"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
sexta-feira, 30 de julho de 2010
Mentiras, mentiras cabeludas e estatísticas
Duvida? Olha aí (para visualizar as legendas em português, clique em view subtitles):
Cynthia
sábado, 24 de julho de 2010
Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre conversações interiores (parte 2)
Refutador, em momento de intensa atividade mental
Cynthia Hamlin
No post anterior, considerei a possibilidade de que, diferentemente de Gollum/Smeagol, Artur/Refutador possuíam uma identidade de self, ou identidade pessoal. Por enquanto, deixarei em suspenso a questão de saber se Artur/Refutador constituem um self único ou se são, de fato, dois selves distintos, como parece acreditar Artur. No primeiro caso, o problema se transformaria na questão de saber “quem fala com quem” nas conversações interiores - e que Frédéric Vandenberghe (2010), num arroubo de inspiração DaMattiana, coloca nos termos “você sabe com quem está falando quando fala consigo mesmo?”. Esta questão foi trabalhada teoricamente nos três posts sobre a audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Archer (aqui, aqui e aqui). No segundo caso, isto é, no de Artur e Refutador serem de fato dois selves distintos, o problema deixaria o âmbito da sociologia para entrar no domínio da psiquiatria e, neste caso, deixo a Refutador a tarefa de efetuar o diagnóstico de Artur. Por ora, suspendamos o julgamento e concentremo-nos na teoria do self que deve guiar nossa análise.
Archer (2000a; 2000b) efetua uma distinção entre o nosso sentido de self (selfhood) e a nossa identidade de self (ou identidade pessoal). O primeiro refere-se à continuidade da nossa consciência, à faculdade de nos considerarmos como um mesmo ser ao longo do tempo e do espaço. O sentido de self é não apenas universal, mas também algo que compartilhamos com os animais superiores, que têm noções de suas formas e limites corporais, conseguem diferenciar entre eles próprios e outros objetos e detêm intencionalidade - como o cão que sabe que precisa desviar da árvore ao perseguir sua presa, ou o baratossauro que habita uma das salas da UFPB onde Artur dá aulas (aqui). Embora Artur não saiba disso, o baratão gigante espera pacientemente a hora de suas aulas fim de efetuar seus rasantes mortais. Longe de consistirem num vôo histérico e descontrolado, tais rasantes implicam num complexo sistema de navegação que foi especialmente desenvolvido a partir as interações entre o ambiente e seu corpo pouco aerodinâmico - tudo com o objetivo específico de perturbar as aulas de teoria social.
Isso significa que o sentido de self é pré-social e pré-linguístico, dependendo, conforme argumenta Merleau-Ponty, dos encontros entre nossos corpos e o ambiente, pois é a partir deles que naturalmente aprendemos a distinguir entre objeto/objeto, sujeito/objeto e sujeito/sujeito. Há, portanto, uma primazia da prática em relação à linguagem na forma como aprendemos a nos diferenciar de outros objetos ou, nos termos de Piaget, em nosso “descolamento referencial” de outros objetos (Archer 2000a: 60). Foi por isso que, antes de aprender a falar, Artur aprendeu que a chupeta que ele havia perdido durante o sono não era uma parte de seu corpo que havia desaparecido para todo o sempre, mas um objeto que conservava uma identidade distinta da sua e que talvez pudesse ser encontrado embaixo de seu travesseiro. (Já a distinção perrusiana entre Artur e Refutador, essa só pôde ser efetuada anos mais tarde, depois que ele aprendeu uma linguagem e pôde ler Bachelard, Moscovici e Foucault - mas isso ainda está em suspenso).
Sem um sentido de self, Artur não poderia ter desenvolvido sua identidade pessoal, que pode ser definida a partir das coisas com as quais ele se importa e que o torna um ser humano único. Como o resto de nós, ele consiste em um tipo de ser que Charles Taylor caracterizou como “grande avaliador”, diferindo de outros animais por ter a capacidade de conferir significado às três ordens que, segundo Archer, compõem a realidade humana: a natural, a prática e a social. As diferentes situações colocadas pelas três ordens assumem distintos “aspectos de significância” para ele, fazendo emergir emoções relacionadas ao seu bem-estar físico, na ordem natural, à sua competência performativa, na ordem prática, e à sua autoestima, na ordem social (Archer, 2003). Dado que ele precisa estabelecer práticas consideradas satisfatórias em cada uma das três ordens, ele deve definir quais as suas “preocupações últimas” (ou seja, aquilo que realmente importa para ele) e como suas outras preocupações subordinam-se e acomodam-se às primeiras, isto é, às últimas.
