sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A nova retórica do capital



A Edusp, a Livraria Cultura de Recife e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE convidam para o lançamento do livro

A Nova Retórica do Capital: a publicidade brasileira em tempos neoliberais

de Maria Eduarda da Mota Rocha

18 de outubro de 2010
segunda-feira, a partir das 19 horas

Livraria Cultura:Paço Alfândega. Rua Madre de Deus, s/n – Paço Alfândega.
Recife – PE

Entender a publicidade como a retórica do capital é reconhecer sua enorme importância na vida cultural e política das sociedades industrializadas. Até mesmo os anúncios aparentemente mais despretensiosos trazem uma mensagem poderosa: a vida, sob o capitalismo, pode ser plena, desde que se adquira o produto ou serviço em questão. No Brasil, a justificação ideológica da livre atuação do capital tornou-se mais urgente a partir dos anos de 1980, quando as consequências de nossa modernização conservadora começaram a aparecer sem os atenuantes do crescimento econômico. Foi então que a eficiente publicidade brasileira sacou os conceitos de “responsabilidade social” e “qualidade de vida”, como anteparos para anunciantes pressionados pelo aumento da concorrência e da cobrança de movimentos sociais e do Estado. O livro demonstra como esses conceitos foram se tornando dominantes a partir da análise de anúncios de marcas de automóveis, bancos, alimentos, vestuário, entre outros.

Maria Eduarda da Mota Rocha é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, graduada em ciências sociais pela UFPE, mestra e doutora em sociologia da cultura pela USP e egressa do Programa de Formação de Quadros do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Publicou vários artigos sobre publicidade, consumo, mídia e democracia, seus temas preferenciais de pesquisa. É autora de Pobreza e Cultura de Consumo em São Miguel dos Milagres (Edufal, 2002) e co-autora de Guel Arraes: Um Inventor no Audiovisual Brasileiro (Cepe, 2008).


A diversidade dos sotaques



"A diversidade dos Sotaques: o inglês e as Ciências Sociais"
(Palestra)

Renato Ortiz - UNICAMP

Data: 14 de outubro de 2010, 14 h.
Local: Sala de Seminários do PPGS da UFPE - CFCH,12º Andar

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Au revoir, Cher Claude!


Claude Lefort

Cynthia e queridos amigos,

Como podem imaginar, estou pessoalmente desolado com a morte de Claude Lefort. Mas sabia já faz algum tempo que ele não viveria muito. Não sei que “causa mortis” lhe atribuíram, mas para mim morreu de amor. Juro que estou falando sério. Há cerca de um ano enviei-lhe os originais do livro que só agora foi publicado. Com sua habitual atenção ele me respondeu, e me deu a notícia do recente falecimento de sua esposa. Com uma letra trêmula, como a indicar que a mão que a escreveu estava bastante fragilizada, fez a seguinte declaração de amor à morta: “Não parei de amá-la desde nosso primeiro encontro, há 60 anos.”

Sessenta anos! Nesses tempos em que tudo, até o amor, se “liquefez”, tive um surto de romantismo. Pensei no destino de grandes amantes que a morte, ao invés de separar, reuniu: Abelardo e Heloísa, Stefan Zweig e Lotte, André Gorz e Dorine. E foi então que me veio a apreensão de que ele não sobreviveria muito tempo ao desaparecimento de Annie, sua esposa. Veio-me também o receio de que talvez eu não conseguisse publicar e fazer chegar-lhe às mãos o livro que lhe dediquei antes de sua partida... Meu receio, infelizmente, se confirmou. Por pouco, pouquíssimo, mas, hélàs, se confirmou: pus o livro no correio na quarta da semana passada, e ele faleceu no domingo, quatro dias depois. Não pode ter chegado a tempo!

Foi em meados dos anos 80 que o descobri. Meio por acaso, li um luminoso texto seu, “Direitos do Homem e Política”, onde ele fazia uma lúcida crítica da leitura insuficiente que Marx havia feito da questão direitos humanos num texto dito de juventude, mas brilhante: “A Questão Judaica”. Eu, que tinha uma formação jurídica, que tinha (sem nenhum heroísmo, adianto) combatido o bom combate contra a ditadura militar que havia espezinhado esses direitos, achava que havia alguma coisa errada no juízo depreciativo de Marx, e queria fazer um trabalho sobre isso. Mas, de um lado, não sabia como expressar o que sentia; de outro, estava meio tolhido pelo que implicava, à época, criticar Marx; dizer, sem rodeios, que ele não tinha vivido sob uma ditadura para saber o que é bom pra tosse! Nesses momentos é reconfortante encontrar um autor importante que diz aquilo que não sabemos ou não temos a ousadia de dizer. Foi uma espécie de libertação.

