sexta-feira, 28 de maio de 2010

O ateu, o muçulmano e as abelhas : quando representações sociais ancoradas encontram uma experiência-problema



Tâmara de Oliveira

Tudo começou num final de tarde primaveril. Um enxame de abelhas tinha se instalado de uma hora para outra numa árvore do jardim. Imagem desconfortável essa, a de uma multidão agrupada, organizada e produtiva (vista ?), aparentemente disposta a fundar uma nova colônia – a rainha, suas operárias e seus machos desesperados – em propriedade humana alheia, ou seja, em nossa casa ! O que fazer ? Entre o arrepiado fascínio pela concretude daquela solidariedade mecânica em movimento e a consciência da impotência para expulsá-la dali sem mais nem menos, optamos por um sono reparador. « Amanhã a gente vê ». E vimos ! A massa holística continuava no mesmo lugar, mas alguns indivíduos já se deslocavam para experimentar o gosto das flores de nosso jardim. Será que estávamos diante de um processo histórico individualista, de passagem da solidariedade mecânica para a orgânica?


domingo, 23 de maio de 2010

A arte da entrevista

Faz tempo que Jonatas e eu planejamos uma entrevista com Robert Brym, sociólogo da Universidade de Toronto. Hoje, finalmente, Bob e eu iniciamos a entrevista via Skype, mas, por razões alheias à nossa vontade, tivemos que interrompê-la. Isso me fez pensar nas dificuldades envolvidas em uma boa entrevista sociológica, especialmente as de ordem metodológica. Sabemos o quão importante é fazer o entrevistando se sentir à vontade para externar seus pontos de vista, evitar constrangê-lo com questões com as quais não se sente confortável, criarmos um clima de empatia que nos permita nos colocarmos em seu lugar, não impormos nossas próprias categorias de análise etc. Mas isso certamente é mais fácil de falar do que de fazer. Alguns entrevistandos são notadamente resistentes em fornecer as informações que nos interessam, tendem à aquiescência para criar um clima amigável ou para dar a impressão de que têm uma visão semelhante à do especialista que o está entrevistando, evitam questões de ordem afetiva ou emocional, dentre outros problemas comuns. Entrevistar é uma arte complexa. A fim de ilustrar a importância da sensibilidade do entrevistador para lidar adequadamente com essas questões, segue uma das melhores entrevistas que vi nos últimos tempos. É comovente a forma como o entrevistando abre seu coração ao final. Abaixo, a tradução - bastante livre devido à complexidade do tema.

Cynthia Hamlin



Entrevistador: Animal, o que o faz verdadeiramente feliz?
Animal: Jogo!
Entrevistador: Jogo?
Animal: Jogo!
Entrevistador: Animal?
Animal: Sim?
Entrevistador: Aaahn... eu estou aqui.
Animal: Ah! Oooooooi!
Entrevistador: Oi, Animal.
Animal: Oi. Bateria, bateria, bateria!
Entrevistador: Quando eu disser uma palavra...
Animal: Sim!
Entrevistador: ... e ela lhe lembrar algo...
Animal: Sim!
Entrevistador: ... você diz o que é.
Animal: Sim, sim, sim!
Entrevistador: Está pronto?
Animal: ...
Entrevistador: Animal?
Animal: Aaahn? Sim!
Entrevistador: Você vai dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça.
Animal: Oi!
Entrevistador: Oi?
Animal: Oi. Bateria, bateria, bateria!
Entrevistador: Ok. Vamos falar de outra coisa...
Animal: Coelhinho.
Entrevistador: Você gosta de coelhinhos?
Animal: Gosta de coelhinho. Gosta de coelhinho.
Entrevistador: Você tem um coelhinho?
Animal: Não, eu não tenho coelhinho.
Entrevistador: Você gostaria de ter um coelhinho?
Animal: Gosta de coelhinho.
Entrevistador: Um coelhinho grande?
Animal: Coelhinho pequeno.
Entrevistador: Um coelhinho pequeno?
Animal: Por favor?

sábado, 22 de maio de 2010

Desafios da Reestruturação Produtiva

Sindicalistas e grandes especialistas em sociologia do trabalho, como Ângela Carneiro, Helena Hirata e Maria Betânia Ávila, falam do impacto da reestruturação produtiva na vida das trabalhadoras. Vale a pena conferir.