De forma geral, uma de nossas principais preocupações é com a nossa autoestima, que é garantida por meio de certos projetos relativos a carreira, família, atuação política, relações de amizade e de erotismo, etc. É justamente aí que entram Scarlett e Refutador. De um ponto de vista de suas preocupações relativas à ordem social, está claro que os dois não podem ser evocados sem que surja algum tipo de conflito, e talvez isso explique o fato de sua alma não ter suportado tamanha pressão durante a defesa de minha orientanda.
Mas aquele foi um caso extremo, pois a debandada de sua alma impossibilitou qualquer resquício de auto-monitoramento. Na maioria das vezes, a priorização e acomodação de suas preocupações é efetuada por meio de deliberações reflexivas nas quais ele alterna diferentes “fases” de seu Ego, estabelecendo uma relação dialógica entre um objeto (um “mim”, passado), um signo (um “Eu” presente) e um intérprete (um “Você” futuro). Como já afirmei em outro post, esta distinção é meramente analítica, caso contrário, teríamos uma reificação dessas fases, como parece ocorrer com Gollum/Smeagol (embora eles sejam interessantes do ponto de vista contra-factual porque não representam uma mera reificação de fases do self, mas operam uma verdadeira síntese do mim/eu/você em um “nós” - uma espécie de síndrome de personalidade múltipla na qual uma personalidade tem consciência da outra). Mas o ponto importante de ser retido é que a auto-reflexão envolve o tornar-se objeto para si mesmo, e isto não pode ser feito mediante uma cisão da consciência, conforme pressuposto no modelo introspectivo do sujeito cartesiano. Ao contrário, o auto-monitoramento de nossa vida mental e privada consiste num continuum que, como afirmei anteriormente (aqui), envolve desde premonições relativamente incoerentes, em seu nível mais baixo, até a articulação de sentenças inteiras, em seu nível mais alto.
E foi justamente isso que Artur fez quando externou sua conversação interior com Refutador, que representa nada menos que seu “mim” - um conjunto de hábitos e disposições (no caso, teóricas) ou, em termos peirceanos, o ponto final de ciclos semióticos anteriores aos seus questionamentos. Obviamente que um diálogo como aquele dificilmente pode ocorrer da forma como foi descrito, afinal de contas, nem mesmo Refutador conseguiria manter um grau de intencionalidade (no sentido fenomenológico) tão alto quanto o que está implicado ali. De fato, do ponto de vista privado, uma série de experiências distintas (premonições, intenções, desejos, sensações, imaginação etc.) interferem no processo, desviando nossa atenção e fazendo com que o nosso fluxo de consciência frequentemente deixe de ter uma direção clara ou um propósito definido. Mas é justamente por isso que o processo de escrita é especialmente útil para esclarecer nossos próprios pensamentos, sendo, talvez, a forma mais precisa de auto-monitoramento ou de auto-reflexão: ele possibilita um redirecionamento constante da atenção. Por esta razão, por mais que Artur repudie Refutador e tente expurgá-lo de sua mente tratando-o como um alterego demoníaco, só lhe resta recorrer a uma estratégia de defesa flaubertiana e anunciar ao mundo: Refutador c’est moi!
Referências
Archer, Margaret (2000 a). “Realismo e o Problema da Agência”. Estudos de Sociologia 6 (2), p 51-75. Recife, Ed. Universitária da UFPE.
________ (2000). Being Human: the problem of agency. Cambridge, Cambridge University Press.
________ (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Vandenberghe, Frédéric (2010). Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, Ed. UFMG e Iuperj.
domingo, 18 de julho de 2010
Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre Conversações Interiores (parte 1)
Cynthia Hamlin
Há cerca de 3 semanas, Artur participou da banca de defesa de dissertação de uma orientanda minha. Um dos pressupostos fundamentais da dissertação era a tese de Margaret Archer de que as estruturas sociais e os valores culturais não incidem diretamente sobre a agência individual, mas são mediados por um processo reflexivo que frequentemente assume a forma de conversações interiores do sujeito consigo mesmo.
