e até hoje merecidamente festejadas. Os exemplos
poderiam facilmente ser multiplicados.
Por
outro lado, devemos evitar o erro, tão frequente entre intelectuais,
emblematicamente expresso na interpretação da obra de Kant por Heine, de
superestimar a força das ideias, a influência do pensamento articulado e
sistemático nas mudanças culturais e morais mais abrangentes e duráveis. No
caso do relativo enfraquecimento dos preconceitos racistas nos Estados Unidos,
é bastante provável que interesses de Estado, associados à política externa
americana, assim como a emergência de uma nova classe média negra, tenham sido
mais importantes do que a possível divulgação, entre os americanos, das
conclusões teóricas da antropologia antirracista do século XX. Infelizmente
(apenas para nós, claro), não somos tão influentes assim. Bem, com isso eu
concluo minha resposta propriamente dita às suas “Notas de leitura”.
Gostaria agora de abordar, alongando um pouco
mais esse diálogo, um ponto que não foi tratado de forma explícita em meu
livro, mas tem suscitado questionamentos. Refiro-me ao que entendo por teoria
em termos mais gerais. Cabe esclarecer o seguinte: se queremos com seriedade,
para valer mesmo, evitar uma visão discutível de teoria, incapaz de contemplar
formas de conhecimento identificadas, sem maiores discussões filosóficas, como
teoria, não podemos acolher crédula e dogmaticamente nenhuma ideia particular e
controversa de teoria, sustentada tão somente pelo teórico A ou B, e passar a
defendê-la como a mais exata e abrangente, desqualificando todas as outras sob
a espantosa alegação de que são limitadas ou erradas simplesmente porque não
correspondem à ideia de teoria que você acolheu. Agir assim é inviabilizar de
saída o debate racional e fecundo, pois as pessoas criticadas poderão, claro,
responder na mesma moeda: cada uma protestará assegurando ser ela, e apenas
ela, a portadora da verdadeira ideia de teoria, e desqualificará todas as
rivais utilizando como critério de verdade a sua própria ideia. Com isso,
instala-se um estéril diálogo de surdos que não leva a nada, exceto a uma
afirmação de egos. Esse tipo de polêmica inútil pode ser evitado, contudo, se
lembrarmos do seguinte: ao contrário de termos como “elétron”, “gene” ou
“mitose”, “teoria” não é um termo técnico cujo significado tenha sido fixado de
forma unívoca e exata no âmbito de um saber especializado, permanecendo, em
decorrência disso, inacessível, de todo inacessível aos não iniciados nesse
saber. Isso decididamente não ocorre. De fato, o termo “teoria” pertence por
inteiro à linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana e tem o seu
significado estabelecido, como o dos demais termos dessa linguagem, por um uso
social padrão no dia a dia das pessoas. Assim, qualquer usuário fluente na
língua portuguesa encontra-se familiarizado com o significado do termo “teoria”
e oferecerá provas desse domínio ao usá-lo com sucesso na comunicação diária,
sem provocar reações de estranheza ou perplexidade em seus interlocutores. Ele
não será capaz, naturalmente, de defini-lo com exatidão, assinalando as condições
necessárias e suficientes para o seu emprego correto, mas isso, sabemos todos,
não compromete em absoluto o uso bem-sucedido de um termo da linguagem corrente
e, a acreditar em Thomas Kuhn, nem mesmo da linguagem técnica das ciências
naturais.
Em seus significados usuais, de senso comum,
o termo “teoria” costuma ser empregado para referir coisas diversas, e apenas o
contexto de uso permitirá identificá-las com a possível exatidão. Assim, por
exemplo, podemos falar da “teoria” que alguém formulou para tornar inteligível
um dado evento, digamos, o sumiço de um dedicado pai de família que
aparentemente não tinha nenhuma razão para sumir. O delegado maledicente poderá
dizer que tem uma “teoria” para explicar o triste fato: “o pilantra fugiu com outra!”. Nesse caso, o
termo estará sendo empregado corretamente como sinônimo de explicação causal.
Podemos também usar o termo “teoria” para denominar um conjunto de ideias mais
ou menos gerais e abstratas formuladas por um certo autor. Isso ocorre quando
falamos nas teorias, digamos, de Rousseau ou Marx. Nesse caso, o termo aparece
como equivalente de conhecimento do geral, sem maiores especificações: tanto a
física de Newton como a sociologia de Durkheim podem ser identificadas
corretamente em termos de um conhecimento do geral. Weber fala em teoria
exatamente nessa acepção. Em seus textos metodológicos, teoria e conhecimento
do geral são, com frequência, intercambiados. Em The Max Weber Dictionary, key words and central concepts, Richard Swedberg, numa demonstração
de bom-senso, não se dá ao trabalho de incluir a termo “teoria”, pois sabe que
Weber acolhe, sem maiores discussões, um dos significados usuais desse termo.