Desafios da Reestruturação Produtiva (Série: Mulheres Trabalhando) from Universidade Livre Feminista on Vimeo.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Modernismo Brasileiro e Ciências Sociais



Fernando da Mota Lima

Para César e Brenno, por tudo que só a amizade convivida traduz.

Como há ainda quem confunda o modernismo brasileiro com um movimento restrito ao campo das artes e da literatura, talvez convenha começar este artigo ressaltando seu caráter de movimento cultural muito mais amplo. Antes de tudo, por ser esse o modo adequado de fazer justiça à sua real amplitude; em seguida, porque meu propósito, já explícito no título deste artigo, é descrever algumas das suas conexões mais fortes com o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido frisa num dos seus ensaios mais citados, “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, que a literatura ocupou posição central no desenvolvimento da nossa vida espiritual. À diferença de outros países, onde a filosofia e mesmo as ciências sociais desempenharam papel similar, aqui a literatura incorporou à sua expressão propriamente estética um caráter de função socialmente interessada à margem da qual seria impossível compreender o sentido abrangente e sociologicamente relevante da obra de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre... Suponho que duas razões óbvias desse fenômeno radicam na ausência de uma sólida tradição universitária e no consequente desenvolvimento tardio das ciências sociais. Privado de uma tradição rica e intelectualmente diferenciada, o escritor brasileiro sente-se investido de uma missão socialmente elástica inexistente nas culturas cujas instituições e processos de divisão do trabalho intelectual já estão consolidados. Este é um fato facilmente aferível na obra dos autores acima citados, assim como em muitos dos seus contemporâneos.


domingo, 16 de maio de 2010

A incrível e triste história de Loretta e sua realidade desalmada

Cynthia Hamlin

(Para Eveline Rojas)

Um dos pilares do realismo critico é a distinção entre epistemologia e ontologia, ou, em termos Bhaskarianos, entre um domínio transitivo (aquilo que conhecemos) e um domínio intransitivo (aquilo que existe de maneira relativamente independente de nossas concepções). “Relativamente” porque a existência de alguns objetos, como é o caso da maioria dos objetos sociais, depende da concepção que os atores têm deles, embora independa das concepções do pesquisador (no sentido específico de que não são as categorias utilizadas para descrevê-las que geram sua existência). Ao que tudo indica, essa distinção tem sido uma enorme fonte de angústia entre as alunas do curso de teoria realista que estou ministrando na Pós-Graduação. Frequentemente surgem questões do tipo “gênero é transitivo ou intransitivo?”, “a esquizofrenia é transitiva ou intransitiva?”, “se o sexo é uma construção social, ele é transitivo ou intransitivo?”.

Colocadas desta forma, tais questões não fazem sentido. A transitividade ou intransitividade de objetos particulares deve ser estabelecida pelas ciências particulares, não pela filosofia. Sendo assim, a distinção transitivo/intransitivo é sempre objeto de controvérsia, pois a ontologia é sempre estabelecida via epistemologia – ou seja, o que é considerado real depende de argumentos teóricos que, como tais, são sempre do domínio transitivo. Não se pode escapar do pensamento e da linguagem. Mas se é este o caso, porque simplesmente não concordarmos com os pós-estruturalistas e com construtivistas como Quine e Nelson Goodman? Por uma série de razões, mas, em minha opinião, uma das mais importantes é porque tais abordagens impedem qualquer afirmação razoável relativa a um domínio não-cultural. Do fato de que o mundo natural é culturalmente interpretado não se segue que ele seja culturalmente constituído em um sentido forte. Embora a linha que separa a natureza e a cultura seja extremamente fluida e que suas fronteiras estejam cada vez mais borradas, ignorar os limites impostos pela natureza (aqui considerada em sua dimensão intransitiva) sobre as nossas ações tem conseqüências práticas pífias, quando não desastrosas.

Tomemos como exemplo a dissolução entre natureza e cultura efetuada por feministas pós-estruturalistas. Ao afirmarem que as categorias de sexo (intransitivo, para as feministas realistas) são, no fundo, expressões de gênero (transitivo, de um ponto de vista de comunidades particulares), o argumento político que geralmente se segue é o de que “as possibilidades para transformações societais reais seriam ilimitadas se a naturalidade do gênero [incluindo o sexo biológico] pudesse ser questionada” (Kessler & McKeenna, Gender: an ethnomethodological approach, Chicago: Chicago University Press, 1978, p. 163). Questionemos, então. Mas como parece que meus questionamentos filosóficos e teóricos não tem surtido muito efeito entre minhas alunas, mudarei minha estratégia e recorrerei ao Monty Python. Com vocês, a incrível e triste história de Loretta:

quarta-feira, 12 de maio de 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

E os "desaparecidos"? A transição ainda não acabou



Luciano Oliveira - professor de Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito do Recife; autor do livro Do Nunca Mais ao Eterno Retorno: uma reflexão sobre a tortura, São Paulo, Brasiliense, 2009 (2ª edição).