Escrevi-lhe uma longa carta, onde me candidatava a fazer um doutorado sob sua orientação. Ele rapidamente respondeu que sim. Foi uma alegria imensa! Naquele tempo essas coisas eram fáceis, e, com sua carta de aceitação, consegui uma bolsa do CNPq para fazer meu doutorado. E eis-me em Paris, aluno de Lefort!

Guardo lembranças ricas e mesmo afetivas dos nossos encontros. Não que tivéssemos nos tornado íntimos. Europeu não se torna facilmente íntimo de aluno. Sempre o tratei de “Monsieur Lefort”, e ele sempre me tratou de “Monsieur Oliveirá”... Mas houve momentos entre nós de grande distensão, em que nos permitimos falar de nossas vidas, nossos filhos, nossos medos, nossas esperanças. Depois dos seus seminários, cheguei a partilhar a mesa daqueles enfumaçados cafés parisienses em que os alunos continuam, depois da aula, chaleirando o mestre. Mais significativo foi uma única vez em que fui à sua casa, para os retoques finais da tese, e ele me ofereceu um cafezinho e me apresentou Annie - uma senhora elegante, alta e magra, como costumam ser as parisienses, de cujo rosto, confesso, não guardei nenhuma lembrança. Mas tudo dentro dos melhores trinques franceses: Vous pra lá e Vous pra cá; nada de Tu.

Eu já tinha saído daqui seu “discípulo”, mas isso não tem a menor importância porque todo orientando é um discípulo automático do orientador. O que realmente tem importância é o fato de que, para além dessa lealdade protocolar a um pensamento, o contato maior com sua obra me fez ver que estava de fato ao lado de alguém em cuja sensibilidade minha própria sensibilidade se reconhecia. Quando, mais recentemente, voltei a lê-lo para escrever o livro, tive a impressão de que essa identificação era maior, de modo que até comecei a me perguntar se à época do nosso contato eu tinha plena consciência da importância que seu pensamento teve para solidificar minha maneira de olhar o mundo - ou se, com a passagem dos anos e a maior sabedoria que ela traz consigo (única vantagem que existe em envelhecer!), sua influência cresceu sobre mim.

Este não é o momento de revisitar sua obra, tarefa que me propus justamente no livro que escrevi para homenageá-lo (perdoem esse surto de retórica!) e exprimir minha gratidão. Mas, para concluir, se eu tivesse de destacar um traço seu que vincou minha definitiva adesão à democracia, escolheria seu ensinamento de que a essa “forma de instituição da sociedade” porta consigo uma fragilidade substancial: nela, temos de suportar o fardo da indeterminação, justamente porque se trata de “um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o legítimo e o ilegítimo - debate necessariamente sem fiador e sem termo” - para citar uma de suas belas frases.

Au revoir, Cher Claude!

Luciano Oliveira

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O enigma da democracia


O novo livro de Luciano Oliveira, publicado pela Jacintha Editores, Piracicaba, 2010.

Em tempo: Segue o obituário de Lefort, publicado no Le Monde em 05/10 e traduzido por Tâmara Oliveira, seguido do prefácio do livro de Luciano Oliveira, por Marilena Chaui:

O filósofo Claude Lefort faleceu domingo, 03 de outubro, aos oitenta e seis anos. O desaparecimento do filósofo, cuja importante obra concentrou-se sobre a crítica do totalitarismo, foi anunciada pelo jornal Libération.

Nascido em 1924, professor e doutor em filosofia, tendo ensinado na universidade de Caen antes de se tornar diretor de estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales (EHESS), Claude Lefort inicia sua obra em 1968 com La Brèche, escrita com Edgard Morin. Tornou-se comunista durante a juventude sob a influência de seu mestre Maurice Merleau-Ponty, o que o aproximou dos trotskistas, dos quais entretanto ele se afastou depois, progressivamente. Processo já iniciado quando ele fundou a revista Socialisme ou Barbarie com Cornelius Castoriadis, esse afastamento tornou-se definitivo quando ele descobriu L’Archipel du goulag de Alexandre Soljenitsyne, sobre o qual ele consagrou um livro, Un homme en trop (Seuil, 1973).

A partir daí, Lefort estabeleceu laços bem amarrados entre o fenômeno totalitário e as carências da democracia. Para ele, a democracia, fruto da História, é uma sociedade « sem corpo », onde reina uma radical indeterminação, constantemente em desequilíbrio e que exige de todos invenção – como ele próprio desenvolveu em sua obra L’Invention démocratique (Fayard, 1981). A democracia não seria então « boa por natureza » e não garantiria espontaneamente liberdade e justiça para todos os cidadãos.


Prefácio, por Marilena Chaui

Claro, preciso e conciso. Estes qualificativos não são pequenos par se referir ao trabalho de Luciano Oliveira quando consideramos as peculiaridades do pensador a que este livro se dedica. De fato, como salienta Oliveira, Claude Lefort é “um autor dotado do senso da fórmula e do paradoxo”, um pensador que, em lugar de definições e respostas, nos convida à interrogação, um escritor cujas longas frases e longos parágrafos, num desenvolvimento espiralado interminável, exigem atenção redobrada do leitor, que se vê diante da complicação em ato. Em suma, um “pensador da indeterminação”.

Podemos descortinar neste livro três linhas de reflexão: uma delas, biográfica, acompanha a formação filosófica e política de Claude Lefort, a partir das ideias vindas da fenomenologia de Merleau-Ponty e do marxismo; uma outra, apanha a diferença entre Lefort e os modismos intelectuais franceses dos anos 1960-1980, quando imperavam o marxismo althusseriano e o fervor pelos “pensadores da suspeita” (Nietzsche, Marx e Freud); a terceira nos leva ao núcleo da obra lefortiana como pensamento da democracia. Essas três linhas se entrecruzam e incidem umas sobre as outras, dando-nos a ver um filósofo se fazendo (para usar a expressão merleaupontyana).

Da fenomenologia, Lefort conserva a interrogação do sentido ou a busca do ser político, do social, da experiência. Discípulo de Merleau-Ponty, desconfia das teorias, do “pensamento de sobrevôo” que pretende oferecer a explicação sistemática e completa da realidade, incapaz de ver tudo quanto não seja iluminado pela luz ofuscante irradiada dele mesmo. Do marxismo, guarda a exigência de compreender “a experiência de nosso tempo, a luta de classes e o desejo de emancipação, mas afasta-se de Marx não só porque considera impossível a supressão do conflito instituído pela divisão originária da sociedade, como também julga que suprimi-lo é cair no abismo totalitário.


domingo, 3 de outubro de 2010

Uma etnografia da mente



Douglas Porpora - Drexel University

Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

A partir do trabalho da Escola de Chicago, uma preocupação da sociologia tem sido a de que as pessoas refletem sobre si próprias. Mas será que todos refletimos acerca de nós próprios da mesma forma? Não apenas essa questão não tem tido resposta, mas também não tem sido colocada de forma sistemática.

Muitos de nós, portanto, acha muito provocante a sugestão de Margaret Archer em seus trabalhos recentes (por ex. 2003). Nem todo mundo, a pesquisa de Archer sugere, reflete melhor acerca de si ao conduzir conversações interiores consigo mesmo. Ao contrário, aqueles que Archer chama de “reflexivos comunicativos” preferem pensar sobre suas crenças e ações por meio de conversações reais, externas, com outras pessoas de seu círculo social.

É nas duas categorias que Archer chama de “reflexivos autônomos” e “meta-reflexivos” que encontramos pessoas refletindo mais comumente por meio de conversações interiores. A diferença entre duas categorias está no conteúdo da reflexão. Reflexivos autônomos refletem internamente sobre questões instrumentais ou estratégicas, incluindo o tipo de gerenciamento de impressões identificado por Goffman. Os meta-reflexivos também refletem internamente sobre preocupações instrumentais. Mas, além disso, os meta-reflexivos são dados a longas reflexões internas sobre ideais e questões morais, projetos de vida e emoções. Como as ciências sociais e as humanidades tendem a atrair meta-reflexivos e os ajudam a promover o pensamento meta-reflexivo, muitos de nós neste campo tendemos a ser meta-reflexivos.

Se os reflexivos autônomos e os meta-reflexivos pensam acerca de si próprios especialmente por meio das conversações interiores, qual a natureza de sua conversação interna? Ela é continua? A linguagem empregada é a mesma que a empregada nas conversas reais, externas, ou é mais abreviada? Em um artigo apresentado em um encontro da American Sociological Association, Norbert Wiley (2004) efetuou uma revisão acerca do que se conhece sobre a fala interior – não muito. Existem sugestões, como a de Vygotsky, de que a fala interior é mais breve, e que, por exemplo, o sujeito da frase é constantemente omitido, dado que já sabemos quem está desempenhando a ação.

O artigo de Wiley termina com um pedido de mais pesquisas sobre a fala interna, um pedido que me inspirou a respondê-lo. Para o workshop sobre reflexividade organizado por Margaret Archer, eu resolvi me dedicar ao que chamei de uma etnografia da mente. Por várias semanas, tentaria observar o cenário da minha vida interior. Qual era a natureza da minha fala interna? Quais eram os atos de fala – por ex., reportar, argumentar, calcular – nos quais eu me engajava? Algo mais, além da fala interior, acontecia dentro de mim? Essas eram as questões que eu buscava responder.

A tarefa foi, na verdade, bastante difícil. O social – na forma de fala – se imprime de tal forma sobre nós que, no início, quando você olha para si mesmo, tudo o que pode perceber é fala. Com um tipo de efeito Heisenberg, o próprio ato de auto-exame tende a transformar em fala tudo o que você está examinando. Como num sonho, o pensamento não linguistico facilmente evapora quando tentamos apreendê-lo.

No entanto, da mesma forma que a prática nos permite recordarmos nossos sonhos, ela também possibilita que nos surpreendamos no tipo de absorção não linguística pelo mundo que os budistas chamam de “talidade” (suchness), a apreensão do mundo sem a rotulação linguística.

Minha mais importante descoberta diz respeito à natureza da minha fala interior. Descobri que ela raramente era abreviada da forma sugerida por Vygotsky. Exceto quando expressando expletivos, eu geralmente empregava sentenças inteiras. Mesmo expletivos eram geralmente enraizados em locuções bem-formadas, tais como aquelas começando com “Que p…?”.

Se minha fala interior tendia para as sentenças completas, o motivo surpreendente para isso era que eu passava muito pouco tempo falando especificamente comigo mesmo – ou mesmo com o Outro Generalizado de Mead. Em vez disso, percebi que minha mente era povoada por muitos “interlocutores convidados” – pessoas reais ou audiências potenciais a quem eu internamente me dirigia. Muito do que eu fazia era imaginar o que diria ou escreveria para algum grupo de pessoas, ou repassava mentalmente o que eu deveria ter dito ou escrito. Minha reflexividade autônoma ou meta-reflexiva parece muito, então, com uma reflexão comunicativa interna.

O quão idiossincráticas são essas descobertas? Isso não é claro. Precisamos que outras pessoas comecem a fazer uma etnografia da mente como esta.

Bibliografia

Archer, Margaret. (2003), Structure, Agency, and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Wiley, Norbert. (2004), The Sociology of Inner Speech: Saussure Meets the Dialogical Self. Paper presented at the August Meeting of the American Sociological Association, San Francisco (revised version published in Journal for the Theory of Social Behaviour, 36(3), pp. 319-341, 2006).

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A Produção de Memória Biotecnológica e suas Consequências Culturais



Jonatas Ferreira

Introdução

Um dos traços políticos distintivos do mundo moderno parece ser a transformação da vida natural em espaço de exercício de poder. Ao desnudar o corpo de significados culturais específicos, passando a apreciá-lo segundo critérios de funcionalidade e operacionalidade, a ciência finda por trazer a vida biológica para o centro da cena política industrial. Assim, o corpo “para a sensibilidade moderna parece tão fechado, autárquico e fora do reinado do significado” (Laqueur, 2001, p. 18). Esta linha de argumento é bem conhecida dos leitores de Foucault. Sugiro, todavia, a necessidade de se perceber nos desenvolvimentos recentes da biotecnologia molecular algo qualitativamente diferenciado daquilo que Foucault chamou biopoder. Embora partindo de uma politização da vida biológica, da “vida nua”, as dinâmicas políticas que se abrem ao capitalismo contemporâneo já não se definem primordialmente por meio do privilégio à inteireza do corpo individual ou aos limites entre as espécies. Isso é um dado de partida importante. Para usar o jargão adequado, o biopoder já não pode ser plenamente compreendido como “disciplina” nem como “regulamentação”. A inteireza dos corpos, condição de um controle científico de sua plasticidade, assim como os limites entre as espécies, por meio dos quais a idéia moderna de higiene pode ser pensada, não parecem mais constituir a base inquestionável dos processos políticos.

A própria inteireza biológica do humano passa agora a ser um conceito questionável. Entre os achados do Projeto Genoma Humano temos a estranha constatação de que, ao longo de milênios, incorporamos em nosso patrimônio genético seqüências genéticas inteiras de bactérias. Em um sentido mais estrito: a recombinação genética promovida pela biologia molecular aponta numa direção que, se não contradiz politicamente a noção de inteireza plástica dos corpos, não depende tecnicamente desse artifício para transformar o mundo orgânico. Diferentemente do cenário descrito por Foucault, já não se trata prioritariamente de tornar os corpos mais potentes, ágeis, eficientes, disciplinados, mas de construir novos seres a partir de informações moleculares. Diante das possibilidades que se abrem com a fabricação de órgãos, tecidos a partir de células-tronco, poucos hoje teriam a ilusão de que a produção de corpos dóceis seja a essência tecnológica da biologia molecular.

[Estamos todos um tanto ocupados. Enquanto algo novo não sai, vou fazendo merchandising e disponibilizando no Cazzo esses artigos espalhados pela Internet. Click aqui para baixar o resto do arquivo em PDF.]

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A discussão da Ideia de democracia digital a partir da obra de Heidegger



Jonatas Ferreira

Introdução

Em Março de 2009, o Comité Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano de 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos a avançar na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs), embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados: i) “O custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à internet nos domicílios”; ii) “a falta de disponibilidade de internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; iii) a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à internet. A diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à internet era de 4 p.p. em 2005 e passou para 8 p.p. em 2008”; iv) o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; v) a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da internet”; vi) As lan houses ainda são a única possibilidade de acesso à internet para uma parte considerável da população (pobre) brasileira, o que significa pagar mais pelo acesso à internet quem menos pode pagar . Além de tudo isto, a velocidade de tranmissão continua lenta, o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma maior largura de banda.

Este quadro ajuda-nos sem dúvida a traçar os contornos mais gerais daquilo a que se convencionou chamar exclusão digital, e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento no Brasil. Evidentemente, este panorama requer uma análise ampla das políticas governamentais neste campo, do modo como os estados vêm assumindo os compromissos da Federação no que toca ao ingresso de largas parcelas da população na Sociedade da Informação, do modo como entidades da sociedade civil, organizações não-governamentais se têm dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que se refere à necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital, em particular nas regiões de maior pobreza, e entre as parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (Warschauer, 2003). A desigualdade nesse, como em outros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (Maciel e Albagli, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos refletir criticamente acerca do significado daquilo que se convencionou chamar inclusão digital, ou, mais propriamente, para que possamos tratar a questão política implicada na democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que e garantiria exactamente a democratização das tecnologias de informação e comunicação na sociedade brasileira? A resposta parece óbvia, mas não é.

(O artigo completo foi publicado na revista Análise Social. É só clicar para baixar o arquivo PDF)

domingo, 26 de setembro de 2010

As conversações interiores de um espectador imparcial



Por Frédéric Vandenberghe
Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor e traduzido por Cynthia Hamlin, sob intensa chantagem emocional.

Uma Teoria da Justiça, de John Rawls (1972) é, sem dúvida, um dos livros mais importantes da segunda metade do século XX. Embora cada página e nota de rodapé do livro tenha sido repetidamente submetida à análise e a comentários, ele é principalmente lido como uma versão liberal da escolha racional. Consequentemente, suas conexões com a teoria da simpatia de Adam Smith foram desconsideradas (embora sua filha, Anne Rawls (1988), uma microssocióloga que trabalhou com Garfinkel, tenha introduzido a noção de simpatia na ordem interacional de Goffman e na análise conversacional de Sacks). A teoria da justiça de Rawls é, de fato, uma teoria dos sentimentos morais. Seguindo os moralistas do iluminismo escocês, o filósofo estadunidense ressucitou o “observador simpatético” e introduziu o “juiz imparcial, porém benevolente” como um protagonista de uma sociedade liberal bem organizada. A ideia central da teoria da justiça é simples: uma sociedade seria justa se redistribuísse os direitos e deveres de tal forma que cada um de seus membros pudesse subscrever ao princípio de justiça (fairness) sem reservas, dado que ele garantiria os direitos e liberdades de todos, ao mesmo tempo que aceitaria as desigualdades sociais apenas na medida em que se compensasse os que têm menos vantagens.

A teoria da justiça é uma teoria forte do contrato social. O principal instrumento dessa teoria do contrato é a chamada “posição original”, em que cada um seria convidado a adotar a perspectiva de um espectador racional (reasonable), embora simpatético, antes de assinar o contrato que sela a aliança entre seus membros. Assim, cada um se imaginaria na posição do outro ou da outra e quando cada um/a tivesse adotado a perspectiva de todos os outros, um de cada vez, hipoteticamente, ele/a chegaria aos princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade bem-ordenada. Claro, esse mecanismo de identificação seriada de todos com cada um/a só pode funcionar sob a condição de que todo mundo faça uma abstração de sua situação pessoal e social a fim de reter apenas o que é comum a todos os seres humanos, sem distinção. Em outras palavras, ao se imaginar na situação do/a outro/a de forma a ascender à posição geral e superior do espectador imparcial, cada um/a é colocado/a sob o “véu da ignorância”. Como não se saberia se o/a outro/a é rico ou pobre, negro/a ou branco/a, homem ou mulher, podemos presumir que os princípios que os membros hipoteticamente adotariam para ordenar sua sociedade seriam justo, não apesar do caráter anônimo do/a outro/a, mas por causa dele.

Até aqui, tudo bem, mas o que isso tem a ver com “conversações internas”? Bem, em Rawls, a justificação e validação dos princípios do contrato social são resultado das conversações interiores simuladas que o espectador imparcial tem com seus concidadãos. Tudo ocorre como se o espectador simpatético, confortavelmente sentado em seu sofá depois de um longo dia de trabalho, tivesse chamado à sua mente qualquer pessoa de seu conhecimento e convidado ele ou ela para sua conversa interior da noite (veja o experimento mental de Goethe em Wiley, 1994:54). Em sua mente, ele convidava seus amigos e conhecidos a sentar-se junto de si, discutindo com eles os princípios que seriam objeto do acordo original. Ao deixar seus queridos amigos, ao mesmo tempo que os envolvia nas profundezas do seu coração, continuava a conversa imaginária ao convidar os amigos de seus amigos para o diálogo. Eventualmente, por meio de uma variação eidética do amigos de seus amigos, chegaria a um cidadão genérico e sem face, porém bem-informado, preocupado e cuidadoso, que “olharia para o sistema da perspectiva do homem [e da mulher] representativo[a] dotado[a] das menores vantagens” (Rawls, 1972, p. 151).

Por meio do mecanismo engenhoso da representação da posição original, Ralws criou um espaço público no mais profundo de seu coração (in foro interno, como Kant diria). Habermas objetou à privacidade das conversações interiores de seu amigo. Ao convidar seu colega americano para um debate público (cf. Journal of Philosophy, 1995, 93, 3), o filósofo alemão gentilmente convenceu seu colega, in actu, da necessidade de continuar a conversação interior por meio de uma comunicação entre iguais que ocorre na esfera pública. É através da comunicação pública, não apenas pela conversação interior, que os falantes progressivamente chegam à visão comum e imparcial do “outro generalizado” (Mead). Ao convidar não apenas seus amigos que compartilham de seus pontos de vista, mas também os vizinhos que não as compartilham para dar voz a suas opiniões em público, que os cidadãos se convencem uns aos outros, por meio da força do melhor argumento, do que é justo ou errado.

De acordo com Habermas, os princípios morais e políticos se tornam objetivos e universais por meio do uso público da fala e da razão. De fato, graças à comunicação, os cidadãos têm conhecimento mutuo das posições dos outros e, assim, chegam, através da sobreposição do conteúdo comum que é publicamente comunicado e compartilhado por todos, a um consenso acerca dos próprios princípios que ordenam uma sociedade justa. Ao transformar as conversações internas que o observador simpatético tem consigo mesmo e com todos os outros em uma comunicação real entre participantes de uma conversação externa, nos movemos do uso privado (Rawls) para o uso público (Habermas) da fala. Assim, eu concluo que existe uma dialética em processo – ou uma morfogênese dupla, como Archer diria – entre as conversações interiores e exteriores. Quando a comunicação cessa, os participantes podem continuar o debate internamente e, depois de amadurecer a reflexão, podem se juntar novamente à conversa externa.

Bibliografia

Rawls, A. (1988), “The Interaction Order sui generis: Goffman’s Contribution to Social Theory”. Sociological Theory, 5, pp. 136-149.
Rawls, J. (1972), A Theory of Justice. Oxford, OUP.
Wiley, N. (1994), The Semiotic Self. Chicago, University of Chicago Press.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Filosofices


Retrato da coisa-em-si Kantiana

Semana que vem tem prova de metodologia científica na graduação. O pessoal anda meio agitado, de forma que decidi recorrer a dois filósofos eminentes a fim de esclarecer alguns conceitos que temos usado no curso. As definições abaixo foram retiradas de Thomas Cathcart e Daniel Klein (Plato and Platipus walk into a bar... Londres, Penguin Books, 2007) e estão terminantemente proibidas de serem usadas na prova (para uma definição de "coisas terminantemente proibidas de serem usadas na prova", ver glossário abaixo).

Cynthia

Metafísica: A metafísica entra de cabeça nas Grandes Questões: O que é o ser? Qual a natureza da realidade? Nós temos livre arbítrio? Quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete? Quantos deles são necessários para trocar uma lâmpada?

Lógica: Sem a lógica, a razão é inútil. Com ela, você pode vencer debates e alienar multidões.

Epistemologia: A Teoria do Conhecimento. Como você sabe que sabe as coisas que acha que sabe? Exclua a opção de responder “eu simplesmente sei que sei” e o que sobrar é epistemologia.

Ética: Separar o bem do mal é a província da ética. Também é ela que mantém ocupados os padres, os intelectuais e os pais. Infelizmente, o que mantém ocupadas as crianças e os filósofos é perguntar aos padres, aos intelectuais e aos pais “Por que?”.

Filosofia da Religião: O Deus que os filósofos da religião gostam de discutir não é um Deus que a maioria de nós reconheceria. Ele tende a se situar no lado mais abstrato, mais como “A Força” em Guerra nas Estrelas e menos como um Pai Nosso que fica acordado durante a noite se preocupando com você.

Filosofia da Linguagem: Quando o ex-presidente William Jefferson Clinton respondeu em um debate “depende do que a sua definição de ‘é’ é”, ele estava fazendo filosofia da linguagem. Ele também poderia estar fazendo outras coisas.

Filosofia Social e Política
: A filosofia social e política examina questões de justiça na sociedade. Por que precisamos de governos? Como os bens devem ser distribuídos? Como podemos estabelecer um sistema social justo? Essas questões costumavam ser respondidas com um cara mais forte tacando um osso na cabeça de um cara mais fraco, mas depois de séculos de filosofia social e política, a sociedade percebeu que os mísseis são muito mais eficazes.

Metafilosofia: A filosofia da filosofia. Não confundir com a filosofia da filosofia da filosofia.

Sentença Analítica (ou juízo analítico): Uma sentença que é verdadeira por definição. Por exemplo, “todos os patos são aves” é analítica porque parte do que significamos por “pato” é que se trata de um membro da família das aves. “Todas as aves são patos”, por outro lado, não é analítica porque a paticidade não é parte da definição de “ave”. Obviamente, “todos os patos são patos” é analítica, assim como “todos as aves são aves”. É comovente observar a ajuda prática que a filosofia pode fornecer a outras disciplinas, tais como a ornitologia. Contraste com sentença sintética.

Sentença Sintética (ou juízo sintético): Uma sentença que não é verdadeira por definição. Por exemplo, “sua mãe usa botas do exército” é uma sentença sintética; ela adiciona informação não incluída na definição de “sua mãe”. O mesmo se aplica ao corolário “Ei, sua mãe usa botas do exército”. Contraste com sentença analítica.

A posteriori: Conhecido pela experiência; conhecido empiricamente. Para saber que algumas cervejas têm um gosto bom mas não fazem você se sentir estufado, você teria que experimentar pelo menos uma cerveja que tem um gosto bom e não faz você se sentir estufado. Contraste com a priori.

A priori: Conhecido anteriormente à experiência. Por exemplo, pode-se saber, antes de se assistir ao programa, que todos os participantes de American Idol acreditam ser cantores porque American Idol é um concurso de canto para pessoas que – por razões melhor conhecidas por elas próprias – acreditam ser cantores. Contraste com a posteriori.

Coisa-em-si: a coisa-em-si, como oposta à representação sensorial de uma coisa. A ideia aqui é a de que um objeto é mais do que simplesmente a soma de seus dados sensórios (i.e., aquilo que podemos ver, ouvir, sentir, cheirar) e que existe alguma coisa-em-si por trás de todos esses dados sensórios que é distinto dos dados. Alguns filósofos acreditam que essa noção pertence à mesma categoria que os unicórnios e papai Noel.

Empirismo: a visão de que a experiência, em particular a experiência dos sentidos, é a fonte primária – ou única – do conhecimento. “Como você sabe que existem unicórnios?” “Porque eu acabo de ver um no jardim”. Isso é o que chamamos de empirismo extremo. Contraste com racionalismo.

Racionalismo: a visão de que a razão é a fonte primária - ou única – do conhecimento. É geralmente contrastado com empirismo, que é a visão de que a experiência sensorial é a fonte primária de conhecimento. Tradicionalmente, os racionalistas têm preferido a razão porque os sentidos são notadamente pouco confiáveis e o conhecimento baseado neles é, portanto, incerto. Eles preferem a certeza absoluta de juízos alcançados por meio da razão como “esse é o melhor dos mundos possíveis”.

E, para finalizar, uma definição mezzo filosófica, mezzo sociológica:

Coisas terminantemente proibidas de serem usadas na prova: coisas que, contrariamente à coisa-em-si kantiana, podem ser intuídas. Costumam ter como efeitos sensíveis notas baixas, diminuição na autoestima dos alunos e na estima pela professora.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A Vitória de Orwell



Fernando da Mota Lima

George Orwell é um desses raros escritores que se tornam parte de todo um clima de opinião. Aviso o leitor que esta expressão é traduzida de um poema de Auden: “In Memory of Sigmund Freud”. Talvez a maior evidência de tão elevado status consista no fato de que escritores dessa natureza influenciam a linguagem usada até pelos que nunca os leram, até por aqueles inconscientes de uma obra como 1984, e de personagens e conceitos como Big Brother, Polícia do Pensamento, Pensamento Duplo etc. Aviso novamente o leitor que traduzo aqui livremente conceitos fundamentais de 1984 sem cotejá-los com a tradução brasileira deste livro emblemático do pensamento antiutópico. Melhor diria se usasse a expressão pensamento antitotalitário, pois Orwell nunca renunciou ao seu ideal de socialismo libertário, que é ainda um modo de ser utópico. Em suma, você fala de Orwell mesmo sem saber quem é ele, mesmo ignorando sua obra que exerceu e exerce ainda um papel decisivo no clima de opinião dominante na história contemporânea assaltada de modo catastrófico por totalitarismos de esquerda e direita.

Orwell é talvez a mais alta expressão do intelectual independente que conheço. Não me esqueço de que alguns leitores puxaram minha orelha quando usei o conceito de intelectual independente para criticar a conivência de José Saramago com regimes totalitários ou ditatoriais de esquerda. Há quem considere a relação do intelectual com o partido, ou mais amplamente com a realidade política, e conclua em termos simplistas que não existe tal coisa, isto é, você é sempre contra ou a favor, está com o partido x ou com o partido y. Essa linha de argumentação é claramente maniqueísta e assim estamos conversados. Você está com o bem ou com o mal e assim qualquer nuance, qualquer possibilidade de inserção entre os dois extremos excludentes é automaticamente suprimida.

A grandeza ética e política de Orwell – ou sua vitória, assim traduzo o sentido do livro que Christopher Hitchens lhe dedica – reside na sua capacidade extraordinária de denunciar o totalitarismo gestado pelos ideais utópicos da esquerda, o nome mais simples desse Big Brother é Stálin, sem renunciar a suas convicções socialistas e libertárias. É claro que este fato foi refutado por seus críticos à esquerda e à direita. Os primeiros o perseguiram e caluniaram por supostamente trair a esquerda, ou fazer o jogo do inimigo; os segundos tentaram apropriar-se de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) e 1984 como se fossem simplesmente obras anticomunistas. O fato ilustra admiravelmente o quanto é difícil ser independente, mas não anula a possibilidade da independência ideológica do intelectual. Orwell converte a possibilidade em fato.