Ao contrário de muitos teóricos sociais contemporâneos, compulsivamente
preocupados em inventar uma nova ideia de teoria capaz de assegurar o status científico da sociologia, numa
inequívoca demonstração de cientificismo enrustido, Weber não perde tempo com
essas coisas. Os filósofos da ciência, embora às vezes costumem afetar o
domínio de um vocabulário “técnico” similar ao encontrado nas ciências naturais
(um cientificismo injustificável, pois o
projeto de substituição da velha epistemologia normativa e fundacionista, tão
bem expressa no empirismo positivista, por uma genuína “ciência da ciência” não
deu em nada, pelo menos até agora), não se encontram numa situação muito
distinta. Com efeito, também esses filósofos operam com os termos da linguagem
corrente em seus significados usuais e consagrados. Com notável honestidade,
Ernest Nagel admite explicitamente esse fato. Referindo-se ao conceito de leis
da natureza, ele escreve: “o rótulo ‘leis da natureza’ (ou rótulos similares
tais como ‘leis científicas’, ‘lei natural’ ou simplesmente ‘lei’) não é uma
expressão técnica definida em alguma ciência empírica. Frequentemente é usado,
especialmente na linguagem comum, com um forte sentido honorífico, sem um
conteúdo preciso” (Nagel, 1989: 57). Algo parecido pode ser dito do termo “teoria”. Se
tivéssemos aqui “uma expressão técnica definida em alguma ciência empírica”,
simplesmente já não seria possível levar adiante intermináveis e estéreis
discussões sobre o que é afinal uma teoria, nem faria nenhum sentido apresentar
pontos de vista particulares e controversos como se fossem a última e
definitiva palavra nessa discussão. Em face de alguma dúvida, bastaria uma
rápida consulta a um credenciado especialista ou a um simples manual. Não
existem, lembremos, maiores discussões acerca do que é afinal um “gene” ou um
“neutrino”. Na realidade, insistir em buscar o significado unívoco e exato do
termo “teoria” revela apenas um infundado cientificismo, pois, como diz com
razão Stegmüller, “é um empreendimento desesperado apegar-se às maneiras de
falar cotidianas e, sem deixar seu nível, querer tirar delas mais precisão do
que elas contêm” (apud Veyne, 1998: 147). Acrescentaríamos: além de
desesperado, totalmente dispensável, pois a exatidão será atingida aqui tão
somente com base em esclarecimentos circunstanciados, conteudísticos, acerca
dos contextos de uso. Assim, por exemplo, o termo “ateórico” em meu livro,
longe de significar a exclusão de todo conhecimento do geral, um evidente
absurdo, refere-se apenas a investigações sociais que não empregam
exclusivamente conceitos e generalizações do teórico social A ou B, não possuem
uma ideia tão particular de teoria social, ampliando assim a sua “base
teórica”. Como o termo “teoria” costuma geralmente ser usado, entre os
sociólogos, como sinônimo desses conceitos e generalizações particulares, e nas
investigações em questão tal “teoria” não é obrigatória nem exclusiva, podemos
chamá-las de “ateóricas”. Além disso, nessas investigações não encontraremos
ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos conceituais, pois são
empíricas. O contexto de uso torna tudo isso perfeitamente claro, dispensando
maiores esclarecimentos.
Por outro lado, lembrar que em suas origens o
termo “teoria” assumiu um determinado significado não muda nada, pois não
transformamos termos da linguagem corrente num vocabulário técnico fazendo etimologia.
Com isso, unicamente ampliamos o inventário dos usos sociais com base na
erudição histórica. Esclarecer, por exemplo, que entre os antigos, ou entre os
europeus do século XVII, o termo “liberdade” possuía tais e tais significados
não é, obviamente, incluí-lo no vocabulário técnico de uma ciência empírica
particular. A mesmíssima coisa pode ser dita do termo “teoria”. Pior ainda
seria apelar para os significados idiossincráticos, particulares, exclusivos,
assumidos no sistema do filósofo A ou B. Com efeito, esse tipo de
esclarecimento conceitual só interessa a especialistas em autores, em textos que,
distanciados da pesquisa empírica, pouco
ou nada têm a dizer de interessante e novo, pelo menos na primeira pessoa,
sobre o mundo, natural ou social. Na melhor das hipóteses, não saímos aqui de
uma história dos sistemas filosóficos. Não faria nenhum sentido, soaria absurdo
e ridículo, por exemplo, censurar um usuário fluente na linguagem natural
porque ele assegurou aos colegas de farras que tinha uma ótima ideia para o
próximo final de semana, lembrando que Kant, inspirado em Platão, não
autorizaria o uso que os farristas estavam fazendo do termo “ideia”. Os
significados dos termos da linguagem corrente não podem ser buscados em autores
particulares, mas sim, como já sabia Wittgenstein, num inventário dos seus usos
sociais e consagrados, os quais também estão, aprendemos com os historiadores
da cultura (Rorty tem razão: cabe a eles, e não a filósofos afastados da
pesquisa empírica, inventariar significados), submetidos aos estragos do tempo:
destacados de seus contextos originais de uso e introduzidos em novos ambientes
sociais, os termos da linguagem corrente sofrem modificações, ganham novos
significados, às vezes totalmente distintos. Essas considerações valem, convém
lembrar, para o significado do termo
“ciência”, o qual também não é uma expressão técnica, definida com relativa
univocidade e exatidão no âmbito de uma disciplina científica, tratando-se
antes tão somente do vocábulo consagrado pelo uso social padrão para referir as
bem-sucedidas investigações da natureza a partir do século 17 (Hume ainda
empregava, sem problemas, o termo “filósofo” ao mencionar Newton e Galileu:
para ele, esses dois grandes físicos eram simplesmente os maiores filósofos da
história!). A explicação da extensão do
uso do termo “ciência” para outros tipos de investigação, os quais só
partilhavam às vezes com a física moderna o hermetismo vocabular, como é o caso
de alguns sistemas filosóficos, deve ser buscada em fatores sociais e
psicológicos, associados ao enorme prestígio atingido pelo conhecimento
científico no mundo moderno, e não em razões propriamente epistemológicas. Com
isso, o termo “ciência” acabou assumindo muitas vezes um significado puramente
honorífico, e não mais empírico. Hoje em dia, fala-se até em religião
“científica”! Como J. Searle com toda razão disse em algum lugar, uma pista
segura para alguém descobrir que está lidando com ciências imaginárias, e não
reais, consiste exatamente na
insistência de seus praticantes em usar o rótulo “ciência”. Acrescentaríamos: e
no tempo que perdem tentando, de todo modo, justificá-lo. Nesse tipo de
esclarecimento histórico, a análise de conteúdos conceituais assume,
certamente, o formato de um empreendimento empiricamente orientado. Fora disso,
possui de fato duvidosa utilidade. Numa disciplina empírica como a sociologia,
que não foi constituída para fazer a exegese de autores particulares e
controversos, nem inventariar ressignificações de conceitos no tempo, esse tipo
de discussão soa, é supérfluo dizê-lo, completamente inútil.
