segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O pânico de Santa Maria


Por José de Souza Martins - Sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Metrópole], Segunda-feira, 28 de janeiro de 2013, p. C10.


Há no Brasil um elenco de tragédias decorrentes de pânico em recintos fechados, com numerosas vítimas fatais. Ficou na memória popular o caso ocorrido em 1938, numa matinê no Cine Oberdan, no bairro do Brás. Alguém gritou “fogo!” Os que estavam no balcão dispararam em direção às saídas. Trinta e uma pessoas morreram esmagadas, crianças na maior parte. Numa tarde de domingo de dezembro de 1961, um incêndio criminoso no Gran Circus Norte-Americano, em Niteroi, matou mais de 500 pessoas, 70% crianças. O caso de Santa Maria é um caso de pânico em recinto desprovido de meios adequados à atenuação de suas conseqüências mais graves. As vítimas tentaram escapar, mas não encontraram a saída.

O pânico é característico da sociedade moderna porque a multidão é dela praticamente constitutiva. É uma sociedade que frequentemente se expressa como corpo coletivo em grandes aglomerações humanas, temporárias, que atenuam ou anulam a competência para a reflexão individual e a decisão pessoal. Cada um se torna dependente do comportamento dos outros, comportamento por contágio.

O caso paradigmático de pânico foi o do Mercury Theatre, um programa radiofônico de Orson Welles, na noite de Halloween de 1938, que transmitia uma dramatização da obra de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos. Para imprimir realismo à apresentação, o programa foi interrompido com a transmissão de uma notícia extraordinária: marcianos estavam desembarcando em diferentes pontos do país. Segundo o estudo clássico de Hadley Cantril, The Invasion of Mars, milhares de pessoas foram atingidas pelo pavor.

O comportamento coletivo é tendencialmente irracional, provocado por fator geralmente repentino, como uma faísca, uma explosão, um grito, uma falsa notícia alarmante, em situações sociais em que as referências estáveis de conduta, que são as normais e corriqueiras, não operam plenamente. As pessoas estão cercadas, predominantemente, por desconhecidos e os códigos de conduta são em boa parte improvisados no momento, de reciprocidades meramente reativas. Quando um começa a correr, todos correm, mesmo sem saber o motivo. É essa característica sociológica do comportamento coletivo que impõe a prudência e a providência de que as situações de multidão sejam regulamentadas e condicionadas por marcos e instrumentos de referência de conduta e de segurança em situação de emergência: saídas largas e em número proporcional ao público presente, extintores de incêndio, especialistas em orientação de multidão, iluminação, etc. São os lembretes das normas sociais interiorizadas, que essas situações invariavelmente colocam entre parênteses. O caso de Santa Maria, pelas informações até agora disponíveis, sugere que o alto índice de mortes foi agravado pela falta desses cuidados.

Quando do pânico decorrem mortes, as pessoas surpreendidas nos trajes, nos atos, no cenário e na circunstância “impróprios para morrer”, numa cultura funerária como a nossa, tradicional, que pressupõe a morte em família, as sequelas sociais são imensas. Cria-se a situação culturalmente anômala do ausente que não chega, do filho que não volta. A espera passa a regular a vida da família, numa sociedade em que já não há lugar para esperar.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Carta a Luciano Oliveira - Parte II


Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão

  Vejamos mais uma questão levantada em suas “Notas de leitura”. Eu faria, diz você, “malabarismo verbal” ao distinguir as luminosas generalizações acerca dos seres humanos e suas interações duráveis, encontradas na grande literatura e na melhor filosofia, das “teorias que os sociólogos prezam”. Eu estou convencido de que as generalizações de Tchekhov e Stendhal, citadas em O Fetichismo do Conceito, constituem um sofisticado e valioso conhecimento do geral em assuntos humanos. Diria também que esse saber, formulado exclusivamente com base em conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente, apresenta, num contraste vivo com os sistemas filosóficos particulares que buscaram rupturas com o “vulgo”, algumas das características distintivas das ciências mais avançadas: impessoalidade, generalidade e indubitável conteúdo empírico. Isso não significa dizer, claro, que toda generalização formulada por literatos de gênio possua essas características. Estou apenas buscando mostrar que a capacidade de produzir generalizações sumamente inteligentes e verdadeiras em assuntos humanos não constitui, ao contrário do que ocorre em relação ao conhecimento da natureza, um privilégio epistêmico profissional, não requer a iniciação prévia num saber especializado. Contudo, não estou contrapondo, em termos gerais, “a teoria que os sociólogos prezam” às generalizações já disponíveis na chamada grande cultura humanista. Podemos localizar, sim, conclusões gerais de inegável valor cognitivo nas obras dos mais importantes teóricos sociais. Em O Fetichismo do Conceito, admito esse fato da forma mais clara e explícita possível. Com efeito, logo depois de fazer o elogio das geniais observações de Stendhal sobre a paixão de poder, escrevo: “essas lúcidas generalizações de Stendhal poderiam ser combinadas, numa mesma análise, com algumas generalizações de Weber, não menos lúcidas, formuladas contra um implausível reducionismo economicista em sociologia política”. E mais adiante, numa demonstração inequívoca de que não se trata de negar a importância do conhecimento teórico para as investigações sociais, mas sim de, rejeitando um injustificável cientificismo, ampliar as bases teóricas dessas investigações:

“se, abrindo mão da ideia de imaginárias rupturas com a sabedoria de senso comum, entendermos, sensata e realisticamente, por ‘base teórica’ da investigação social apenas uma boa coleção – das mais distintas procedências – de conclusões gerais, inteligentes, plausíveis e bem documentadas acerca dos seres humanos e suas relações duráveis, então, cabe reconhecer, as generalizações de Stendhal e Weber podem sim funcionar perfeitamente como tal” (p. 102-103).

  Não temos aqui, obviamente, a desqualificação dogmática das generalizações formuladas pelos grandes teóricos sociais em seu conjunto. Na realidade, para todos eles vale a observação feita sobre Marx: “a rejeição completa e dogmática de um grande autor soa tão pouco inteligente e sensata quanto sua acolhida incondicional, e Marx, sem dúvida, é um grande autor” (p. 64). Por outro lado, vale a pena sublinhar, a crítica de dispensáveis e problemáticos jargões sociológicos não implica, em absoluto, a rejeição de toda generalização formulada pelos teóricos sociais. Cabe lembrar que algumas das melhores generalizações sociológicas foram expressas na linguagem corrente, sem o recurso a nenhum vocabulário “técnico”. Eis duas delas, mencionadas no livro: 1) as condições materiais da vida coletiva influenciam os aspectos políticos, morais e intelectuais dessa vida (Marx); 2) a  política não  pode ser invariavelmente  deduzida da economia, pois “o homem não luta pelo poder apenas para enriquecer economicamente” (Weber). Temos aqui duas inteligentes e verdadeiras generalizações empíricas que são, aliás, perfeitamente compatíveis entre si, desde  que não interpretemos a primeira como uma “lei geral”, pois, nesse caso, não seria muito difícil desmenti-la. Como podemos ver, ambas dispensam completamente a utilização afetada de esotéricos jargões sociológicos. A insistência em usar esse tipo de vocabulário “técnico” evidencia apenas um ingênuo e infundado cientificismo. Nada mais.

  Vejamos, agora, as  dificuldades que você aponta em meu elogio do senso comum. Esse elogio, sobretudo por estar associado ao balanço impiedoso do interpretativismo teoricista, incomodou bastante. Alguns − você é um deles − viram aqui a mais injustificável indulgência para com o “vulgo”. Nesse aspecto, os sociólogos lembram muito os filósofos sistemáticos, sempre preocupados em guardar uma boa distância desse “vulgo”, em convencer o seu leitor de que o esoterismo de seus vocabulários “técnicos”, similarmente ao que ocorre no mundo das ciências naturais, é o preço a ser pago para o acesso privilegiado a segredos ocultos do mundo. A substituição da  linguagem corrente, a única empregada pelo “vulgo”, por jargões esotéricos e o acesso a tais segredos, constituiriam, assegura-se, os dois lados de uma mesma moeda. Venho reunindo nos últimos tempos materiais para um novo livro sobre o fetichismo do conceito na filosofia (muito pior do que na sociologia...), no qual tentarei mostrar, com incontáveis exemplos, que essas tentativas de romper com os significados usuais, de senso comum, dos termos da linguagem corrente, forjando jargões esotéricos nos quais esses termos assumem significados “técnicos”, longe de levar, como se pretendia, a enunciados tão impessoais, universais e verdadeiros como os das ciências mais avançadas, acabou produzindo conclusões que só têm em comum com as formulações científicas o esoterismo vocabular. Já na sabedoria fragmentária encontrada na grande literatura e na filosofia assistemática (obras de autores como Montaigne e Pascal, por exemplo), temos a situação exatamente inversa: sem afetadas e infundadas proclamações de ruptura com a linguagem do “vulgo”, sem a retórica das profundezas, sem nenhuma preocupação com definições “exatas”, são formuladas conclusões que só não partilham com as hipóteses gerais da ciência a dimensão sistemática e o esoterismo vocabular. Nesse aspecto, podemos aproximar, sim, Shakespeare de Newton. Temos aqui verdades gerais, sem dono, impessoais, de validade trans-histórica, cujos conteúdos empíricos se colocam, de fato, acima da dúvida razoável. O elogio do conhecimento de senso comum consiste tão somente na afirmação da possibilidade dessas verdades. Não, não se trata apenas de bom senso, como você conjectura. O conhecimento de senso comum é todo conhecimento formulado apenas com base em conceitos cujos significados foram estabelecidos pelo uso padrão nas rotinas da vida cotidiana; é todo conhecimento que não envolve ruptura alguma com esses significados. Como Shakespeare e Montaigne, para tomarmos dois exemplos ilustres, empregam, em suas luminosas observações acerca da condição humana, os termos da linguagem corrente em seus significados usuais, consagrados, não realizando nenhuma ruptura com tais significados, soa perfeitamente legítimo identificar suas observações como um conhecimento de senso comum. Não temos, simplesmente não temos, outro termo tão abrangente para denominá-las. Se eu encontrasse outro, não veria problema em descartá-lo: não estou discutindo palavras, mas sim uma forma de conhecimento cuja realidade não está em discussão. Além disso, não estou sozinho ao entender o conhecimento de senso comum nesses termos: não é outra a postura dos mencionados filósofos sistemáticos. Não é outra também a postura de teóricos sociais como Durkheim e Bourdieu: o conhecimento social de senso comum é neles explicitamente associado ao uso de conceitos sociais cujos significados foram fixados na vida cotidiana, e não no âmbito de um saber teórico especializado. Por outro lado, não nego, obviamente, a realidade da estupidez e do preconceito no âmbito do conhecimento de senso comum, muito pelo contrário. Com efeito, em O Fetichismo do Conceito podemos ler:

"Não estamos sugerindo, naturalmente, que a identificação do conhecimento de senso comum em termos de uma compreensão mais superficial, mais tosca, insuficiente ou simplesmente errada acerca dos seres humanos e do seu mundo seja de toda inaceitável. Isso não seria muito sensato. É bastante provável que Schopenhauer, ecoando aqui uma convicção muito disseminada entre os homens de espírito de todos os tempos, esteja coberto de razão quando observa ter sido a humanidade, no que diz respeito aos seus atributos morais e intelectuais, ‘tristemente dotada pela natureza’. Petrarca, citado com aprovação por Schopenhauer, faz o mesmo ‘registro etnográfico’ quando, num belo e comovente elogio da solidão, informa ao seu leitor ter sempre buscado uma vida solitária para ‘fugir aos espíritos disformes e embotados que perderam o caminho do céu’” (p. 46-47).

   Mas, como esclareço igualmente no livro, “tal admissão não compromete o nosso elogio do conhecimento de senso comum, pois este abriga também o acervo em questão (de observações e análises de indubitável valor cognitivo), e a distinção aqui não é entre conhecimento científico e conhecimento pré-científico, mas sim entre estupidez e sabedoria no âmbito de um mesmo universo intelectual” (p. 47). Na verdade, longe de ser indulgente com os “espíritos disformes e embotados” e seus preconceitos, eu não escondo minha convicção de que, tratando-se de assuntos humanos, como é o caso das investigações sociais, nenhum aprendizado profissional, nenhum iniciação teórica especializada poderá operar milagres: “a leitura mais atenta, mais exaustiva dos grandes teóricos sociais, como, de resto, qualquer outra leitura, não faz milagres, não transforma, como num passe de mágica, pessoas intelectualmente acanhadas em indivíduos de espírito, em inteligências invulgares, e, cabe reconhecer, apenas indivíduos assim são realmente capazes de concluir coisas sumamente inteligentes e profundas sobre a vida social” (p. 45). Em quase três décadas de experiências acadêmicas, tenho encontrado, cotidianamente, evidências empíricas esmagadoras em favor dessa conclusão. Aposto que você também! Minha reflexão epistemológica possui, acredite, uma dimensão estritamente etnográfica...

  Gostaria de concluir esta resposta, que já se alonga demais, analisando os dois exemplos apresentados de superação do senso comum a partir do conhecimento sociológico profissional. No primeiro exemplo, você assegura que pessoas teoricamente “desarmadas”, ou seja,  ainda não familiarizadas com a literatura sociológica, “partindo do pressuposto de que quem comete crime vai preso”, estariam inclinadas a  concluir pela exatidão da crença segundo a qual os pobres delinquem mais, um erro que poderia ter sido evitado se essas pessoas tivessem entrado em contato com as reflexões sociológicas de Howard Becker sobre o etiquetamento. Ficaria claro para elas, então, que os pobres são mais vulneráveis, “estão mais propensos a ser pegos nas malhas da lei do que os bem-nascidos”, e, por conta disso, acabam constituindo a imensa maioria da população carcerária. A sociologia de Becker, “acessando camadas subterrâneas da realidade”, ajudaria a compreender a inexatidão da mencionada crença de senso comum, expressão tão somente de detestáveis preconceitos,  ao evidenciar o quanto ela está baseada numa duvidosa conclusão: não, simplesmente não é verdade que todo criminoso acaba nas prisões, pois nestas estão, sobretudo, os mais “etiquetáveis”, e os ricos e poderosos, ao contrário dos pobres, não são facilmente “etiquetáveis”: dispondo de mais capital, o econômico, o social e o cultural (vamos colocar Bourdieu também no pedaço, multiplicando assim as “armas teóricas”), poderiam escapar de rótulos infamantes, de etiquetas socialmente desqualificadoras.

  Eu seria a última pessoa deste mundo a negar que a leitura de um sociólogo empírico tão inteligente e sensato como o Becker possa ser útil. A sociologia empírica sempre pode ser útil se desejarmos ampliar e aprofundar o nosso conhecimento da realidade social. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. A leitura de O Fetichismo do Conceito é perfeitamente dispensável para sociólogos de fato envolvidos na pesquisa empírica, que não alimentem ilusões acerca do alcance de simples quadros conceituais. Tudo bem, mesmo estes costumam mencionar um parzinho de conceitos, em geral para não que não sejam incomodados pela cobrança protocolar da utilização de uma adequada “base teórica”, na imensa maioria das vezes feita pelos colegas menos envolvidos no trabalho empírico. Eu ficaria muito contente se o meu livro pudesse ser utilizado contra esse tipo de cobrança despropositada, invertendo assim certa hierarquia acadêmica... Mas voltemos ao seu exemplo. Nesse caso, a leitura de Becker (assim como a de Bourdieu), soa, lamento dizê-lo, em larga medida dispensável. Façamos um experimento mental para mostrar isso. Imagine um indivíduo formado em Direito, cujo único contato com a teoria sociológica foi uma experiência acadêmica traumática: o seu professor de Introdução à Sociologia, um aluno de doutorado absorvido com sua pesquisa, sem muito tempo para preparar aulas, deu o pior dos cursos, faltou a incontáveis aulas e, como se não bastasse, numa demonstração inequívoca de sadismo, aplicou provas dificílimas, reprovando um bom número de alunos. O nosso pobre rapaz escapou, esteve entre os aprovados, mas concluiu a disciplina detestando com toda a sua alma Marx, Weber e Durkheim, os únicos autores que chegou a ler, ainda assim de forma rápida e superficial. Ele não leu, claro, uma linha de Becker e tampouco de Bourdieu. Anos depois, encontramos o nosso personagem desempenhando com sucesso o papel de delegado da Polícia Federal. É agora o responsável por uma dessas investigações que nos últimos anos vem revelando a atuação criminosa de poderosas quadrilhas infiltradas no serviço público brasileiro. Inteligente, íntegro e muitíssimo bem informado, ele já está acostumado a ver, com indignação, com amargura, políticos e funcionários públicos graúdos escapando da prisão, defendidos com êxito pelos melhores advogados, pelos mais caros. Ele sabe também que a criminalidade descoberta não é toda a criminalidade, que muitos outros criminosos desse tipo, bem-nascidos, filhos das elites, donos do poder, ainda não foram descobertos e, provavelmente, jamais virão a sê-lo. Pergunto: você acha realmente que esse delegado tão plausível e representativo, na sua completa ignorância de Becker, levaria a sério a afirmação segundo a qual todo criminoso vai preso? Você acha realmente que ele precisaria conhecer algum teórico particular para descobrir a falsidade dessa afirmação? Na realidade, eu até exagerei na qualificação profissional em meu experimento: não  é necessário ser um bem informado delegado da Polícia Federal à frente de investigações sigilosas para saber que existe, sim, um bom número de criminosos que estão longe de ser pobres, e estes, devido ao seu poder econômico e social, às suas poderosas  influências, “estão menos propensos a ser pegos nas malhas da lei.” Não temos aqui nenhuma revelação cognitiva acessível unicamente aos iniciados na moderna teoria sociológica, mas sim uma sensata, verdadeira e bem fundamentada conclusão do conhecimento social de senso comum ao alcance de qualquer pessoa que lê jornais e acompanha o noticiário da TV. Felizmente, não?