A recente decisão do STF no sentido de não se mexer na Lei de Anistia, pela folgada maioria de 7 votos a 2, põe uma pedra definitiva na questão da responsabilidade penal dos torturadores do regime militar, mas não encerra o assunto! A ditadura continua vagando como uma alma penada; e, como acontece com as almas penadas, só quando os militares pedirem reza é que o regime de 64 estará definitivamente concluído. A reza, naturalmente, deveria vir sob a forma de um mea culpa formal pelas atrocidades cometidas. Infelizmente, acho que é sonhar muito. Mas talvez possamos esperar que, definitivamente tranqüilizados quando à possibilidade de uma “revanche”, eles tenham agora a grandeza de abrir os arquivos, de dizer tudo o que sabem, de cooperar sinceramente com os esforços de se conhecer, finalmente, o destino dos desaparecidos.

Que outra pudesse ter sido a decisão da nossa Corte Suprema, nunca acreditei nisso. De resto, pessoalmente nunca fui simpático à revisão da Lei mais de trinta anos depois dos eventos que ela indubitavelmente cobre. Juristas de primeira linha e comprometidos com a causa dos direitos humanos - junto a quem, aliás, me alinho nesse engajamento - têm elaborado uma interpretação segundo a qual as torturas praticadas nos porões do regime não podem estar cobertas pela Lei nº 6.683/79, que anistiou os crimes políticos praticados no Brasil naquele período. Discordo. Afirmar que os crimes dos torturadores não foram crimes políticos, é fazer do coração tripas para demonstrar o que só pode ser “demonstrado” mediante sérias torções no bom senso! Para nossa desolação, o § 1º do art. 1º da referida Lei diz textualmente: “Consideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” - itálicos meus. Diante de tal literalidade, não vejo como sustentar a tese do crime não político. A estrutura repressiva montada no Brasil a partir de 1968, com a edição do AI-5, notadamente os sinistros DOI-CODIs, praticou crimes horríveis e hediondos. Mas qual foi a motivação de todo aquele horror senão política?... Num exercício jurídico penoso até de ser formulado, eu diria que torturadores que extorquiram dinheiro de familiares de presos, torturadores que estupraram presas sob sua custódia - e há relatos de que esse plus de abominação aconteceu! -, esses, eu diria, não foram anistiados! A sua motivação não pode ter sido política. Os epítetos de “monstro, desnaturado e tarado”, proferidos pelo ministro Ayres Britto, um dos dois votos vencidos no julgamento, cai-lhes como uma luva. Infelizmente, porém, estão todos acobertados pelos mais de trinta anos que já transcorreram e a prescrição que os beneficia. E continuo com a minha tese.

Além da letra da lei, todos que viveram aqueles anos sabem - e os que tiveram a sorte de vir ao mundo depois podem saber consultando a história do período - que a Lei foi feita para os dois lados. Revê-la agora é desconsiderar o contexto histórico e os que, naquele momento, negociaram e aprovaram a lei. A impunidade dos torturadores, por mais que seja pouco glorioso dizê-lo, foi uma das condições para que pudéssemos ter retomado a história brasileira das mãos dos militares. A correlação de forças ainda pendia tão fortemente para o lado da ditadura, que a punição dos torturadores não era uma reivindicação realista. A grande discussão da época referia-se aos presos condenados por “crimes de sangue”, que o projeto do governo deixava de fora. Pressionado pela “linha dura”, o Planalto não cedeu, mas pactuou a revisão de sua situação. De fato, quase todos foram soltos nos meses seguintes. Ninguém sabe o que teria acontecido se não tivéssemos tido a anistia naquele momento e não se pode contar uma história que não aconteceu. O que é possível afirmar com segurança é que, sem a salvaguarda dos interesses dos “revolucionários sinceros, mas radicais” - como dizia eufemisticamente Geisel para se referir à “linha dura” e seus torturadores -, não teríamos tido a anistia de 1979. O que veio depois é tanto apesar dessa história quanto graças a essa história...