Quanto à ideia de teoria acolhida em meu
livro, não é nada complicada, muito pelo contrário. Seguindo o bom exemplo de
Weber, um sociólogo que sensatamente nunca buscou romper com os significados
usuais dos termos da linguagem corrente empregados em seu trabalho, como mostro
com exemplos concretos em O Fetichismo do
Conceito, entendo por teoria apenas o conhecimento do geral, ou seja, um
tipo de conhecimento que mobiliza conceitos e enunciados mais gerais e
abstratos. Simples, não? Isso é tão abrangente que pode ser usado para referir
não só boas generalizações, mas igualmente incontáveis asneiras: também
podemos, convenhamos, falar de teorias implausíveis, tolas e fantasiosas. Como
já sabia Montaigne, o espírito humano “constrói tão bem no vazio como no pleno
e tanto com a inanidade como com a matéria”. Impossível negá-lo.
Uma
última observação: suspeito que as nossas convergências intelectuais são, em
verdade, bem maiores do que você imagina. Fico feliz com essa constatação.
Sugiro, para aprofundá-las, algumas rodadas de caipirinha em Recife, no segundo
semestre de 2013.
Um
grande abraço,
Gusmão
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
Carta a Luciano Oliveira - Parte I
Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão
Caro
Luciano:
Pude
ler, também com atenção e prazer, as suas “Notas de Leitura” sobre o meu livro O
Fetichismo do Conceito. O seu texto
foi uma grata surpresa. Embora discordando de suas discordâncias por razões que
apresentarei a seguir, gostei bastante. Você é o tipo de crítico que todo autor
pediu a Deus: inteligente, correto, sensato, bem informado e, sobretudo,
espirituoso. Motivado pela indiscutível qualidade de seus comentários, gostaria
de fazer a crítica da crítica, como diria o jovem Marx.
Seguindo a ordem de exposição encontrada em
suas notas de leitura, começo pela hipótese acerca das minhas supostas razões
para tratar com implacabilidade e irreverência consagrados teóricos sociais.
Uma amiga sua sugeriu, ao lhe enviar a matéria publicada na “Folha de São
Paulo” em junho passado, que poderia tratar-se de “mais um desses tipos em
busca de sucesso por meio de provocações exageradas”. Mesmo com a ressalva de
que O Fetichismo do Conceito está longe de ser apenas uma
“provocação exagerada”, você afirma que “tais diatribes dão algum suporte à
suspeita de minha amiga”. Não é a primeira vez, nem será provavelmente a última,
que deparo com essa imputação de motivações, que não é, convenhamos, nem um
pouco lisonjeira. Na realidade, temos aqui uma conclusão apressada e
dedutivista, não apoiada em informações factuais que, nesse caso, seriam
realmente indispensáveis: um bom conhecimento
da personalidade do autor, dos seus valores, crenças e história de vida.
Sem isso, a sugestão de sua amiga de que o meu tom polêmico resulta da busca a
todo custo de sucesso corre o sério risco de ser tão leviana quanto injusta. A
dureza no tratamento dispensado a autores como Habermas e Bourdieu, para ficar
apenas com os mencionados por você, expressa tão somente conclusões
epistemológicas, amadurecidas nos últimos vinte anos de leituras e reflexões,
formuladas num estilo que é o meu “desde criancinha” (como reclamava mamãe). Se
você puder examinar um dia os meus exemplares das obras de Habermas, por
exemplo, lidas mais atentamente nos anos noventa, verá que estão cobertos de
iradas anotações, perto das quais o que você leu em O Fetichismo do Conceito
parecerá suave e ameno. Confesso que realmente perdia a paciência ao atravessar
toneladas de engenhosas argumentações para sustentar o insustentável, a saber,
que os caminhos da verdade e do bem não apenas convergem como podem ser
encontrados em mais um sistema filosófico particular produzido na Alemanha. De
Habermas podemos afirmar a mesmíssima coisa que Nietzsche disse um dia da
metafísica alemã mais antiga: do ponto de vista cognitivo, pouco vale, pois não
é ciência genuína, nem muito menos verdadeira
sabedoria. Eu poderia passar dias, acredite, justificando circunstanciadamente
essa dura conclusão. A extrema irritação
com a leitura passava toda para o papel.
As
tentativas de Bourdieu objetivando convencer os seus leitores, em sua maioria
sociólogos não familiarizados com a moderna reflexão epistemológica, do status impecavelmente científico de sua
própria obra, não soavam menos irritantes. Se operarmos com um conceito
estritamente empírico de ciência − e não honorífico ou elaborado exclusivamente
para permitir a inclusão de formas de conhecimento que só partilham com as
ciências, às vezes, o esoterismo vocabular, assegurando-lhes assim prestígio
intelectual e honras sociais −, seremos levados à conclusão de que teorias
científicas, ao contrário dos sistemas filosóficos do passado, não constituem
um ponto de vista pessoal de um autor e seus crédulos discípulos reunidos em
uma escola, mas sim um saber tácita e consensualmente acolhido no âmbito de uma disciplina,
funcionando ali como base teórica indispensável, inescapável, em toda uma área
de investigações empíricas. Alguns físicos franceses do século XVIII que detestavam
Newton ainda insistiam em atacá-lo na defesa de Descartes, mas isso acabou há
muito tempo: nos manuais franceses de mecânica, é Newton, e não Descartes, que
é hoje obrigatoriamente ensinado.O estudo das teorias de Newton, devidamente
incorporadas em manuais, não é de fato opcional para pesquisadores de todo um
conjunto de fenômenos naturais. Nesse
caso, o aprendizado de um conhecimento do geral especializado, distinto e
irredutível às melhores generalizações do saber de senso comum, acolhido sem
maiores discussões filosóficas pelos investigadores de uma área de pesquisa,
soa de fato obrigatório.Ora, nada disso pode ser dito da teoria sociológica de
Bourdieu, pois em todas as áreas da sociologia empírica podemos encontrar
pesquisas sérias que não recorrem, nem precisam recorrer, a um único conceito
“técnico” de Bourdieu. Seria fácil prová-lo. Na realidade, o melhor Bourdieu, o
Bourdieu que pode ser utilizado com proveito na pesquisa empírica, é sempre
redutível ao conhecimento social de senso comum inteligente e bem informado.