  No segundo e último exemplo de uma possível superação do senso comum com base no conhecimento sociológico especializado, você mobiliza Gilberto Freyre, autor a quem admiro muitíssimo, embora não o tenha citado uma única vez em todo o meu livro – não queria, entre outras coisas, que o elogio entusiasta de Freyre levasse a tolas interpretações do meu trabalho: já bastava o elogio do pernambucano Evaldo Cabral... Na sua opinião, o contato com a antropologia de Franz Boas teria viabilizado Casa Grande & Senzala, pois no meio social em que Freyre nasceu não seria possível encontrar a clara distinção entre raça e cultura, tão decisiva em seu grande livro. Estou inclinado a concordar quase inteiramente com a sua conclusão. Com efeito, as elites sociais nordestinas eram, nas primeiras décadas do século XX, certamente racistas, confundiam raça e cultura, e se Freyre tivesse permanecido entre elas, em vez de viajar para os Estados Unidos e se tornar antropólogo, poderia, sim, ter acolhido suas crenças e preconceitos, e jamais teríamos Casa Grande & Senzala. Digo “quase”, porém, porque não podemos simplesmente deduzir essa plausível hipótese, dispensando o estudo empírico biográfico: é que jovens brilhantes podem, afinal, em certas circunstâncias, desafiar as crenças vigentes em seu meio social e descobrir bons argumentos para justificar sua rebeldia nos livros mais antigos. As elites nordestinas em questão também eram sexistas, confundiam sexo e cultura, mas não podemos excluir, de forma dedutivista, a efetiva possibilidade de uma “menina de engenho” feminista, capaz de, sem sair de Pernambuco nem virar antropóloga com tese sobre Sexo e Temperamento, de Mead, colocar papai e maninhos em apuros recorrendo a argumentos feministas já disponíveis nas Cartas Persas, do melhor Montesquieu.

  Contudo, deixando de lado essa possibilidade, estou inclinado, repito, a concordar com você: não, não foi de fato baseado nos preconceitos de senso comum, predominantes no mundo em que nasceu, que Freyre escreveu Casa Grande & Senzala. Só não vejo nisso um efetivo contra-exemplo das minhas principais conclusões epistemológicas, entre as quais não está, asseguro, a de que grandes autores, incluindo-se ai teóricos sociais, não podem contribuir, com suas ideias e argumentos, para a superação de erros e preconceitos historicamente datados. Admito isso sem nenhum problema. Diria apenas que tais contribuições não constituem privilégio epistêmico de nenhum grupo profissional, nem resultam exatamente de avanços científicos. Na realidade, a crítica inteligente e bem fundamentada dos preconceitos racistas, sexistas, etnocêntricos etc. já pode ser encontrada, pelo menos, em grandes pensadores dos séculos XVI, XVII e XVIII (que não podemos rotular de “cientistas” sem inflacionar demais o conceito de ciência), ou seja, muito antes do advento da moderna teoria social. As inspiradas passagens de Montaigne contra o eurocentrismo de seus contemporâneos, sua bela e comovente denúncia da conquista da América pelos europeus, são muito conhecidas e até hoje merecidamente festejadas. Os exemplos poderiam facilmente ser multiplicados.

Por outro lado, devemos evitar o erro, tão frequente entre intelectuais, emblematicamente expresso na interpretação da obra de Kant por Heine, de superestimar a força das ideias, a influência do pensamento articulado e sistemático nas mudanças culturais e morais mais abrangentes e duráveis. No caso do relativo enfraquecimento dos preconceitos racistas nos Estados Unidos, é bastante provável que interesses de Estado, associados à política externa americana, assim como a emergência de uma nova classe média negra, tenham sido mais importantes do que a possível divulgação, entre os americanos, das conclusões teóricas da antropologia antirracista do século XX. Infelizmente (apenas para nós, claro), não somos tão influentes assim. Bem, com isso eu concluo minha resposta propriamente dita às suas “Notas de leitura”.

  Gostaria agora de abordar, alongando um pouco mais esse diálogo, um ponto que não foi tratado de forma explícita em meu livro, mas tem suscitado questionamentos. Refiro-me ao que entendo por teoria em termos mais gerais. Cabe esclarecer o seguinte: se queremos com seriedade, para valer mesmo, evitar uma visão discutível de teoria, incapaz de contemplar formas de conhecimento identificadas, sem maiores discussões filosóficas, como teoria, não podemos acolher crédula e dogmaticamente nenhuma ideia particular e controversa de teoria, sustentada tão somente pelo teórico A ou B, e passar a defendê-la como a mais exata e abrangente, desqualificando todas as outras sob a espantosa alegação de que são limitadas ou erradas simplesmente porque não correspondem à ideia de teoria que você acolheu. Agir assim é inviabilizar de saída o debate racional e fecundo, pois as pessoas criticadas poderão, claro, responder na mesma moeda: cada uma protestará assegurando ser ela, e apenas ela, a portadora da verdadeira ideia de teoria, e desqualificará todas as rivais utilizando como critério de verdade a sua própria ideia. Com isso, instala-se um estéril diálogo de surdos que não leva a nada, exceto a uma afirmação de egos. Esse tipo de polêmica inútil pode ser evitado, contudo, se lembrarmos do seguinte: ao contrário de termos como “elétron”, “gene” ou “mitose”, “teoria” não é um termo técnico cujo significado tenha sido fixado de forma unívoca e exata no âmbito de um saber especializado, permanecendo, em decorrência disso, inacessível, de todo inacessível aos não iniciados nesse saber. Isso decididamente não ocorre. De fato, o termo “teoria” pertence por inteiro à linguagem natural empregada nas rotinas da vida cotidiana e tem o seu significado estabelecido, como o dos demais termos dessa linguagem, por um uso social padrão no dia a dia das pessoas. Assim, qualquer usuário fluente na língua portuguesa encontra-se familiarizado com o significado do termo “teoria” e oferecerá provas desse domínio ao usá-lo com sucesso na comunicação diária, sem provocar reações de estranheza ou perplexidade em seus interlocutores. Ele não será capaz, naturalmente, de defini-lo com exatidão, assinalando as condições necessárias e suficientes para o seu emprego correto, mas isso, sabemos todos, não compromete em absoluto o uso bem-sucedido de um termo da linguagem corrente e, a acreditar em Thomas Kuhn, nem mesmo da linguagem técnica das ciências naturais.

  Em seus significados usuais, de senso comum, o termo “teoria” costuma ser empregado para referir coisas diversas, e apenas o contexto de uso permitirá identificá-las com a possível exatidão. Assim, por exemplo, podemos falar da “teoria” que alguém formulou para tornar inteligível um dado evento, digamos, o sumiço de um dedicado pai de família que aparentemente não tinha nenhuma razão para sumir. O delegado maledicente poderá dizer que tem uma “teoria” para explicar o triste fato: “o  pilantra fugiu com outra!”. Nesse caso, o termo estará sendo empregado corretamente como sinônimo de explicação causal. Podemos também usar o termo “teoria” para denominar um conjunto de ideias mais ou menos gerais e abstratas formuladas por um certo autor. Isso ocorre quando falamos nas teorias, digamos, de Rousseau ou Marx. Nesse caso, o termo aparece como equivalente de conhecimento do geral, sem maiores especificações: tanto a física de Newton como a sociologia de Durkheim podem ser identificadas corretamente em termos de um conhecimento do geral. Weber fala em teoria exatamente nessa acepção. Em seus textos metodológicos, teoria e conhecimento do geral são, com frequência, intercambiados. Em The Max Weber Dictionary, key words and central concepts, Richard Swedberg, numa demonstração de bom-senso, não se dá ao trabalho de incluir a termo “teoria”, pois sabe que Weber acolhe, sem maiores discussões, um dos significados usuais desse termo. Ao contrário de muitos teóricos sociais contemporâneos, compulsivamente preocupados em inventar uma nova ideia de teoria capaz de assegurar o status científico da sociologia, numa inequívoca demonstração de cientificismo enrustido, Weber não perde tempo com essas coisas. Os filósofos da ciência, embora às vezes costumem afetar o domínio de um vocabulário “técnico” similar ao encontrado nas ciências naturais (um  cientificismo injustificável, pois o projeto de substituição da velha epistemologia normativa e fundacionista, tão bem expressa no empirismo positivista, por uma genuína “ciência da ciência” não deu em nada, pelo menos até agora), não se encontram numa situação muito distinta. Com efeito, também esses filósofos operam com os termos da linguagem corrente em seus significados usuais e consagrados. Com notável honestidade, Ernest Nagel admite explicitamente esse fato. Referindo-se ao conceito de leis da natureza, ele escreve: “o rótulo ‘leis da natureza’ (ou rótulos similares tais como ‘leis científicas’, ‘lei natural’ ou simplesmente ‘lei’) não é uma expressão técnica definida em alguma ciência empírica. Frequentemente é usado, especialmente na linguagem comum, com um forte sentido honorífico, sem um conteúdo preciso” (Nagel, 1989: 57). Algo parecido  pode ser dito do termo “teoria”. Se tivéssemos aqui “uma expressão técnica definida em alguma ciência empírica”, simplesmente já não seria possível levar adiante intermináveis e estéreis discussões sobre o que é afinal uma teoria, nem faria nenhum sentido apresentar pontos de vista particulares e controversos como se fossem a última e definitiva palavra nessa discussão. Em face de alguma dúvida, bastaria uma rápida consulta a um credenciado especialista ou a um simples manual. Não existem, lembremos, maiores discussões acerca do que é afinal um “gene” ou um “neutrino”. Na realidade, insistir em buscar o significado unívoco e exato do termo “teoria” revela apenas um infundado cientificismo, pois, como diz com razão Stegmüller, “é um empreendimento desesperado apegar-se às maneiras de falar cotidianas e, sem deixar seu nível, querer tirar delas mais precisão do que elas contêm” (apud Veyne, 1998: 147). Acrescentaríamos: além de desesperado, totalmente dispensável, pois a exatidão será atingida aqui tão somente com base em esclarecimentos circunstanciados, conteudísticos, acerca dos contextos de uso. Assim, por exemplo, o termo “ateórico” em meu livro, longe de significar a exclusão de todo conhecimento do geral, um evidente absurdo, refere-se apenas a investigações sociais que não empregam exclusivamente conceitos e generalizações do teórico social A ou B, não possuem uma ideia tão particular de teoria social, ampliando assim a sua “base teórica”. Como o termo “teoria” costuma geralmente ser usado, entre os sociólogos, como sinônimo desses conceitos e generalizações particulares, e nas investigações em questão tal “teoria” não é obrigatória nem exclusiva, podemos chamá-las de “ateóricas”. Além disso, nessas investigações não encontraremos ilações dedutivistas a partir de simples conteúdos conceituais, pois são empíricas. O contexto de uso torna tudo isso perfeitamente claro, dispensando maiores esclarecimentos.

  Por outro lado, lembrar que em suas origens o termo “teoria” assumiu um determinado significado não muda nada, pois não transformamos termos da linguagem corrente num vocabulário técnico fazendo etimologia. Com isso, unicamente ampliamos o inventário dos usos sociais com base na erudição histórica. Esclarecer, por exemplo, que entre os antigos, ou entre os europeus do século XVII, o termo “liberdade” possuía tais e tais significados não é, obviamente, incluí-lo no vocabulário técnico de uma ciência empírica particular. A mesmíssima coisa pode ser dita do termo “teoria”. Pior ainda seria apelar para os significados idiossincráticos, particulares, exclusivos, assumidos no sistema do filósofo A ou B. Com efeito, esse tipo de esclarecimento conceitual só interessa a especialistas em autores, em textos que, distanciados da  pesquisa empírica, pouco ou nada têm a dizer de interessante e novo, pelo menos na primeira pessoa, sobre o mundo, natural ou social. Na melhor das hipóteses, não saímos aqui de uma história dos sistemas filosóficos. Não faria nenhum sentido, soaria absurdo e ridículo, por exemplo, censurar um usuário fluente na linguagem natural porque ele assegurou aos colegas de farras que tinha uma ótima ideia para o próximo final de semana, lembrando que Kant, inspirado em Platão, não autorizaria o uso que os farristas estavam fazendo do termo “ideia”. Os significados dos termos da linguagem corrente não podem ser buscados em autores particulares, mas sim, como já sabia Wittgenstein, num inventário dos seus usos sociais e consagrados, os quais também estão, aprendemos com os historiadores da cultura (Rorty tem razão: cabe a eles, e não a filósofos afastados da pesquisa empírica, inventariar significados), submetidos aos estragos do tempo: destacados de seus contextos originais de uso e introduzidos em novos ambientes sociais, os termos da linguagem corrente sofrem modificações, ganham novos significados, às vezes totalmente distintos. Essas considerações valem, convém lembrar,  para o significado do termo “ciência”, o qual também não é uma expressão técnica, definida com relativa univocidade e exatidão no âmbito de uma disciplina científica, tratando-se antes tão somente do vocábulo consagrado pelo uso social padrão para referir as bem-sucedidas investigações da natureza a partir do século 17 (Hume ainda empregava, sem problemas, o termo “filósofo” ao mencionar Newton e Galileu: para ele, esses dois grandes físicos eram simplesmente os maiores filósofos da história!). A explicação  da extensão do uso do termo “ciência” para outros tipos de investigação, os quais só partilhavam às vezes com a física moderna o hermetismo vocabular, como é o caso de alguns sistemas filosóficos, deve ser buscada em fatores sociais e psicológicos, associados ao enorme prestígio atingido pelo conhecimento científico no mundo moderno, e não em razões propriamente epistemológicas. Com isso, o termo “ciência” acabou assumindo muitas vezes um significado puramente honorífico, e não mais empírico. Hoje em dia, fala-se até em religião “científica”! Como J. Searle com toda razão disse em algum lugar, uma pista segura para alguém descobrir que está lidando com ciências imaginárias, e não reais, consiste  exatamente na insistência de seus praticantes em usar o rótulo “ciência”. Acrescentaríamos: e no tempo que perdem tentando, de todo modo, justificá-lo. Nesse tipo de esclarecimento histórico, a análise de conteúdos conceituais assume, certamente, o formato de um empreendimento empiricamente orientado. Fora disso, possui de fato duvidosa utilidade. Numa disciplina empírica como a sociologia, que não foi constituída para fazer a exegese de autores particulares e controversos, nem inventariar ressignificações de conceitos no tempo, esse tipo de discussão soa, é supérfluo dizê-lo, completamente inútil.

  Quanto à ideia de teoria acolhida em meu livro, não é nada complicada, muito pelo contrário. Seguindo o bom exemplo de Weber, um sociólogo que sensatamente nunca buscou romper com os significados usuais dos termos da linguagem corrente empregados em seu trabalho, como mostro com exemplos concretos em O Fetichismo do Conceito, entendo por teoria apenas o conhecimento do geral, ou seja, um tipo de conhecimento que mobiliza conceitos e enunciados mais gerais e abstratos. Simples, não? Isso é tão abrangente que pode ser usado para referir não só boas generalizações, mas igualmente incontáveis asneiras: também podemos, convenhamos, falar de teorias implausíveis, tolas e fantasiosas. Como já sabia Montaigne, o espírito humano “constrói tão bem no vazio como no pleno e tanto com a inanidade como com a matéria”. Impossível negá-lo.
Uma última observação: suspeito que as nossas convergências intelectuais são, em verdade, bem maiores do que você imagina. Fico feliz com essa constatação. Sugiro, para aprofundá-las, algumas rodadas de caipirinha em Recife, no segundo semestre de 2013.

Um grande abraço,

Gusmão

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Carta a Luciano Oliveira - Parte I

Por Luis Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmão
Caro Luciano:

Pude ler, também com atenção e prazer, as suas “Notas de Leitura” sobre o meu livro O Fetichismo do Conceito. O seu texto foi uma grata surpresa. Embora discordando de suas discordâncias por razões que apresentarei a seguir, gostei bastante. Você é o tipo de crítico que todo autor pediu a Deus: inteligente, correto, sensato, bem informado e, sobretudo, espirituoso. Motivado pela indiscutível qualidade de seus comentários, gostaria de fazer a crítica da crítica, como diria o jovem Marx.

  Seguindo a ordem de exposição encontrada em suas notas de leitura, começo pela hipótese acerca das minhas supostas razões para tratar com implacabilidade e irreverência consagrados teóricos sociais. Uma amiga sua sugeriu, ao lhe enviar a matéria publicada na “Folha de São Paulo” em junho passado, que poderia tratar-se de “mais um desses tipos em busca de sucesso por meio de provocações exageradas”. Mesmo com a ressalva de que O Fetichismo do Conceito está longe de ser apenas uma “provocação exagerada”, você afirma que “tais diatribes dão algum suporte à suspeita de minha amiga”. Não é a primeira vez, nem será provavelmente a última, que deparo com essa imputação de motivações, que não é, convenhamos, nem um pouco lisonjeira. Na realidade, temos aqui uma conclusão apressada e dedutivista, não apoiada em informações factuais que, nesse caso, seriam realmente indispensáveis: um bom conhecimento  da personalidade do autor, dos seus valores, crenças e história de vida. Sem isso, a sugestão de sua amiga de que o meu tom polêmico resulta da busca a todo custo de sucesso corre o sério risco de ser tão leviana quanto injusta. A dureza no tratamento dispensado a autores como Habermas e Bourdieu, para ficar apenas com os mencionados por você, expressa tão somente conclusões epistemológicas, amadurecidas nos últimos vinte anos de leituras e reflexões, formuladas num estilo que é o meu “desde criancinha” (como reclamava mamãe). Se você puder examinar um dia os meus exemplares das obras de Habermas, por exemplo, lidas mais atentamente nos anos noventa, verá que estão cobertos de iradas anotações, perto das quais o que você leu em O Fetichismo do Conceito parecerá suave e ameno. Confesso que realmente perdia a paciência ao atravessar toneladas de engenhosas argumentações para sustentar o insustentável, a saber, que os caminhos da verdade e do bem não apenas convergem como podem ser encontrados em mais um sistema filosófico particular produzido na Alemanha. De Habermas podemos afirmar a mesmíssima coisa que Nietzsche disse um dia da metafísica alemã mais antiga: do ponto de vista cognitivo, pouco vale, pois não é  ciência genuína, nem muito menos verdadeira sabedoria. Eu poderia passar dias, acredite, justificando circunstanciadamente essa dura conclusão.  A extrema irritação com a leitura passava toda para o papel.
  As tentativas de Bourdieu objetivando convencer os seus leitores, em sua maioria sociólogos não familiarizados com a moderna reflexão epistemológica, do status impecavelmente científico de sua própria obra, não soavam menos irritantes. Se operarmos com um conceito estritamente empírico de ciência − e não honorífico ou elaborado exclusivamente para permitir a inclusão de formas de conhecimento que só partilham com as ciências, às vezes, o esoterismo vocabular, assegurando-lhes assim prestígio intelectual e honras sociais −, seremos levados à conclusão de que teorias científicas, ao contrário dos sistemas filosóficos do passado, não constituem um ponto de vista pessoal de um autor e seus crédulos discípulos reunidos em uma escola, mas sim um saber tácita e consensualmente  acolhido no âmbito de uma disciplina, funcionando ali como base teórica indispensável, inescapável, em toda uma área de investigações empíricas. Alguns físicos franceses do século XVIII que detestavam Newton ainda insistiam em atacá-lo na defesa de Descartes, mas isso acabou há muito tempo: nos manuais franceses de mecânica, é Newton, e não Descartes, que é hoje obrigatoriamente ensinado.O estudo das teorias de Newton, devidamente incorporadas em manuais, não é de fato opcional para pesquisadores de todo um conjunto de fenômenos naturais.  Nesse caso, o aprendizado de um conhecimento do geral especializado, distinto e irredutível às melhores generalizações do saber de senso comum, acolhido sem maiores discussões filosóficas pelos investigadores de uma área de pesquisa, soa de fato obrigatório.Ora, nada disso pode ser dito da teoria sociológica de Bourdieu, pois em todas as áreas da sociologia empírica podemos encontrar pesquisas sérias que não recorrem, nem precisam recorrer, a um único conceito “técnico” de Bourdieu. Seria fácil prová-lo. Na realidade, o melhor Bourdieu, o Bourdieu que pode ser utilizado com proveito na pesquisa empírica, é sempre redutível ao conhecimento social de senso comum inteligente e bem informado. Dito de outra maneira, os seus melhores conceitos e generalizações (como, de resto, os de todos os outros teóricos sociais) podem ser perfeitamente formulados, com ganhos de clareza e testabilidade empírica, na linguagem corrente. No meu livro, como você há de lembrar, mostrei, com exemplos concretos, que os termos do jargão sociológico mais amplamente aceitos, aqueles dotados de indiscutível conteúdo empírico, são exatamente os termos não apenas tomados de empréstimo à linguagem corrente, mas que também preservaram integralmente, quando incorporados ao jargão em questão, os seus significados usuais, de senso comum. Isso significa dizer que, nesses casos, o conteúdo empírico do vocabulário sociológico é assegurado, na realidade, pela ausência de qualquer afastamento em relação aos significados de senso comum dos termos empregados. A famosa ruptura epistemológica soa aqui  simplesmente imaginária. Isso explica por que os conceitos e generalizações do melhor Bourdieu são opcionais, e não obrigatórios, na investigação social empiricamente orientada. O seu uso, como o possível uso de Shakespeare ou Dostoiévski numa análise de uma determinada manifestação das paixões humanas, embora em certos casos valioso, pouco ou nada tem a ver com o uso de teorias nas investigações científicas. Sendo assim, as afetadas e infundadas reivindicações de cientificidade em Bourdieu, que irão levá-lo a tratar com arrogância e desrespeito a obra de autores avessos ao cientificismo como Gadamer,  soavam para mim, de fato, irritantes. Essa irritação também foi toda para o papel. Contudo, as dificuldades de Bourdieu não se limitam a um despropositado  cientificismo: em leituras mais recentes, pude reunir mais de mil páginas de notas de leitura nas quais sublinho, sempre com exemplos concretos, sem analogismos carentes de controles empíricos e formais, nem generalizações vazias e retóricas, as dificuldades empíricas desse autor, em particular as que resultam do uso do conceito de campo em sociologia da ciência. Um dia, prometo apresentá-las detalhadamente.

  Tudo bem, a discordância intelectual poderia ser expressa de outra forma, e minha reação psicológica revela um temperamento colérico, difícil, intratável mesmo. Admito isso sem problemas, não gosto de brigar com os fatos. Mas não vamos confundir coisas sobre as quais a vontade, infelizmente, pouco ou nada pode, com uma estratégia urdida, calculada, visando renome. Além disso, eu nada, absolutamente nada tenho a ver com a algo escandalosa matéria da “Folha de São Paulo” (a segunda, pois a do Rafael Carrielo, publicada em maio de 2011, é bastante sóbria: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2703201104.htm ). Na realidade, fiquei sabendo 48 horas antes, e não tive conhecimento prévio algum dos conteúdos. Não se tratou de uma entrevista. O Renan Springer disse certa vez, com toda a razão, que, em termos de apresentação fiel das principais conclusões do livro, essa matéria não foi muito feliz, sugerindo que se tratava basicamente de uma crítica violenta das obras de famosos teóricos sociais. Como todos os que leram o livro sabem, nada mais longe da verdade.

Por outro lado, correndo o risco de parecer odiosamente elitista e personalizar demais esta resposta, deixe-me confessar o seguinte: para mim, o sucesso que de fato importa, o único pelo qual despenderia esforços, vem tão somente da aprovação espontânea e desinteressada dos melhores, de homens e mulheres de espírito, e não do aplauso de muitos. Eu levo a sério as observações de Karl Kraus e Fernando Pessoa citadas no meu livro... O reconhecimento que busquei não veio com as matérias publicadas na “Folha de São Paulo”, mas sim com a reação de pessoas como Evaldo Cabral, que ligou do Rio, 72 horas depois de ter recebido pelo correio uma cópia da primeira parte do meu livro, para dizer que já estava fazendo a segunda leitura do texto. Esse tipo de reconhecimento eu jamais conquistaria, é supérfluo dizê-lo, com “provocações exageradas”. Mas deixemos isso de lado. Vamos agora aos pontos mais importantes de seus comentários críticos.

Você associa, interpretando passagens do capítulo 1 do meu livro, as investigações que denomino de conteudísticas e ateóricas, apenas a pinturas de paisagens e acaba, por conta disso, fazendo a seguinte censura: como pintar paisagens seria, sobretudo, vocação dos historiadores, e não dos sociólogos, ao criticar as pesquisas sociais teoricamente orientadas por não serem conteudísticas, eu estaria, em verdade, censurando os sociólogos por não se ocuparem com uma atividade típica dos historiadores, tomando assim a história como padrão para avaliar as ciências sociais. Você vê nisso um verdadeiro sofisma. Nas suas palavras: “o sofisma, a meu ver, reside no fato de o autor tomar o que seria vocação de um dos campos, a história, para julgar os feitos de um outro, o das ciências sociais”. Se você tivesse razão nessa censura, não sobraria muita coisa do meu livro. Este acabaria reduzido, na hipótese mais piedosa, à lembrança, completamente dispensável para todo sociólogo mais sensato, de que o conhecimento teórico, numa disciplina empírica, não constitui um fim em si, funcionando antes como uma ferramenta intelectual a serviço de investigações empiricamente orientadas. Como não escrevi O Fetichismo do Conceito para repetir coisas sensatas, mas banais, essa redução seria fim de carreira: caberia esquecer a epistemologia, fazer outras coisas na vida. Felizmente, não corro de fato esse risco. E isso pelas seguintes razões:

1)      As descrições compreensivas das características mais ou menos notáveis de mundos sociais particulares, descrições nas quais essas características são reunidas num quadro coerente e significativo, cuja riqueza descritiva dependerá da erudição e do nível de generalização em que se coloca o seu autor, ou seja, as mencionadas pinturas de paisagens, não constituem vocação exclusiva da história, podendo também ser encontradas nas magníficas etnografias da antropologia clássica de inspiração funcionalista. Na realidade, toda e qualquer descrição compreensiva de ambientes sociais particulares que não seja parte de explicações causais pode ser identificada como uma pintura desses ambientes. Nesse sentido, é perfeitamente possível pintar paisagens sociais utilizando conceitos sociológicos, fazendo sociologia. Assim, por exemplo, podemos retratar a sociedade moderna, enquanto mundo social particular, em termos mais gerais e abstratos. Não é outra coisa o que faz Marx ao sublinhar os aspectos que, em sua opinião, vão distingui-la, tais como a generalização da economia de mercado, a emergência da democracia representativa, o culto do indivíduo independente e isolado de seus semelhantes, o ritmo febril das mudanças sociais, que leva as coisas mais sólidas a se esfumarem no ar. Um sociólogo leitor de Weber poderia incluir nessa paisagem, com ganhos de riqueza descritiva, o desencantamento do mundo e a dominação legal. Por outro lado, e mais importante ainda, cabe lembrar que não é a pintura de paisagens que irá distinguir as investigações sociais conteudísticas e ateóricas das teoricamente orientadas. Não se trata disso. A distinção é feita aqui levando-se em conta apenas a base teórica empregada (nas teoricamente orientadas teríamos de buscá-la apenas nos conceitos e enunciados gerais estabelecidos no âmbito da moderna teoria social, uma exigência ausente nas conteudísticas) e, sobretudo, o alcance atribuído a tal base na investigação do socialmente real em toda a sua complexidade e concretude;

2)      Na discussão acerca dos limites do conhecimento teórico nas investigações sociais, assunto central do livro, o que realmente importa é a análise do papel desse conhecimento nas explicações causais, e não na descrição de ambientes sociais particulares, na pintura de paisagens. Esse ponto foi claramente formulado no capítulo 1. Com efeito, ali podemos ler: “São as explicações causais, e não as caracterizações de ambientes ou acontecimentos sociais, que vão evidenciar, da forma mais límpida, mais conclusiva, os limites do uso de generalizações na investigação social, como veremos a seguir” (p. 21). Como você pode ver, eu não critico os sociólogos por não pintarem paisagens como fariam os historiadores. Na realidade, pintar ou não paisagens não tem maior importância na análise das dificuldades do interpretativismo teoricista desenvolvida em meu livro;

3)      O que será colocado em questão é a possibilidade de uma nítida distinção entre a causalidade sociológica e a causalidade histórica. O argumento clássico em favor dessa distinção reza o seguinte: o sociólogo lidaria com causações estruturais, lidaria com fatores cujos poderes causais são uniformes e duráveis, e não apenas contextuais, historicamente datados, e tais fatores permaneceriam inacessíveis aos não iniciados na moderna teoria social. Para acessá-los seria imprescindível o recurso a uma base teórica distinta e irredutível às melhores generalizações do chamado conhecimento social de senso comum. Dito de outra maneira, a causação sociológica, enquanto causação estrutural, demandaria explicações teoricamente orientadas. Muito diferente seria o caso da história. Ocupados com uma causalidade datada, circunstancial, mais visível, menos profunda, envolvendo apenas constelações singulares de fatores contextuais, os historiadores já não precisariam, como os sociólogos, recorrer a teorias sociológicas gerais. Bastariam aqui as explicações causais intencionais, ou seja, os esclarecimentos acerca dos interesses, valores, crenças, disposições e objetivos concretos que moveram indivíduos situados em cenários sociais particulares. Nesse argumento em favor de uma clara distinção entre causalidade sociológica e causalidade histórica, temos, é desnecessário dizê-lo, uma espécie de estratificação epistemológica na qual investigadores sociais teoricamente orientados ocupariam uma posição privilegiada, estando, por assim dizer, no topo da pirâmide. Este, sem dúvida, o objetivo explicitamente perseguido por autores como Marx, Durkheim e Mannheim ao buscarem ultrapassar as explicações intencionais oferecidas pelos historiadores, constituindo assim uma genuína ciência empírica da vida social. Marx, lembremos, sonhava com uma história teórica, e Mannheim fala explicitamente numa “iluminação teórica” da história. Não há nada de errado, obviamente, com esse projeto teórico, muito pelo contrário. Impossível não admirá-lo na sua audácia e grandeza intelectuais. Contudo, cabe avaliá-lo pelos seus efetivos resultados, e estes, como tentei mostrar no meu livro de forma circunstanciada, com exemplos concretos, de fato desapontaram. Qual a base dessa conclusão pessimista? Resumindo coisas demais, simplificando demais, eis a resposta: os conceitos, não importa o nível de abstração e generalidade em que se situem, aparecem sempre, tanto nas descrições como nas explicações e predições de um dado evento ou estado de coisas, inseridos em sentenças, que podem ser gerais ou particulares. Não podemos, portanto, estabelecer relações de dependência uniformes e invariáveis entre fenômenos sociais tipificados utilizando apenas termos ou conceitos. Para isso é necessário também dispor de sentenças gerais, de validade trans-histórica, cujas condições de aplicação já tenham sido clara e consensualmente fixadas pela comunidade científica, nas quais se assegure que determinados fenômenos sociais resultam, com regularidade, de condições sociais tipificadas claramente estipuladas. Se a sociologia dispusesse de um corpo de sentenças gerais desse tipo, os sociólogos poderiam dispensar as explicações intencionais da ação social, reduzindo a intencionalidade humana a uma simples “variável dependente” a ser deduzida, também ela, de um conjunto tipificado de condições estruturais. Nesse caso, teríamos de fato uma causação estrutural teoricamente “iluminada”, acessível apenas aos sociólogos, e a distinção entre causalidade sociológica e causalidade histórica estaria justificada acima da dúvida sensata. Infelizmente, semelhante feito teórico ainda não foi realizado por ninguém, apesar de ter sido inúmeras vezes tentado. Descrições das condições mais gerais e duráveis da ação intencional, individual ou coletiva, ou dos efeitos não premeditados nem desejados dessas ações, não constituem, por razões detalhadas em O Fetichismo do Conceito, nada parecido. Quanto aos chamados “mecanismos”, vistos por alguns teóricos sociais mais modestos e sensatos como uma espécie de terceira via capaz de superar a dicotomia entre narrativa e causação nomológica, além das dificuldades apontadas no livro, cabe lembrar que, também nesse caso, ninguém convenceu ninguém e as igrejinhas teóricas se multiplicaram numa, como diria Montaigne, “infinita e perpétua altercação de ideias e de argumentos”. Não seria difícil prová-lo.

4)      A efetiva existência de padrões societários, ou seja, de formas de agir, pensar e sentir coletivas mais duráveis, mais permanentes, capazes de reproduzir-se no transcurso de um tempo que já não medimos à escala da vida de um indivíduo( os chamados “fatos sociais,”cuja realidade foi corretamente sublinhada por Durkheim), não basta para  autorizar uma nítida distinção entre explicação sociológica teoricamente orientada e explicação histórica: como procuro mostrar em O fetichismo do conceito com vários exemplos, é perfeitamente possível, sim, proceder ao registro empírico desses padrões societários, explicá-los em termos causais e utilizá-los na explicação da ação individual e coletiva, sem o recurso a qualquer conhecimento teórico especializado relativo às sociedades humanas, concebidas na totalidade de seus aspectos. Em outras palavras, a presença de padrões na vida social não demanda obrigatoriamente, como é o caso dos padrões do mundo físico, um conhecimento do geral distinto e irredutível às melhores generalizações do saber de senso comum. Sendo assim, podemos falar numa sociologia conteudística, não dependente das teorias particulares do autor A ou B, cujas explicações já não diferem qualitativamente das explicações encontradas na boa historiografia. No meu livro, a obra de Tocqueville aparece como um dos mais convincentes exemplos dessa possibilidade.


  Após citar com aprovação uma passagem na qual sublinho a utilidade de conceitos sociológicos técnicos, formulados por teóricos particulares na visibilização de importantes fenômenos sociais, você pergunta: mas tais conceitos não seriam as novas ferramentas intelectuais que permitem a superação do inventário exaustivo das constelações de variáveis contextuais? Respondo: Infelizmente, não. Eis minhas razões:

1)      Visibilizar um dado fenômeno ao nomeá-lo, ao etiquetá-lo, ao inseri-lo numa determinada classificação ou tipologia, não é oferecer uma explicação causal teoricamente orientada desse fenômeno, não é, a rigor, oferecer explicação causal nenhuma: a visibilização da existência de algo não se confunde, claro, com a explicação de suas origens. Esta, quando possível, virá depois, numa segunda etapa. Temos aqui duas coisas diferentes, cabe distingui-las. Ora, como os inventários exaustivos de variáveis contextuais causalmente relevantes se tornam indispensáveis devido à inexistência de genuínas explicações causais teoricamente orientadas, não podemos superar tais inventários apontando apenas para a utilidade do vocabulário sociológico, das novas ferramentas intelectuais, na visibilização dos fenômenos sociais;

2)      A passagem citada por você é da primeira parte do livro, escrita em 2006, época em que eu ainda alimentava um relativo otimismo quanto a possíveis utilidades de jargões sociológicos. Com o passar dos anos, com o aprofundamento de minhas observações, esse otimismo, em larga medida, evaporou. Eu alerto o leitor, da forma mais explícita possível, para essa mudança, além de justificá-la detalhadamente. De fato, na página 326 lemos: “Abandonando certo otimismo ainda presente em nossas primeiras observações acerca do uso de conceitos sociológicos técnicos, fornecidos pelo teórico A ou B, nas investigações sociais conteudísticas, gostaríamos de esclarecer o seguinte: embora seja possível, como demonstramos com o exemplo de Burke e com o nosso experimento mental de um Sérgio Buarque ‘teórico’, o emprego empírico e não dedutivista desses conceitos, não é isso, infelizmente, o que em geral ocorre”. Em seguida eu explico por que razões o fetichismo do conceito se tornará menos provável se o investigador utilizar apenas conceitos sociais de senso comum, cujos significados tenham sido fixados por um uso social padrão na vida cotidiana, evitando jargões sociológicos. Eis uma dessas razões: é que esses conceitos “estão menos enredados, por assim dizer, com problemáticos enunciados gerais do que boa parte dos conceitos sociológicos, formulados num jargão técnico por este ou aquele teórico social, e se prestam menos, devido a isso, a ilações dedutivistas acerca da causação social” (p. 327). Assim, por exemplo, o termo “classe operária” em seus significados usuais, de senso comum, não viabiliza, sem as devidas qualificações conteudísticas, maiores conclusões sobre as classes operárias reais,  empiricamente dadas, pois não há muito a dizer, nesse caso, a partir do mero conteúdo conceitual: se o pesquisador quiser concluir coisas novas e substantivas, precisará realmente realizar pesquisas empíricas. Não há outra saída! Portanto, a pobreza do conteúdo sistemático dos conceitos sociais de senso comum, longe de representar um problema, acaba se revelando aqui uma grande vantagem ao inviabilizar dedutivismos, ao obrigar o pesquisador a mergulhar no trabalho empírico. Em contrapartida, se tomarmos o mesmíssimo termo na acepção teórica, técnica, que assume na sociologia marxista, tudo muda dramaticamente para pior. A ruptura com o senso comum se mostra desastrosa: indissoluvelmente comprometido com toda uma teoria geral da sociedade e da história de discutível conteúdo empírico, o conceito técnico de classe operária permitirá agora um verdadeiro dilúvio de ilações dedutivistas. Ganha o interpretativismo teoricista, perde a sociologia empírica. Em O Fetichismo do Conceito isso é bem ilustrado, como você há de lembrar, pela análise impiedosa da obra, não de um sociólogo, mas sim de um consagrado historiador, o Thompson. Não, não se trata de contrapor disciplinas nem de julgar uma com base na outra;

3)      Na segunda e terceira partes do livro, abandonando o mencionado otimismo, coloco em dúvida até mesmo a modesta utilidade, atribuída ao jargão sociológico, de visibilizar importantes fenômenos sociais. Eu, de fato, não acredito mais nisso. Não por inexplicável e gratuita birra com os teóricos sociais, nem por ter presenciado, na condição de examinador de bancas de pós-graduação, o uso mais insano, mais tresloucado desses teóricos, embora isso ocorra de fato com frequência e não seja, diga-se de passagem, culpa exclusiva da imaturidade de mestrandos e doutorandos – as ilusões teoricistas acerca do que podem fazer com simples quadros conceituais não são de responsabilidade apenas deles. Na realidade, venho nos últimos anos fazendo a reiterada constatação de que observadores argutos da vida coletiva, valendo-se tão somente de conceitos de senso comum expressos na linguagem corrente (leia-se: conceitos cujos significados foram fixados pelo uso padrão na vida cotidiana e não no interior de um conhecimento especializado), foram, sim, perfeitamente capazes de vislumbrar, com a devida nitidez, aqueles fenômenos sociais mais tarde visibilizados por conceitos sociológicos formulados num jargão técnico. No livro eu dou alguns exemplos que poderiam ser facilmente multiplicados. A lista, acredite, não é pequena! Se eu não estivesse fora do Brasil agora, longe da minha biblioteca, incluiria aqui novas “provas empíricas” dessa conclusão. Não, eu não estou fazendo “graçolas”, buscando ser divertido – seria desastroso: não tenho, infelizmente, esse talento – ao citar aquela passagem de Pascal. Trata-se de uma observação epistemológica importante cujas implicações práticas, na pesquisa empírica, estão longe de ser irrelevantes: se eu estiver correto, os sociólogos efetivamente envolvidos com pesquisas empíricas (os outros, os aprendizes de filósofos, os moralistas travestidos de “cientistas”, não importam minimamente) já não precisariam perder o seu valioso tempo com a exegese de textos, tentando entender o significado “exato” de dispensáveis jargões sociológicos, já não precisariam exibir, para ganhar respeitabilidade intelectual entre os seus pares, o domínio desses jargões. Ótimo, não?

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sobre a vocação da Sociologia enquanto a morfogênese se intensifica



Por Margaret Archer, Escola Politécnica Federal de Lausanne, Suíça, e ex-presidente da
ISA, 1986 – 1990. Originalmente publicado em Diálogo Global, 3 (1). Novembro de 2012, p. 4-5. Disponível em: http://www.isa-sociology.org/global-dialogue/newsletters3-1/portuguese.pdf


A Sociologia nasceu buscando respostas para quatro perguntas: “de onde nós viemos?”, “o que temos agora?”, “para onde estamos indo?” e “o que deve ser feito?”. Essas são todas perguntas realistas: existe um mundo social real com propriedades reais, habitado por pessoas reais que, coletivamente, construíram o passado e cujos poderes causais já estão modelando o futuro. A maneira pela qual Weber expressou a vocação da sociologia foi descobrindopor que as coisas são “assim” e não “de outra forma”. Aqueles que compartilham esse compromisso jamais poderiam aceitar a conclusão de Baudrillard: “tudo o que resta é brincar com as peças”. Ibn Khaldun poderia ter chamado isso de a marca de uma civilização decadente.

O que é mais danoso do que a “jocosidade” pósmodernista é, na verdade, o estilhaçamento das peças. Toda a vida social – micro –, meso – e macroscópica – entra necessariamente num mesmo SACO; as relações entre “estrutura”, “ação” e “cultura” são sempre indispensáveis para explicar qualquer coisa social.

Sem ser minucioso com respeito às definições, desprezar a “estrutura” e os contextos nos quais as pessoas vivem se torna algo caleidoscopicamente contingente; omita a cultura, e ninguém terá um repertório de ideias para construir a situação que as pessoas enfrentam; sem agência perdemos a relação de atividade-dependência enquanto causa eficiente de existência de uma ordem social. A vocação da sociologia é conseguir levar em
conta as inter-relações e as configurações resultantes. Ao quebrar as peças e então pulverizá-las, muitos teóricos sociais renunciaram a sua vocação e se tornam agentes funerários, escrevendo certidões de mortes para cada componente do SACO. E mais, com essas “mortes”, cada parte do mundo fica privada de ferramentas para explicar por que as coisas são como são e por que as coisas poderiam ser de outra forma.

Com relação às “estruturas”, teorias atuais de “desestruturação” substituem-nas com fluidez. A metáfora da liquidez aponta para a extrema descontrolabilidade do social. Isso foi anunciado pelas sociedades de “fuga”, “destruidoras” e “de risco”, mas a inundação ganhou espaço e está flutuando sobre o mar de fenômenos auto-organizados, projetados pela teoria da complexidade. Entretanto, a inaptidão é gritante em face à crise econômica atual. Essa crise revelou parte de uma estrutura previamente escondida. Sabemos mais agora sobre a estruturação do capital financeiro global e seu entrelaçamento com as multinacionais e os governos nacionais do que antes de 2008. Tudo que é sólido não se desmancha no ar, mas derivados, hipotecas, arranjos e trocas estrangeiras, e débitos do mercado são mais compreensíveis do que o Fordismo.

Porque as posições estruturadas, as relações e os interesses são realmente complicados, a mídia tem banalizado e personalizado a crise em termos de bonificação dos banqueiros, ajudando a rolar algumas cabeças ávidas. Os “Movimentos de Ocupação” testificam a falta de ferramental sociológico. Eles estão se opondo às medidas de austeridade ou a um capitalismo financeiro global? Embora Londres pareça insegura, o movimento de Genebra mantém seminários regulares nos quais discutem como conter as complexidades envolvidas. Associações de economistas heterodoxos vêm sendo frequentemente mais úteis do que os sociólogos. Onde está o nosso equivalente às análises de Stefano Zamagnai sobre as nefastas contribuições feitas pelos últimos dez ganhadores do Prêmio Nobel em economia? Qual é a nossa contribuição visando uma economia civil?

Isso leva à “cultura” e ao imenso papel que a TINA[1] (“There Is No Alternative”) tem desempenhado na tentativa de voltar ao “business as usual”[2]. A “virada cultural” privilegia o discurso, mas a crise não pode ser reduzida ao tom discursivo. A hegemonia do discurso deslocou o conceito de ideologia, relegando-o para a lata do lixo da luta de classes “zumbi”. Com ela, o nexo fundamental entre ideias e interesses foi perdido enquanto lugar de legitimação política. Perdidas foram também as fontes ideacionais da crítica, não meramente como atividades expressivas (há muitas delas), mas como fontes de mobilização social (cuja ausência fortalece a TINA). Ironicamente, como as águas correm, há um obstinado apego ao hábito, a uma disposição de habitus e à ação de rotina na sociologia, a despeito de sua incongruência com mudanças rápidas. No entanto, como os grandes pragmatistas americanos foram os primeiros a salientar, as situações problemáticas são as parteiras de inovação reflexiva.

Finalmente, e o mais sério, é a morte do sujeito, apagado, segundo Foucault colocou há mais de 40 anos, “como um rosto desenhado na areia à beira da praia”. Desde então o nosso apagamento humano foi repetido por muitos limpadores de lousas: as pessoas tornaram-se lousas limpas, abertas para uma auto-inscrição (Gergen), egos serialmente reinventados (Beck), e por fim, rebaixados a agentes “actantes”[3]. Com a morte do sujeito, reflexividade, intencionalidade, assistencialismo e compromisso também saem de cena, juntamente com a capacidade exclusivamente humana de vislumbrar como as coisas poderiam ser de outra forma.

Os defensores das responsabilidades e potencialidades humanas têm sido bastante raros; por conta disso, Andrew Sayer teve necessidade de escrever seu excelente livro Why Things Matter to People. A sociologia conserva um lado humanista, mas seu modo de abordar o humano ainda aparece abafado. Assim, isolamento e solidão não são temas populares quando comparados com a marginalização e a exclusão, mas são, quando muito, flagelos do mundo desenvolvido e de suas consequências. Os sociólogos também são mais contundentes em acentuar a nossa suscetibilidade ao sofrimento do que ao florescimento. Somos ainda muito tímidos no avanço de uma “Sociologia da Prosperidade”, limitando-nos bastante às necessidades biológicas inquestionáveis. Por que não há uma sociologia da alegria, pouco mencionada com exultação ou forte contentamento, e por que a felicidade está delegada às métricas dos economistas? Responder a essas perguntas é um predicado da sociologia no sentido de contribuir para o florescimento da sociedade civil.

Hoje, a principal alegoria é a “modernidade líquida”, mas metáforas nada explicam e muitas vezes confundem (lembremo-nos das analogias mecânica, orgânica e cibernética). Certas teorias da mudança têm acentuado somente um dos elementos isolados do SACO: “cultura” por “Sociedade da Informação”; “estrutura” por “Capitalismo Globalizado” ou “Império”; e “agência” por “individualism institucionalizado” da “Modernidade Reflexiva”. Cada teoria se apropria de somente um dos componentes (empiricamente impactante), considera cada componente como a parte mais importante e o iguala erroneamente ao mecanismo de mudança. Ao invés disso, precisamos examinar as sinergias do SACO e as respostas positivas que tornam a morfogênese o processo responsável por intensificar a mudança – de um modo não metafórico.




[1] Na versão original em inglês, TINA significa “There Is No Alternative”, utilizada frequentemente pela ex-Primeira Ministra Britânica Margaret Thatcher. 
[2] A expressão “Business as usual” faz referência às políticas britânicas adotadas no início da I Guerra Mundial.
[3] “Actante” é um termo frequentemente utilizado na semiótica. Originalmente,
foi utilizado pelo linguista francês LucienTesnière (1893-1954) para denotar
as principais funções sintáticas (sujeito, objeto direto e objeto indireto) que
dependem do verbo na sintaxe. Posteriormente, o linguista lituano Algirdas
Julien Greimas (1917-1992) o utilizará para determinar os participantes ativos
(pessoas, animais ou coisas) em qualquer forma narrativa, seja um texto, uma imagem, um som.