Durante a defesa, Artur questionou o pressuposto afirmando logo de cara que não tinha conversações interiores. Foi um choque. Como assim, não tem conversações interiores?! Minha orientanda ainda tentou argumentar, citando Platão: “o pensamento é uma conversa da alma consigo mesma”. Ao que ele replicou: “Alma é uma secreção verde que tem origem no sistema límbico e sai pelo nariz”. Desde então, tenho perguntado a todas as pessoas que cruzam o meu caminho se elas conversam consigo mesmas. Até agora, Artur foi o único que negou ter conversações interiores. Seria ele uma curiosidade sociológica?
Talvez valha a pena um pequeno adendo para compreender o estado de espírito perrusiano no momento dessa afirmação. Artur sofre de uma pequena obsessão por Scarlett Johansson. Coisa leve, claro. Sabendo disso - e que ele resistiria participar de uma banca em companhia de 4 mulheres a fim de discutir gênero - joguei como isca a minha própria orientanda. Como já afirmou o poeta renascentista inglês John Lyly, tudo vale no amor, na guerra e nas defesas de dissertação. Disse que ela era a cara de Scarlett - o que é verdade - e, só por garantia, coloquei um porta-copos com a foto da dita-cuja na mesa à sua frente durante a defesa.
Mas, assim como o amor e a guerra, as defesas de dissertação estão sujeitas à influência do imponderável. Se o truque serviu para atrair Artur para a banca, o Je-ne-sais-quoi scarlettiano que pairava sobre o ambiente parece ter tido um efeito tão poderoso em sua alma que nem todos os lencinhos retirados de todas as bolsas de todas as mulheres da banca foram suficientes para dar conta de suas secreções nasais. E em lugar do intrépido intelectual que desafia Refutador, o demônio de ossos ocos e asas de pterodáctilo (aqui), Artur era a própria imagem de Amelie Poulain, liquefazendo-se diante de uma emoção impossível de ser contida. Pobrecito.
Quanto a mim, faz três semanas que uma dúvida atroz me persegue: seria Artur o elemento empírico que refuta a teoria do agente humano de Archer, ou a teoria está correta e Artur é que não pode ser considerado um agente humano? A última hipótese era cruel demais para ser sequer aventada. Além do mais, já tive evidências de que ele compartilha pelo menos parte da habilidade mental de considerar a si mesmo em relação ao seu contexto e de monitorar suas próprias crenças, desejos e ações - se não por meio de conversações consigo mesmo, pelo menos por meio de outras atividades mentais privadas, como a fantasia, a meditação preparatória, a clarificação, as conversas imaginárias com outras pessoas (Archer, 2003)... De fato, todas essas atividades podem ser percebidas em seu diálogo imaginário com Refutador, exceto a conversação consigo mesmo.
A menos que... Será? Seria Refutador um alter-ego perrusiano, uma espécie de Gollum bachelardiano defensor de rupturas epistemológicas cujas implicações para a concepção de doença mental poderiam parecer excessivamente disciplinantes para o nosso Smeagol sociólogo/psiquiatra? Não seria difícil fundir os diálogos de Artur e Refutador, por um lado, Smeagol e Gollum, por outro:
- O que você quer, ser hediondo? (...)
- Nada, pequeno mortal, nada, a não ser chateá-lo; inclusive, você sabe muito bem por que estou aqui. Deixe de ser imêmore e lembre-se de que sou produto das suas dúvidas, dos seus impasses e das suas confusões. Sempre que uma contradição surge ou um problema de difícil solução aparece, os seus pensamentos procuram-me. Portanto, sou eu que devia estar incomodado, pois fui invocado e retirado por você do meu descanso no sétimo nível infernal. Where would you be without me? We survived because of me! I saved us! It was me! We survived because of me!
- Not anymore.
- What did you say?
- Master looks after us now. We don’t need you.
- What?
- Leave now. And never come back.
Por mais tentadora que possa parecer essa solução, ela traz uma contradição teórica que teria implicações profundas para o self perrusiano, caso fosse aplicável. Se vocês repararem bem, existe uma diferença no uso dos pronomes pessoais que tornam a comparação inviável: Artur/Refutador usam os pronomes “eu”, “mim” e “você”, ao passo que Gollum/Smeagol usam “nós”, “eu”, “mim” e “você”, mas os dois primeiros são relativamente indiferenciados. Em outros termos, embora Gollum/Smeagol tenham um sentido de self, ao contrário de Artur/Refutador, eles não parecem ter uma identidade de self. No próximo post, falarei sobre essa distinção e como Scarlett e Refutador assumem um papel central na determinação da identidade de self perrusiana.
(continua...)
segunda-feira, 12 de julho de 2010
BBB (Bruno Brasil Barbárie)
Fernando da Mota Lima
Quem conhece algo da tradição dramática e literária relativa ao crime sabe o que é o mito do crime perfeito. Ele consiste na fantasia do planejamento e execução do crime indesvendável, o crime que nenhum Sherlock Holmes teria a inteligência e o poder de decifrar e portanto punir. Uma das coisas que me horrorizam nos grandes crimes correntemente praticados no Brasil é a presença do ingrediente de brutalidade sem cálculo. Mata-se não apenas com requintes de barbárie, com impiedade inconcebível na nossa noção de normalidade humana, mas também com imperfeição grosseira. Noutras palavras, são crimes praticados sem nenhum vestígio de inteligência e cálculo. Chocam ainda por serem também isentos de paixão. O crime passional, não importando seu horror, é humanamente compreensível. O que talvez mais me horroriza no crime bárbaro é minha incapacidade de compreendê-lo, de enquadrá-lo em alguma noção de humanidade votada à destruição. Portanto, este artigo, escrito por alguém que nada entende de crimes nem deles felizmente participa, não pretende explicar ou compreender o que me parece em último caso inexplicável e incompreensível.
Por que estão se banalizando no Brasil crimes como este que o goleiro Bruno e seus associados são acusados de cometer? Serão fruto de algum mal obscuro e ininteligível existente em alguns indivíduos? Serão um mero produto do meio, como sugere a pergunta feita por Sandra Annenberg, apresentadora do Jornal Hoje, a um psiquiatra forense? Melhor dizendo, ela perguntou se a causa do crime não estaria no fato de Bruno ter vivido uma infância sem pai e mãe, marcada assim por formas traumáticas de privação infantil. Isso é coisa de psicologia de folhetim, ou sociologia de almanaque. Milhões de pessoas no mundo, sem exagero, sofreram formas de privação semelhante sem todavia incorrerem em qualquer tipo de crime, muito menos um do tipo que é imputado ao goleiro.
Estou com isso isentando as condições do meio de qualquer responsabilidade? Muito pelo contrário. O meio importa, sim. Importa de forma poderosa, mas não desse modo grosseiro sugerido pela pergunta da jornalista. A pergunta dela é sintoma, antes de tudo, da cultura da vitimização corriqueira no presente. Quero dizer, estamos sendo condicionados a isentar-nos de qualquer responsabilidade moral com respeito a nossas vidas e ações. Somos, noutros termos, vítimas da vida e das circunstâncias. Ora, penso precisamente o contrário. Penso que todo ser humano é moralmente responsável pelas ações que pratica. Isso não anula, friso, o peso variável das circunstâncias, apenas afirma a necessidade do reconhecimento de uma instância moral regendo nossas ações. Se não aceitamos isso como um fato, então precisamos coerentemente inocentar qualquer tipo de ação humana, além de suprimir a noção de liberdade ou livre arbítrio do horizonte humano.
Vejamos agora como o meio importa. O capitalismo brasileiro já foi mais frequentemente qualificado como selvagem. Era moda assim dizê-lo durante a ditadura militar, quando foi imposto ao país um processo de modernização capitalista autoritário. Ele consistia, melhor dizendo, na mobilização de processos de crescimento econômico que modernizavam o país sem todavia eliminar as condições de atraso e opressão típicas das sociedades pré-modernas. Esta é precisamente uma das singularidades do nosso capitalismo, a que moderniza reproduzindo as condições de atraso. Trocando isso em miúdos, o Brasil entrou para o clube privilegiado das dez grandes economias do mundo sem no entanto suprimir suas características retrógadas ou iníquas correntemente supostas na expressão herança maldita. É uma expressão, sabem os leitores, muitas vezes usada pelo próprio Presidente da República. Ela supõe, entre outras coisas, a persistência das duas grandes pragas que marcaram nossa formação como nacionalidade e povo: o colonialismo e a escravidão.
Peço desculpas aos leitores pelo parágrafo acima, pretensamente sociológico, mas ele importa para compreendermos algo do nosso capitalismo. Mais importante ainda, ele nos ajuda a compreender alguns grãos da nossa barbárie. Deixando a sociologia de lado, essa herança maldita se manifesta a todo momento em fatos sociais como estes: a miséria visível nas nossas ruas, a hiperexploração da mão de obra, o trabalho infantil, a corrupção endêmica, a política do deus dará, a democracia seletiva, com perdão do paradoxo, a prostituição disseminada na sociedade etc. Sintetizaria tudo isso dizendo simplesmente que no capitalismo à brasileira nos tornamos mercadorias baratas, mercadorias expostas, tão sem máscara ou verniz de humanidade quanto os crimes que são objeto deste artigo.
Exemplos? O Jornal Hoje, novamente ele, apresentou ontem, em meio às repercussões sensacionalistas do crime imputado a Bruno, uma reportagem sobre a fortuna que ele perderá se for condenado. Vemos então um economista expondo, do alto de sua ciência sem alma, do seu saber inconsciente, quanto Bruno perderia se continuasse jogando no Brasil, quanto se se transferisse para a Europa, sonho de todo atleta brasileiro. Isso diz tudo sobre a banalidade do mal no noticiário da mídia, que aliás mais uma vez espremerá o crime até a última gota de sangue. O público, por sua vez, ávido de sangue, acompanha fascinado esse circo de horrores produzido pela mídia a cada crime sangrado na nossa realidade. Outros virão.
Exemplos? O acusado do crime a mando de Bruno, cujo cognome é Bola ou Paulista, foi expulso da polícia civil em 1992. Depois disso foi acusado de muitos crimes sem todavia sofrer qualquer punição. A própria polícia admite agora que é um homem frio e perigoso. A julgar pelo pouco que vi e ouvi, o dossiê do tipo é bem fornido de crimes. No entanto, viveu todos esses anos sob completa impunidade. Aliás, a julgar pelo que circula agora sobre a ficha corrida dos envolvidos, quem nessa história é inocente? Aliás, quem acaso teve a curiosidade de contabilizar o número de crimes que envolvem policiais ou ex-policiais?
Voltando ao contexto geral, nosso capitalismo continua sendo, reafirmo, capitalismo selvagem. Como acima frisei, longe de mim a presunção de propor qualquer explicação para o crime que aqui discuto. Mas como não perceber a sombra nefasta desse capitalismo pairando sobre nossos horrores? Como não perceber que no cerne da nossa anomia social, no cerne de uma sociedade privada de regulação civilizada, as instituições socializadoras fundamentais não funcionam? Melhor esclarecendo, a família, a escola, a religião, a mídia, nada disso funciona de acordo com ideais e valores inerentes a uma sociedade verdadeiramente civilizada. Por isso repito, sem pessimismo ou bola de cristal, que outros crimes virão, iguais ou piores, enquanto a roda viva do nosso capitalismo brutal continuará girando e faturando, vertendo sangue e consumindo vidas que valem zero. Não sou eu quem o diz, são os fatos apreensíveis na mídia, na indústria publicitária, na máquina produtiva, no circo de horrores que é o capitalismo à brasileira.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Projeto Cartão Universidade
Diana e Acteon (cerca de 1530-1540), pintura de Lucas Cranach. Furiosa por um mortal ousar contemplar sua nudez, Diana (Ártemis) transforma o caçador Acteon em cervo, que é então devorado por seus próprios cães.
Cynthia Hamlin
E por falar em mecenato, a UFPE está avaliando o estabelecimento de um convênio com o Banco Santander para a implantação do projeto “cartão universidade”. De acordo com a proposta redigida pelo banco, este se compromete à emissão de até 80.000 cartões de identificação de alunos e servidores em troca do acesso aos campi da UFPE três vezes ao ano para a realização de eventos de venda e promoção de produtos, do direito de divulgar sua marca nos cartões e nos eventos “de interesse comum” e da abertura de uma conta corrente, em nome da Universidade, no referido banco. O convênio garantiria ainda o acesso da UFPE ao Portal Universia e a montagem de um espaço digital para diminuir a exclusão digital, cujas instalações e características devem ser acordadas em documento específico para este fim.
Além das questões levantadas por Ricardo Antunes e Marcus Orione Correia em relação à introdução da iniciativa privada nas universidades públicas (post abaixo) e das implicações de uma instituição pública abrir uma conta corrente em um banco privado, uma outra questão vem à tona num pequeno detalhe do documento: a fim de garantir a implantação e utilização dos cartões, a UFPE deve garantir o acesso a dados pessoais de todos seus alunos e servidores (foto, nome, RG, CPF e endereço) e manter o banco informado de quaisquer alterações nesses dados. Ah! Por uma indiscrição muito menor Acteon foi transformado em cervo e devorado por seus cães de caça ao espiar Diana e suas ninfas no banho!
Diferente do que ocorria na Grécia Antiga, na Era Big Brother as pessoas parecem mais do que felizes com a submissão voluntária ao panóptico. Seja em troca dos proverbiais cinco minutos de fama, do sentimento de “segurança” ou de novas formas de diagnóstico e de terapia, temos desnudado nossos corpos, nossas almas, nossas contas bancárias e até nosso genoma. Expomos nossa vida privada em sites de relacionamentos; fornecemos nossas digitais para entrar em academias de ginástica; nas lojas, preenchemos cadastros com um grau de detalhamento de causar inveja nos responsáveis pela formulação dos questionários do Censo; nos aeroportos, aceitamos, aliviados, passar por scanners corporais que exibem os detalhes mais recônditos de nossos corpos. Que mal pode haver nisso? Afinal de contas, quem não deve não teme e pode até ser que o nosso objeto de desejo caia fulminado de amor quando vir nossa foto no Orkut.
Num mundo onde a informação é uma mercadoria como outra qualquer, não existe, na maioria dos países, regulamentação para a venda e o uso de dados pessoais por parte de empresas privadas para fins de crédito ou de marketing. Nunca poderemos ter certeza de que aquele cadastro que a vendedora jurou que era “bem rapidinho, só para nossos arquivos!” não irá parar nos bancos de dados daquele banco simpático e tão eficiente que já nos envia a cobrança junto com o cartão de crédito que nos deu de presente.
E isso é só a ponta do iceberg. À medida que a caixa de Pandora vai sendo aberta, as novas tecnologias de informação vão gerando um sem número de possibilidades. Atualmente, existe nos EUA um grande debate sobre o controle de informações coletadas por empresas responsáveis por mapeamentos genéticos de indivíduos que recorrem cada vez mais a esse tipo de serviço. Os bancos de dados dessas empresas contém informações preciosas sobre coisas como longevidade e a probabilidade do desenvolvimento de determinadas doenças e fariam a festa de companhias de seguros e de empregadores, pavimentando o caminho para uma série de práticas discriminatórias.
É difícil saber o que o banco pode ou pretende fazer com os nossos dados pessoais. Dado que os cartões serão utilizados para o acesso a empréstimos de livros nas bibliotecas, a determinadas áreas dos campi e “outras funções a serem definidas e implantadas pelos convenentes”, a questão de fundo é que, se aprovado, este convênio estará nos obrigando a fornecer nossos dados a fim de que possamos trabalhar e estudar. Em troca de que, mesmo?
Que o espírito de Diana desça sobre os membros do Conselho Universitário.
sábado, 3 de julho de 2010
Universidade, mecenato e mercado
Por Ricardo Antunes (IFCH- Unicamp) e Marcus Orione Gonçalves Correia (Faculdade de Direito- USP). Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo. São Paulo, sexta-feira, 02 de julho de 2010. Cedido ao Cazzo por Ricardo Antunes.
Em reiteradas oportunidades, o reitor da Universidade de São Paulo (USP) tem-se manifestado a favor de doações de "mecenas" para a modernização do ensino universitário. Chegou a fazer tal declaração, eivada de significados e consequências, em momento tenso e de greve nas universidades paulistas.
Utiliza-se como argumento central o fato de que seria impossível a manutenção da universidade pública sem subvenções de particulares, do novo "mecenato". Pela parceria público-privada, as universidades deslanchariam. Nenhuma repercussão negativa haveria, tem dito, como resultante desse auxílio desinteressado dos doadores. E tudo isso, ainda segundo advoga o reitor, deve ser pensado "sem ideologias", ainda que a manifestação tenha se dado no contexto de corte do ponto dos servidores públicos em greve -o que conspira contra a essência desse direito.
Como seria termos um curso de ciências sociais mantido por uma grande montadora? Ou, ainda, discutirmos as complexas relações do direito do trabalho, sob o mesmo patrocínio?
O ensino universitário tem papel vital para o desenvolvimento de qualquer país. É óbvio que, para a geração desse conhecimento, há necessidade de recursos.
No entanto, ao se recorrer ao dinheiro privado, há evidente possibilidade de comprometimento dessa missão. Na pesquisa, subvenções particulares não raro levam à distorção dos fins públicos. O dinheiro investido, em geral, é destinado a áreas de interesse do próprio setor privado, relegando a um segundo plano projetos de natureza pública. Assim, ao invés de o país determinar os rumos do que se pretende, estrategicamente, pesquisar, quem o faria seriam os investidores, os tais novos mecenas, as corporações.
O ingresso do dinheiro privado nas universidades públicas ameaça também a liberdade de cátedra. O ato de ensinar, de forma livre e sem pressões de interesses, é um dos pilares do avanço das ciências humanas, exatas ou biomédicas.
Somente a partir da liberdade de expressão nas salas de aula é possível acreditar-se na viabilidade de a universidade contribuir para a construção de outra sociedade. Com a entrada de verbas de instituições privadas, gradualmente, o que se viabilizaria é que aqueles que não partilham de seus pressupostos ideológicos ficariam mais fragilizados e, com o tempo, escassos na universidade pública.
Há outra questão vital que se desconsidera: por que as universidades públicas são, de longe, aquelas que geram conhecimento, ciência e reflexão de ponta, e não as infindáveis escolas superiores privadas que se espalham pelo país? Importante seria uma pesquisa desinteressada enfrentar livremente esse tema. Mas o reitor da USP tem acrescentado, "isento de ideologias", que a universidade pública ganharia se seguisse os passos das escolas privadas de "renome".
Portanto, a preservação da integridade da universidade pública depende, sim, do aumento de recursos públicos, bem como da remuneração digna de seus docentes e de seus funcionários - e esse é o desafio atual.
Se a proposta do reitor da USP fosse efetivada, estaríamos mais próximos de uma universidade a serviço do mercado, começando pela via do mecenato.
sexta-feira, 2 de julho de 2010
quinta-feira, 1 de julho de 2010
O tempo do trabalho das empregadas domésticas
Em seu mais recente trabalho, fruto de sua tese de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, Maria Betânia de Melo Ávila efetua uma excelente análise empírica do cotidiano das empregadas domésticas da região metropolitana do Recife a partir da forma como organizam o uso do tempo. Fugindo das fórmulas fáceis, Betânia combina de maneira hábil diversas tradições teóricas relativas às relações sociais de sexo, ao mundo do trabalho e à análise do cotidiano a fim de tornar visíveis as tensões entre as dimensões produtiva e reprodutiva da existência dessas mulheres, assim como as estratégias de resistência desenvolvidas por elas em resposta a essas tensões.
A tese, indicada pelo PPGS dentre as melhores defendidas no Programa em 2009, foi selecionada pela Pró-Reitoria para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação para publicação na Coleção do Programa Teses e Dissertações da UFPE. O lançamento é uma iniciativa do SOS Corpo, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Grupo de Teoria e Epistemologia Feminista da UFPE. Vale a pena conferir.
O livro está à venda na Editora Universitária da UFPE e na Livraria Cultura.
Cynthia Hamlin