Dito de outra maneira, os seus melhores conceitos e generalizações (como, de
resto, os de todos os outros teóricos sociais) podem ser perfeitamente
formulados, com ganhos de clareza e testabilidade empírica, na linguagem
corrente. No meu livro, como você há de lembrar, mostrei, com exemplos
concretos, que os termos do jargão sociológico mais amplamente aceitos, aqueles
dotados de indiscutível conteúdo empírico, são exatamente os termos não apenas
tomados de empréstimo à linguagem corrente, mas que também preservaram
integralmente, quando incorporados ao jargão em questão, os seus significados
usuais, de senso comum. Isso significa dizer que, nesses casos, o conteúdo
empírico do vocabulário sociológico é assegurado, na realidade, pela ausência
de qualquer afastamento em relação aos significados de senso comum dos termos
empregados. A famosa ruptura epistemológica soa aqui simplesmente imaginária. Isso explica por que
os conceitos e generalizações do melhor Bourdieu são opcionais, e não
obrigatórios, na investigação social empiricamente orientada. O seu uso, como o
possível uso de Shakespeare ou Dostoiévski numa análise de uma determinada
manifestação das paixões humanas, embora em certos casos valioso, pouco ou nada
tem a ver com o uso de teorias nas investigações científicas. Sendo assim, as
afetadas e infundadas reivindicações de cientificidade em Bourdieu, que irão
levá-lo a tratar com arrogância e desrespeito a obra de autores avessos ao
cientificismo como Gadamer, soavam para
mim, de fato, irritantes. Essa irritação também foi toda para o papel. Contudo,
as dificuldades de Bourdieu não se limitam a um despropositado cientificismo: em leituras mais recentes,
pude reunir mais de mil páginas de notas de leitura nas quais sublinho, sempre
com exemplos concretos, sem analogismos carentes de controles empíricos e
formais, nem generalizações vazias e retóricas, as dificuldades empíricas desse
autor, em particular as que resultam do uso do conceito de campo em sociologia
da ciência. Um dia, prometo apresentá-las detalhadamente.
Tudo
bem, a discordância intelectual poderia ser expressa de outra forma, e minha
reação psicológica revela um temperamento colérico, difícil, intratável mesmo.
Admito isso sem problemas, não gosto de brigar com os fatos. Mas não vamos
confundir coisas sobre as quais a vontade, infelizmente, pouco ou nada pode,
com uma estratégia urdida, calculada, visando renome. Além disso, eu nada,
absolutamente nada tenho a ver com a algo escandalosa matéria da “Folha de São
Paulo” (a segunda, pois a do Rafael Carrielo, publicada em maio de 2011, é
bastante sóbria: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2703201104.htm
). Na realidade, fiquei sabendo 48 horas antes, e não tive conhecimento prévio
algum dos conteúdos. Não se tratou de uma entrevista. O Renan Springer disse
certa vez, com toda a razão, que, em termos de apresentação fiel das principais
conclusões do livro, essa matéria não foi muito feliz, sugerindo que se tratava
basicamente de uma crítica violenta das obras de famosos teóricos sociais. Como
todos os que leram o livro sabem, nada mais longe da verdade.
Por
outro lado, correndo o risco de parecer odiosamente elitista e personalizar
demais esta resposta, deixe-me confessar o seguinte: para mim, o sucesso que de
fato importa, o único pelo qual despenderia esforços, vem tão somente da
aprovação espontânea e desinteressada dos melhores, de homens e mulheres de
espírito, e não do aplauso de muitos. Eu levo a sério as observações de Karl
Kraus e Fernando Pessoa citadas no meu livro... O reconhecimento que busquei
não veio com as matérias publicadas na “Folha de São Paulo”, mas sim com a
reação de pessoas como Evaldo Cabral, que ligou do Rio, 72 horas depois de ter
recebido pelo correio uma cópia da primeira parte do meu livro, para dizer que
já estava fazendo a segunda leitura do texto. Esse tipo de reconhecimento eu
jamais conquistaria, é supérfluo dizê-lo, com “provocações exageradas”. Mas
deixemos isso de lado. Vamos agora aos pontos mais importantes de seus
comentários críticos.
Você
associa, interpretando passagens do capítulo 1 do meu livro, as investigações
que denomino de conteudísticas e ateóricas, apenas a pinturas de paisagens e
acaba, por conta disso, fazendo a seguinte censura: como pintar paisagens
seria, sobretudo, vocação dos historiadores, e não dos sociólogos, ao criticar
as pesquisas sociais teoricamente orientadas por não serem conteudísticas, eu
estaria, em verdade, censurando os sociólogos por não se ocuparem com uma
atividade típica dos historiadores, tomando assim a história como padrão para
avaliar as ciências sociais. Você vê nisso um verdadeiro sofisma. Nas suas
palavras: “o sofisma, a meu ver, reside no fato de o autor tomar o que seria
vocação de um dos campos, a história, para julgar os feitos de um outro, o das
ciências sociais”. Se você tivesse razão nessa censura, não sobraria muita
coisa do meu livro. Este acabaria reduzido, na hipótese mais piedosa, à
lembrança, completamente dispensável para todo sociólogo mais sensato, de que o
conhecimento teórico, numa disciplina empírica, não constitui um fim em si,
funcionando antes como uma ferramenta intelectual a serviço de investigações
empiricamente orientadas. Como não escrevi O
Fetichismo do Conceito para repetir coisas sensatas, mas banais, essa
redução seria fim de carreira: caberia esquecer a epistemologia, fazer outras
coisas na vida. Felizmente, não corro de fato esse risco. E isso pelas
seguintes razões:
1)
As descrições compreensivas das características
mais ou menos notáveis de mundos sociais particulares, descrições nas quais
essas características são reunidas num quadro coerente e significativo, cuja
riqueza descritiva dependerá da erudição e do nível de generalização em que se
coloca o seu autor, ou seja, as mencionadas pinturas de paisagens, não
constituem vocação exclusiva da história, podendo também ser encontradas nas
magníficas etnografias da antropologia clássica de inspiração funcionalista. Na
realidade, toda e qualquer descrição compreensiva de ambientes sociais
particulares que não seja parte de explicações causais pode ser identificada
como uma pintura desses ambientes. Nesse sentido, é perfeitamente possível
pintar paisagens sociais utilizando conceitos sociológicos, fazendo sociologia.
Assim, por exemplo, podemos retratar a sociedade moderna, enquanto mundo social
particular, em termos mais gerais e abstratos. Não é outra coisa o que faz Marx
ao sublinhar os aspectos que, em sua opinião, vão distingui-la, tais como a
generalização da economia de mercado, a emergência da democracia representativa,
o culto do indivíduo independente e isolado de seus semelhantes, o ritmo febril
das mudanças sociais, que leva as coisas mais sólidas a se esfumarem no ar. Um
sociólogo leitor de Weber poderia incluir nessa paisagem, com ganhos de riqueza
descritiva, o desencantamento do mundo e a dominação legal. Por outro lado, e
mais importante ainda, cabe lembrar que não é a pintura de paisagens que irá
distinguir as investigações sociais conteudísticas e ateóricas das teoricamente
orientadas. Não se trata disso. A distinção é feita aqui levando-se em conta
apenas a base teórica empregada (nas teoricamente orientadas teríamos de
buscá-la apenas nos conceitos e enunciados gerais estabelecidos no âmbito da
moderna teoria social, uma exigência ausente nas conteudísticas) e, sobretudo,
o alcance atribuído a tal base na investigação do socialmente real em toda a
sua complexidade e concretude;
2)
Na discussão acerca dos limites do conhecimento
teórico nas investigações sociais, assunto central do livro, o que realmente importa
é a análise do papel desse conhecimento nas explicações causais, e não na
descrição de ambientes sociais particulares, na pintura de paisagens. Esse
ponto foi claramente formulado no capítulo 1. Com efeito, ali podemos ler: “São
as explicações causais, e não as caracterizações de ambientes ou acontecimentos
sociais, que vão evidenciar, da forma mais límpida, mais conclusiva, os limites
do uso de generalizações na investigação social, como veremos a seguir” (p.
21). Como você pode ver, eu não critico os sociólogos por não pintarem
paisagens como fariam os historiadores. Na realidade, pintar ou não paisagens
não tem maior importância na análise das dificuldades do interpretativismo
teoricista desenvolvida em meu livro;
3)
O que será colocado em questão é a possibilidade
de uma nítida distinção entre a causalidade sociológica e a causalidade
histórica. O argumento clássico em favor dessa distinção reza o seguinte: o
sociólogo lidaria com causações estruturais, lidaria com fatores cujos poderes
causais são uniformes e duráveis, e não apenas contextuais, historicamente
datados, e tais fatores permaneceriam inacessíveis aos não iniciados na moderna
teoria social. Para acessá-los seria imprescindível o recurso a uma base
teórica distinta e irredutível às melhores generalizações do chamado
conhecimento social de senso comum. Dito de outra maneira, a causação
sociológica, enquanto causação estrutural, demandaria explicações teoricamente
orientadas. Muito diferente seria o caso da história. Ocupados com uma causalidade
datada, circunstancial, mais visível, menos profunda, envolvendo apenas
constelações singulares de fatores contextuais, os historiadores já não
precisariam, como os sociólogos, recorrer a teorias sociológicas gerais.
Bastariam aqui as explicações causais intencionais, ou seja, os esclarecimentos
acerca dos interesses, valores, crenças, disposições e objetivos concretos que
moveram indivíduos situados em cenários sociais particulares. Nesse argumento
em favor de uma clara distinção entre causalidade sociológica e causalidade
histórica, temos, é desnecessário dizê-lo, uma espécie de estratificação
epistemológica na qual investigadores sociais teoricamente orientados ocupariam
uma posição privilegiada, estando, por assim dizer, no topo da pirâmide. Este,
sem dúvida, o objetivo explicitamente perseguido por autores como Marx,
Durkheim e Mannheim ao buscarem ultrapassar as explicações intencionais
oferecidas pelos historiadores, constituindo assim uma genuína ciência empírica
da vida social. Marx, lembremos, sonhava com uma história teórica, e Mannheim
fala explicitamente numa “iluminação teórica” da história. Não há nada de
errado, obviamente, com esse projeto teórico, muito pelo contrário. Impossível
não admirá-lo na sua audácia e grandeza intelectuais. Contudo, cabe avaliá-lo
pelos seus efetivos resultados, e estes, como tentei mostrar no meu livro de
forma circunstanciada, com exemplos concretos, de fato desapontaram. Qual a
base dessa conclusão pessimista? Resumindo coisas demais, simplificando demais,
eis a resposta: os conceitos, não importa o nível de abstração e generalidade
em que se situem, aparecem sempre, tanto nas descrições como nas explicações e
predições de um dado evento ou estado de coisas, inseridos em sentenças, que
podem ser gerais ou particulares. Não podemos, portanto, estabelecer relações
de dependência uniformes e invariáveis entre fenômenos sociais tipificados
utilizando apenas termos ou conceitos. Para isso é necessário também dispor de
sentenças gerais, de validade trans-histórica, cujas condições de aplicação já
tenham sido clara e consensualmente fixadas pela comunidade científica, nas
quais se assegure que determinados fenômenos sociais resultam, com
regularidade, de condições sociais tipificadas claramente estipuladas. Se a
sociologia dispusesse de um corpo de sentenças gerais desse tipo, os sociólogos
poderiam dispensar as explicações intencionais da ação social, reduzindo a
intencionalidade humana a uma simples “variável dependente” a ser deduzida,
também ela, de um conjunto tipificado de condições estruturais. Nesse caso,
teríamos de fato uma causação estrutural teoricamente “iluminada”, acessível
apenas aos sociólogos, e a distinção entre causalidade sociológica e
causalidade histórica estaria justificada acima da dúvida sensata. Infelizmente,
semelhante feito teórico ainda não foi realizado por ninguém, apesar de ter
sido inúmeras vezes tentado. Descrições das condições mais gerais e duráveis da
ação intencional, individual ou coletiva, ou dos efeitos não premeditados nem
desejados dessas ações, não constituem, por razões detalhadas em O Fetichismo do Conceito, nada parecido.
Quanto aos chamados “mecanismos”, vistos por alguns teóricos sociais mais
modestos e sensatos como uma espécie de terceira via capaz de superar a
dicotomia entre narrativa e causação nomológica, além das dificuldades
apontadas no livro, cabe lembrar que, também nesse caso, ninguém convenceu
ninguém e as igrejinhas teóricas se multiplicaram numa, como diria Montaigne,
“infinita e perpétua altercação de ideias e de argumentos”. Não seria difícil
prová-lo.
4)
A efetiva existência de padrões societários, ou
seja, de formas de agir, pensar e sentir coletivas mais duráveis, mais
permanentes, capazes de reproduzir-se no transcurso de um tempo que já não
medimos à escala da vida de um indivíduo( os chamados “fatos sociais,”cuja
realidade foi corretamente sublinhada por Durkheim), não basta para autorizar uma nítida distinção entre
explicação sociológica teoricamente orientada e explicação histórica: como
procuro mostrar em O fetichismo do
conceito com vários exemplos, é perfeitamente possível, sim, proceder ao
registro empírico desses padrões societários, explicá-los em termos causais e
utilizá-los na explicação da ação individual e coletiva, sem o recurso a
qualquer conhecimento teórico especializado relativo às sociedades humanas,
concebidas na totalidade de seus aspectos. Em outras palavras, a presença de
padrões na vida social não demanda obrigatoriamente, como é o caso dos padrões
do mundo físico, um conhecimento do geral distinto e irredutível às melhores
generalizações do saber de senso comum. Sendo assim, podemos falar numa
sociologia conteudística, não dependente das teorias particulares do autor A ou
B, cujas explicações já não diferem qualitativamente das explicações
encontradas na boa historiografia. No meu livro, a obra de Tocqueville aparece
como um dos mais convincentes exemplos dessa possibilidade.
Após citar com
aprovação uma passagem na qual sublinho a utilidade de conceitos sociológicos técnicos,
formulados por teóricos particulares na visibilização de importantes fenômenos
sociais, você pergunta: mas tais conceitos não seriam as novas ferramentas
intelectuais que permitem a superação do inventário exaustivo das constelações
de variáveis contextuais? Respondo: Infelizmente, não. Eis minhas razões:
1) Visibilizar
um dado fenômeno ao nomeá-lo, ao etiquetá-lo, ao inseri-lo numa determinada
classificação ou tipologia, não é oferecer uma explicação causal teoricamente
orientada desse fenômeno, não é, a rigor, oferecer explicação causal nenhuma: a
visibilização da existência de algo não se confunde, claro, com a explicação de
suas origens. Esta, quando possível, virá depois, numa segunda etapa. Temos
aqui duas coisas diferentes, cabe distingui-las. Ora, como os inventários
exaustivos de variáveis contextuais causalmente relevantes se tornam
indispensáveis devido à inexistência de genuínas explicações causais
teoricamente orientadas, não podemos superar tais inventários apontando apenas
para a utilidade do vocabulário sociológico, das novas ferramentas
intelectuais, na visibilização dos fenômenos sociais;
2) A
passagem citada por você é da primeira parte do livro, escrita em 2006, época
em que eu ainda alimentava um relativo otimismo quanto a possíveis utilidades
de jargões sociológicos. Com o passar dos anos, com o aprofundamento de minhas
observações, esse otimismo, em larga medida, evaporou. Eu alerto o leitor, da
forma mais explícita possível, para essa mudança, além de justificá-la
detalhadamente. De fato, na página 326 lemos: “Abandonando certo otimismo ainda
presente em nossas primeiras observações acerca do uso de conceitos
sociológicos técnicos, fornecidos pelo teórico A ou B, nas investigações
sociais conteudísticas, gostaríamos de esclarecer o seguinte: embora seja
possível, como demonstramos com o exemplo de Burke e com o nosso experimento
mental de um Sérgio Buarque ‘teórico’, o emprego empírico e não dedutivista
desses conceitos, não é isso, infelizmente, o que em geral ocorre”. Em seguida
eu explico por que razões o fetichismo do conceito se tornará menos provável se
o investigador utilizar apenas conceitos sociais de senso comum, cujos
significados tenham sido fixados por um uso social padrão na vida cotidiana,
evitando jargões sociológicos. Eis uma dessas razões: é que esses conceitos
“estão menos enredados, por assim dizer, com problemáticos enunciados gerais do
que boa parte dos conceitos sociológicos, formulados num jargão técnico por
este ou aquele teórico social, e se prestam menos, devido a isso, a ilações
dedutivistas acerca da causação social” (p. 327). Assim, por exemplo, o termo
“classe operária” em seus significados usuais, de senso comum, não viabiliza,
sem as devidas qualificações conteudísticas, maiores conclusões sobre as classes
operárias reais, empiricamente dadas,
pois não há muito a dizer, nesse caso, a partir do mero conteúdo conceitual: se
o pesquisador quiser concluir coisas novas e substantivas, precisará realmente
realizar pesquisas empíricas. Não há outra saída! Portanto, a pobreza do
conteúdo sistemático dos conceitos sociais de senso comum, longe de representar
um problema, acaba se revelando aqui uma grande vantagem ao inviabilizar
dedutivismos, ao obrigar o pesquisador a mergulhar no trabalho empírico. Em
contrapartida, se tomarmos o mesmíssimo termo na acepção teórica, técnica, que
assume na sociologia marxista, tudo muda dramaticamente para pior. A ruptura
com o senso comum se mostra desastrosa: indissoluvelmente comprometido com toda
uma teoria geral da sociedade e da história de discutível conteúdo empírico, o
conceito técnico de classe operária permitirá agora um verdadeiro dilúvio de
ilações dedutivistas. Ganha o interpretativismo teoricista, perde a sociologia
empírica. Em O Fetichismo do Conceito
isso é bem ilustrado, como você há de lembrar, pela análise impiedosa da obra,
não de um sociólogo, mas sim de um consagrado historiador, o Thompson. Não, não
se trata de contrapor disciplinas nem de julgar uma com base na outra;
3)
Na segunda e terceira partes do livro, abandonando
o mencionado otimismo, coloco em dúvida até mesmo a modesta utilidade,
atribuída ao jargão sociológico, de visibilizar importantes fenômenos sociais.
Eu, de fato, não acredito mais nisso. Não por inexplicável e gratuita birra com
os teóricos sociais, nem por ter presenciado, na condição de examinador de
bancas de pós-graduação, o uso mais insano, mais tresloucado desses teóricos,
embora isso ocorra de fato com frequência e não seja, diga-se de passagem,
culpa exclusiva da imaturidade de mestrandos e doutorandos – as ilusões
teoricistas acerca do que podem fazer com simples quadros conceituais não são de
responsabilidade apenas deles. Na realidade, venho nos últimos anos fazendo a
reiterada constatação de que observadores argutos da vida coletiva, valendo-se
tão somente de conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente
(leia-se: conceitos cujos significados foram fixados pelo uso padrão na vida
cotidiana e não no interior de um conhecimento especializado), foram, sim,
perfeitamente capazes de vislumbrar, com a devida nitidez, aqueles fenômenos
sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociológicos formulados num
jargão técnico. No livro eu dou alguns exemplos que poderiam ser facilmente
multiplicados. A lista, acredite, não é pequena! Se eu não estivesse fora do
Brasil agora, longe da minha biblioteca, incluiria aqui novas “provas empíricas”
dessa conclusão. Não, eu não estou fazendo “graçolas”, buscando ser divertido –
seria desastroso: não tenho, infelizmente, esse talento – ao citar aquela
passagem de Pascal. Trata-se de uma observação epistemológica importante cujas
implicações práticas, na pesquisa empírica, estão longe de ser irrelevantes: se
eu estiver correto, os sociólogos efetivamente envolvidos com pesquisas
empíricas (os outros, os aprendizes de filósofos, os moralistas travestidos de
“cientistas”, não importam minimamente) já não precisariam perder o seu valioso
tempo com a exegese de textos, tentando entender o significado “exato” de
dispensáveis jargões sociológicos, já não precisariam exibir, para ganhar
respeitabilidade intelectual entre os seus pares, o domínio desses jargões. Ótimo,
não?
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
Sobre a vocação da Sociologia enquanto a morfogênese se intensifica
Por Margaret Archer, Escola Politécnica Federal de Lausanne, Suíça, e
ex-presidente da
ISA, 1986 – 1990. Originalmente publicado em Diálogo Global, 3 (1). Novembro de
2012, p. 4-5. Disponível em: http://www.isa-sociology.org/global-dialogue/newsletters3-1/portuguese.pdf
A Sociologia nasceu buscando respostas para quatro perguntas: “de onde
nós viemos?”, “o que temos agora?”, “para onde estamos indo?” e “o que deve ser
feito?”. Essas são todas perguntas realistas: existe um mundo social real com propriedades reais, habitado por pessoas reais que,
coletivamente, construíram o passado e cujos poderes causais já estão modelando
o futuro. A maneira pela qual Weber expressou a vocação da sociologia foi descobrindopor
que as coisas são “assim” e não “de outra forma”. Aqueles que compartilham esse compromisso jamais poderiam
aceitar a conclusão de Baudrillard: “tudo o que resta é brincar com as peças”.
Ibn Khaldun poderia ter chamado isso de a marca de uma civilização decadente.
O que é mais danoso do que a “jocosidade” pósmodernista é, na verdade, o estilhaçamento das peças. Toda a vida social – micro –,
meso – e macroscópica – entra necessariamente num mesmo SACO; as relações entre
“estrutura”, “ação” e “cultura” são
sempre indispensáveis para explicar qualquer coisa social.
Sem ser minucioso com respeito às definições,
desprezar a “estrutura” e os contextos nos quais as pessoas vivem se torna
algo caleidoscopicamente contingente; omita
a cultura, e ninguém terá um repertório de ideias para construir a situação que as pessoas enfrentam; sem agência perdemos
a relação de atividade-dependência enquanto
causa eficiente de existência de uma ordem social. A vocação da
sociologia é conseguir levar em
conta as inter-relações e as configurações
resultantes. Ao quebrar as peças e então pulverizá-las, muitos teóricos sociais renunciaram a sua vocação e
se tornam agentes funerários,
escrevendo certidões de mortes para cada componente do SACO. E mais, com essas
“mortes”, cada parte do mundo fica privada de ferramentas para explicar por que
as coisas são como são e por que as coisas poderiam ser de outra forma.
Com relação às “estruturas”, teorias atuais de
“desestruturação” substituem-nas com fluidez. A metáfora da liquidez aponta
para a extrema descontrolabilidade do social. Isso foi anunciado pelas
sociedades de “fuga”, “destruidoras” e “de risco”, mas a
inundação ganhou espaço e está flutuando sobre o mar de fenômenos auto-organizados,
projetados pela teoria da complexidade. Entretanto, a inaptidão é gritante em
face à crise econômica atual. Essa crise revelou parte de uma estrutura
previamente escondida. Sabemos mais agora sobre a estruturação do capital
financeiro global e seu entrelaçamento com as multinacionais e os governos nacionais
do que antes de 2008. Tudo que é sólido não se desmancha no ar, mas derivados,
hipotecas, arranjos e trocas estrangeiras, e débitos do mercado são mais compreensíveis
do que o Fordismo.
Porque as posições estruturadas, as relações e
os interesses são realmente complicados, a mídia tem banalizado e personalizado
a crise em termos de bonificação dos banqueiros, ajudando a rolar algumas
cabeças ávidas. Os “Movimentos de Ocupação” testificam a falta de ferramental
sociológico. Eles estão se opondo às medidas de austeridade ou a um capitalismo
financeiro global? Embora Londres pareça insegura, o
movimento de Genebra mantém seminários regulares nos quais discutem como conter
as complexidades envolvidas. Associações de economistas heterodoxos vêm sendo
frequentemente mais úteis do que os sociólogos. Onde está o nosso equivalente às
análises de Stefano Zamagnai sobre as nefastas contribuições feitas pelos últimos dez
ganhadores do Prêmio Nobel em economia? Qual é a nossa contribuição visando uma
economia civil?
Isso leva à “cultura” e ao imenso papel que a
TINA[1] (“There Is No Alternative”) tem desempenhado na
tentativa de voltar ao “business as usual”[2]. A
“virada cultural” privilegia o discurso, mas a crise não pode ser reduzida ao
tom discursivo. A hegemonia do discurso deslocou o conceito de ideologia, relegando-o para a lata do lixo
da luta de classes “zumbi”. Com ela, o nexo fundamental entre ideias e
interesses foi perdido enquanto lugar de legitimação política. Perdidas foram
também as fontes ideacionais da crítica, não meramente como atividades
expressivas (há muitas delas), mas como fontes de mobilização social (cuja
ausência fortalece a TINA). Ironicamente, como as águas correm, há um obstinado
apego ao hábito, a uma disposição de habitus e à ação de rotina na sociologia,
a despeito de sua incongruência com mudanças rápidas. No entanto, como os
grandes pragmatistas americanos foram os primeiros a salientar, as situações problemáticas são as parteiras de inovação reflexiva.
Finalmente, e o mais sério, é a morte do
sujeito, apagado, segundo Foucault colocou há mais de 40 anos, “como um rosto
desenhado na areia à beira da praia”. Desde então o nosso apagamento humano foi
repetido por muitos limpadores de lousas: as pessoas tornaram-se
lousas limpas, abertas para uma auto-inscrição (Gergen), egos serialmente
reinventados (Beck), e por fim, rebaixados a agentes “actantes”[3]. Com a
morte do sujeito, reflexividade, intencionalidade, assistencialismo e
compromisso também saem de cena, juntamente com a capacidade exclusivamente
humana de vislumbrar como as coisas poderiam ser de outra forma.
Os defensores das responsabilidades e
potencialidades humanas têm sido bastante raros; por conta disso, Andrew Sayer
teve necessidade de escrever seu excelente livro Why Things Matter to People. A
sociologia conserva um lado humanista, mas seu modo de abordar o
humano ainda aparece abafado. Assim, isolamento e solidão não são temas
populares quando comparados com a marginalização e a exclusão, mas são, quando
muito, flagelos do mundo desenvolvido e de suas consequências. Os sociólogos
também são mais contundentes em acentuar a nossa suscetibilidade ao sofrimento
do que ao florescimento. Somos ainda muito tímidos no avanço de uma “Sociologia da Prosperidade”,
limitando-nos bastante às necessidades biológicas inquestionáveis. Por que não
há uma sociologia da alegria, pouco mencionada com exultação ou forte
contentamento, e por que a felicidade está delegada às métricas dos
economistas? Responder a essas perguntas é um predicado da sociologia no
sentido de contribuir para o florescimento da sociedade civil.
Hoje, a principal alegoria é a “modernidade
líquida”, mas metáforas nada explicam e muitas vezes confundem (lembremo-nos
das analogias mecânica, orgânica e cibernética). Certas teorias da mudança têm
acentuado somente um dos elementos isolados do SACO: “cultura”
por “Sociedade da Informação”; “estrutura” por “Capitalismo Globalizado” ou
“Império”; e “agência” por “individualism institucionalizado” da “Modernidade
Reflexiva”. Cada teoria se apropria de somente um dos componentes
(empiricamente impactante), considera cada componente como a
parte mais importante e o iguala erroneamente ao mecanismo de mudança. Ao invés
disso, precisamos examinar as sinergias do SACO e as respostas
positivas que tornam a morfogênese o processo responsável por intensificar a
mudança – de um modo não metafórico.
[1] Na versão original em inglês, TINA significa “There Is No Alternative”,
utilizada frequentemente pela ex-Primeira Ministra Britânica Margaret Thatcher.
[2] A expressão “Business as usual” faz referência às políticas britânicas
adotadas no início da I Guerra Mundial.
[3] “Actante” é um termo frequentemente utilizado na semiótica. Originalmente,
foi utilizado pelo linguista francês
LucienTesnière (1893-1954) para denotar
as principais funções sintáticas (sujeito,
objeto direto e objeto indireto) que
dependem do verbo na sintaxe. Posteriormente,
o linguista lituano Algirdas
Julien Greimas (1917-1992) o utilizará para
determinar os participantes ativos
(pessoas, animais ou coisas) em qualquer forma
narrativa, seja um texto, uma imagem, um som.
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