Comentando a votação no STF, Paulo Sérgio Pinheiro diz que ela “consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos” (Folha de S. Paulo, 05/05/10). De fato, países como o Chile e a Argentina repudiaram as respectivas ditaduras com uma desenvoltura que nunca se viu por aqui, e perseguiram e perseguem ainda seus torturadores - enquanto nós reafirmamos a anistia que os beneficiou. Mas há diferenças significativas entre as ditaduras. Em primeiro lugar, naqueles dois países a vida política foi extinta. Os ditadores nunca tiveram de compor com partidos políticos ou negociar apoio. No Brasil, mesmo com a “espada de Dâmocles” (imagem particularmente cara ao finado Doutor Ulysses) sobre a cabeça, as instituições mantiveram-se em funcionamento a maior parte do tempo e houve ocasiões, como nas eleições de 1974, em que o governo sofreu derrotas humilhantes. A manutenção de um Congresso funcionando fez de boa parte dos políticos brasileiros não apenas partícipes do jogo, mas servidores do regime. Logo, cúmplices. Muitos ainda estão na ativa. Além disso, ponto a não ser negligenciado é a diferença enorme nos números de mortos e desaparecidos. O número estimado de 400 mortos pelo regime militar brasileiro - entre os quais estão cerca de 140 desaparecidos - é sem comum medida com a carnificina promovida pelos regimes de Pinochet e Videla. Na Argentina, números por baixo chegam à cifra impressionante de 20 mil mortos e desaparecidos. Para a mãe ainda viva de um desaparecido brasileiro, o raciocínio pode parecer cínico e cruel. Mas, sociologicamente falando, o pequeno número de vítimas fatais, no Brasil, explica sem dúvida o fato de que movimentos como os de familiares de desaparecidos nunca foram capazes de impactar e mobilizar a sociedade brasileira em torno de um projeto punitivo para seus algozes. Ou seja, no que diz respeito às atrocidades, o Brasil ficou também - felizmente! - na rabeira daqueles países.

O julgamento no STF foi mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Foi mais um capítulo, mas não foi o último. Talvez tenha sido o penúltimo. O último precisa ser escrito. Refiro-me à exigência, inafastável, em relação ao destino dos desaparecidos – as circunstâncias de suas mortes e onde os restos mortais foram enterrados, se o foram. Aqui estamos num patamar de exigência moral de que não devemos abrir mão. É incompreensível, absurdo e inaceitável a postura das Forças Armadas que se recusam até hoje a encarar esse assunto com a seriedade e com o espírito de colaboração que ele exige. Até porque aqui já não se trata de proteger companheiros de farda - a maioria certamente já de pijama - que se dispuseram a fazer o trabalho sujo dos porões. Com o julgamento do STF, eles podem (se puderem...) dormir tranqüilos. Quanto às Forças Armadas como instituição, elas continuam em débito com o dever de tornar públicos os arquivos e informações que detenham sobre o destino desses adversários mortos. Isso, sim, as reconciliaria de vez com a Nação. Mais do que um dever ético, trata-se até do simples dever de compaixão para com as mães, irmãos e filhos dos que desaparecem na “noite e na névoa” sem deixar traço. Por isso a transição ainda não terminou. Ela não terminará enquanto uma mãe como a de Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, se perguntar todos os dias de sua vida como faz até hoje: “Onde está o meu filho?”

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Animus meminisse horret: um diálogo com o Refutador, um demônio de asas de pterodáctilo e ossos ocos


Uma das manifestações do Refutador...

Artur Perrusi

Num dia chuvoso, faz muito tempo, entreguei um trabalho de mestrado à prestigiosa professora Silke Weber. Tinha como tema a teoria das representações sociais. Suava frio porque, num gesto demente, arriscara demais na feitura do texto.

Não me lembro mais da avaliação silkeana. Sei que fiquei um tempinho na frente da porta de sua sala e, minutos depois, escutei gargalhadas inenarráveis. Suspirei, respirei fundo e fui recolher meus cacos.

Muito tempo depois, publiquei o troço, já recauchutado, na revista Caos, da graduação de Ciências Sociais, aqui da UFPB.

Reedito, agora, no Que Cazzo. Bora ver o que acontece. Talvez, Cynthia tenha uma síncope ou exploda a hérnia estrangulada de Jonatas. Enfim, não desejo mal a ninguém.

Lá vai: