O tema central que coloca em campos opostos Immanuel Kant e J.G. Fichte é, de fato, como pensar a questão da subjetividade. Para Kant a idéia de subjetividade deveria permanecer para sempre testemunho de uma aporia, de uma tensão entre o sujeito pensante e o sujeito pensado. Sempre que procuro transformar a mim próprio em objeto de reflexão percebo algo como uma esquizofrenia insuperável: o eu que pensa jamais pode ser totalmente objetificado em algo pensado. Somos seres finitos, não podemos nos conhecer de modo absoluto. Kant é o pai do liberalismo moral. Para ele não haveria como conciliar politicamente pretensões de conhecimento absoluto às tarefas intermináveis de uma ética finita e liberal. De um certo modo, podemos dizer que se um indivíduo se conhecesse de modo absoluto ele não seria, da perspectiva crítica, livre. Ou seja, o liberalismo kantiano não poderia operar, por exemplo, com algo como a realização do espírito absoluto na terra. Gosto de pensar que Kant foi o primeiro filósofo a intuir que a tarefa de humanização, para ele atrelada à ideia de liberdade, é necessariamente aberta e inesgotável.
Ora, é a partir desse ponto que Fichte pretende dar sua contribuição. Há uma literatura vasta a respeito das reflexões epistemológicas que marcam sua obra. Já mencionamos aqui um texto muito bom de Gerd Bornheim publicado no livro O Romantismo, de organização de J. Guinsburg. Não recapitularei todo o argumento – no entanto, quem quiser entender a genealogia da idéia de dialética em Hegel terá de passar pela
Teoria da Ciência, de Johan G. Fichte. Interessa apenas que ele tenha pretendido fechar os hiatos que Kant deixara propositalmente abertos entre um sujeito que cogita e sua subjetividade cogitada. No lugar do cisma kantiano, ele propõe, agora, um fundamento absoluto para a subjetividade. Contra a ideia de que a consciência não pode se apresentar plenamente a si própria, ele argumenta ser a consciência um ato. Por não perceber isso, a ideia kantiana de subjetividade resulta 'esquizofrênica'. O fundamento da subjetividade é algo prático, ativo, e não algo passivo, contemplativo. A essência da subjetividade, para usarmos um jargão crítico, subvertendo-o, é algo da ordem da razão (prático, produtivo, ativo) e não algo que possa ser apreendido pelo entendimento (se este for concebido como uma forma passiva de receber o mundo). A subjetividade e a consciência são compreensíveis como uma ação: a própria busca de si, neste sentido, é o fundamento metafísico de toda subjetividade.
"O Eu se busca a si próprio e esse buscar-se é toda a filosofia; não há um segundo capítulo. A filosofia deve, assim, fazer o inventário ou a história do Eu - mas uma histporia intemporal, que transcende o tempo, pois não se trata, simplesmente, da história da experiência interna individual, dos estados de consciência, das vivências deum indivíduo determinado ou da soma dos indivíduos existentes; não se trata de um eu empírico e de seu tempo psicológico, mas da atividade pura da autoconsciência, pois somente esta poderá explicar a consciência empírica. Mais do que psicologia da consciência, Fichte pretende uma metafísica da consciência" (Bornheim, 2005, p. 87)
Em termos técnicos, a coisa talvez pudesse ser colocada mais ou menos do seguinte modo: para ter consciência de si, o Eu tem que se objetivar para si. Fazer isso significa que ele se transforma num não-Eu, isto é, deixa a sua condição de sujeito para tornar-se objeto de sua própria consciência. O Kantismo para aí, satisfeito nas tensões que daí decorrem. Fichte segue adiante e acrescenta um passo ao argumento, uma síntese a essa contradição. O Eu cindido reconhece a própria consciência como ato, uma produção. Nesse sentido, o deslocamento produzido entre o Eu e o não-Eu é a sua essência. A consciência da subjetividade alcança assim uma superação [no sentido de
Aufhebung] na própria idéia da consciência como um ato. Recorramos mais uma vez a Bornheim (2005, p. 88)
"O Eu, portanto, não é substância ou coisa determinada, mas vida pura, dinamismo, ação pura, dotada de força produtiva, criadora. Nesse sentido, pode Fichte dizer que o obrar precede o ser [...]. Todos os seres são produto da atividade pura do Eu. E a essa atividade criadora do Eu livre Fichte dá o nome de imaginação criadora".
Pensar a essência da subjetividade, sua consciência de si, é algo como uma produtividade, uma
poiesis, é algo que marcará a contribuição estética e filosófica dos Românticos alemães e, posteriormente, o idealismo hegeliano. Que essa
poiesis seja reflexiva nos parece óbvio, porém mesmo aqui há algo a esclarecer. Como veremos, para Novalis e os irmãos Schlegel, essa reflexividade não significa necessariamente reflectividade, uma apreensão de si sob a forma de uma imagem proporcionada por um espelho objetificador. A consciência e a subjetividade são essencialmente uma produção. Apenas quando ela se mantém ativa ela está em algo que lhe é próprio. Voltaremos a esse ponto de um modo mais claro, espero!, mais abaixo.
Antes que Novalis e os irmãos Schlegel concebessem a idéia de que a consciência de si é primordialmente um ato de estranhamento de e oposição a si próprio, essa formulação já era oferecida pela leitura schilleriana da
Crítica do Julgamento. Schiller já sustentava que a possibilidade de uma relação harmoniosa, contemplativa do sujeito com o mundo só pode existir de um modo negativo, isto é, como sentimento de perda, como um luto por uma harmonia que o indivíduo moderno só pode experienciar como sentimento de falta.
SchillerA temporalidade do belo não é a mesma da temporalidade implicada no sublime. Enquanto o primeiro sentimento nos proporciona um prazer, um sensação de harmonia que, de certo modo, faz-nos crer que o tempo esteja suspenso, o segundo sentimento nos remete à nossa finitude, à nossa mortalidade. Isso já vimos nos
posts anteriores. Acredito que, do ponto de vista kantiano, essa tensão é inevitável. Os seres humanos estão sempre em oposição a si próprios, pois sabem-se irremediavelmente finitos. Porém, perceber essa finitude, a constatação da perecibilidade da beleza, seu sacrifício, é de certo modo postar-se além desta própria finitude. Mais uma vez, damos voltas no terreno de antinomias insolúveis que a justificação do ato de julgar abrira.
A reflexão schilleriana acerca desse nó crítico é de particular importância pois ela estabelece com clareza didática as possíveis negociações abertas ao pensamento crítico. Para Schiller, existem duas formas possíveis através da qual a arte pode encontrar uma sintonia entre uma dimensão contemplativa e uma dimensão trágica de nossa existência, nomeadamente, ingenuamente ou sentimentalmente. Grosso modo, podemos dizer que essa oposição corresponde a duas possibilidades artísticas de negociar a contradição que existe entre a legislação compulsória da natureza e a liberdade do espírito. Na arte ingênua, a natureza fala mais alto que a vontade humana. Essa vitória, todavia, não é de uma força extrínseca sobre a nossa vontade interna; antes, é a vitória da espontaneidade sobre a artificialidade, isto é, a vitória do tempo vital da beleza sobre a artificialidade da produção técnica. Bela, a arte ingênua surpreende, encanta e nos toca porque reconhecemos dentro de nós um impulso natural que se encontra em harmonia com a liberdade do espírito, afirma Schiller (1996, p. 91) “Assim, é necessário que a natureza triunfe sobre a arte, não mediante sua violência cega, como grandeza dinâmica, mas por sua forma, como grandeza moral; em suma, não compulsoriamente, mas por necessidade interna”.
Esse gênero de expressão artística seria tocante por manifestar uma liberdade que não é constrangida por padrões formais de suposta validade universal ou por preocupações (morais ou intelectuais) que não sejam atuais, imediatos. A arte ingênua traz à tona o caráter imediato da beleza, a atualidade da vida em seu fluxo não domesticável. Crianças, povos primitivos, mulheres são, para a imaginação romântica em geral, um ideal de pura força ingênua. “... e a mulher que combina a ingenuidade de modos com um comportamento social apropriado é merecedora da mais alta estima, como o acadêmico que associa gênio da liberdade de pensamento com os rigores das escolas” (Schiller, 1966, p. 98) E ainda essa consideração acerca da educação das crianças:
“A child is badly behaved if, out of greediness, foolhardiness, or impetuosity, it acts in opposition to the prescripts of a good education, but it is naive if its free and healthy nature rids it of the mannerisms of an irrational education, such as the awkward, posturings of the dancing master.” (Schiller, 1966:90)
O horizonte temporal da arte ingênua determina um tipo de ação que nós poderemos chamar divina. Como o ingênuo não se coloca os limites artificiais da razão, o indivíduo que age sob esse sentimento não está constrangido pelas tecnicalidades do prático. Por exemplo, não é ingênuo perguntar: “Irás saciar a sede deste que irá infligir tanta dor no povo de Israel?” O ingênuo vive uma relação imediata com o mundo; o que pede a sua ação é o chamado do momento. Para esse indivíduo, esse chamado não deve ser submetido a uma análise racional das consequências que sua ação implica. Ele vive sob uma “ética de convicção”, para usarmos a expressão weberiana. Não importa quão míope essa ação pareça quando analisada sob uma ética de responsabilidade, ela sempre desperta em nós uma simpatia desarmada e espontânea. O sentimento de estar sintonizado com, a capacidade de de participar imediatamente no pathos de alguém, é a base do prazer proporcionado pela arte ingênua.
Embora o trabalho teórico de Schiller favoreça em grande medida a arte ingênua, ao longo de sua carreira essa disposição tende a dar espaço a uma posição mais cética com respeito à possibilidade de produzir uma arte ingênua, clássica, no mundo moderno. O sentimento de harmonia ingênua cede espaço a um sentimento de perda, um luto por uma experiência que para os sujeitos modernos apenas surge negativamente. “Nosso sentimento com relação à natureza é como o sentimento de um inválido com relação à saúde” (Schiller, 1966, p. 105). Esse sentimento leva o artista Romântico a procurar refúgio em um sentimento de nostalgia ou de ansiedade com relação a um mundo por vir. Quando essa abordagem negativa toma controle da arte, a beleza encontra um papel novo e subordinado no mundo da apreciação artística. No mundo composto pela arte espiritual, a beleza teria, de acordo com Schiller, um papel pedagógico, isto é, colocar o indivíduo em direção a uma ordem moral.
Arte reflexivaA ideia de uma arte capaz de refletir acerca de si própria, de ser a um só tempo herói trágico e coro, é a marca distintiva do Romantismo de Jena, embora não necessariamente um traço romântico. De Hegel a Blanchot, o
Dom Quixote foi muitas vezes proposto com o protótipo de uma arte romântica precisamente por sua qualidade reflexiva: a ficção voltando-se sobre si própria repetidamente com a mais fina ironia. Louvado por Friedrich e August Schlegel, o teatro de Shakespeare também oferece um exemplo de um exercício ao mesmo tempo artístico e mata-artístico. O teatro dentro do teatro aparece em
Hamlet, por exemplo, mas também em
Como Quereis. Lembremos, a propósito, da personagem Rosalind.
Aquilo que o Romantismo de Jena considera o fundamento de toda verdadeira arte seria precisamente essa capacidade de produzir formas artísticas que ao mesmo tempo uma reflexão acerca dessa produção. É nesse sentido que Benjamin afirmará que o Romantismo alemão é o berço da ideia de crítica literária. Correspondentemente, a arte orientada pelo exercício reflexivo seria apenas como uma opção estética entre muitas, mas como caminho para a “educação da terra”, um caminho que conduz o ser humano à sua essência. “No momento, o espírito está se movendo apenas aqui e ali – quando o espírito irá se mover como um todo? Quando a humanidade
en masse irá começar a refletir?” (Novalis, 1997, p. 29)
Para Novalis, a reflexão seria o ato de tornar-se em direção a si próprio, e encontrar sua humanidade neste mesmo ato. Levantar o véu da deusa de Sais é a alegoria que o Romantismo de Jena consagrou para expressar tal ato. Em
Os Discípulos de Sais, Novalis nos conta a história de Hiacinto que, vivendo em um mundo paradisíaco, perfeito, passa a viver um processo de estranhamento com relação a esse mundo encantado. Abandona nesse processo sua amada e em nome da busca do conhecimento começa uma peregrinação em busca da deusa de Sais (Isis), que supostamente lhe traria a tranquilidade e a harmonia perdidas. Essa busca opera gradualmente uma transformação em Hiacinto. “Atrás dele parecia que muitos anos haviam se passado. Agora as paisagens se tornaram também mais ricas e diversas, os ares quentes e azuis, o caminho uniforme...” (1975, p. 60). No final da jornada, ele descobre que o sentido mais profundo de toda a jornada e busca lhe era bastante familiar. Sob o véu da deusa de Sais, Hiacinto descobre a face de sua bem-amada, que ele abandonara havia muitos anos. Poderíamos dizer que esse exercício de queda e redenção, além do sentido religioso, corresponde em grande medida à discussão epistemológica que Fichte nos proporcionou no começo desse post.
No fragmento 29, dos
Logological Fragments II, o desnudamento do rosto da deusa Isis, ato que corresponde a um poderoso símbolo da poética de Novalis, revela algo distinto: “Alguém consegui – ele levantou o véu da deusa de Sais. Mas o que ele vê? Ele vê – maravilha das maravilhas – a si próprio” (Novalis, 1997, p. 76). Sugiro que os dois resultados da estória são um só: o mundo é o trajeto necessário através do qual o Eu descobre a si num ato de estranhamento de si. Sem esse gesto, isto é, sem essa “queda”, o Eu não pode descobrir sua liberdade e, assim, retomar a si próprio. Mover-se em direção ao mundo é o gesto primordial mediante o qual o Eu pode refletir acerca de sua essência, nomeadamente, abrir-se ao que ele não é. A catársis operada por essa típica formação edípica reside no reconhecimento de uma desproporção na estrutura do Eu, que por sua vez possibilita-nos ver nossa própria cegueira. Hegel (1979, p. 40) comentou a esse respeito do seguinte modo:
“The infinite subjectivity of Romantic art that surrenders itself to everyone cannot therefore be lonely in itself like a Greek god. It does not remain self-enclosed in perfect blessedness, but comes out of itself into relation with an other, which is, however, its own, in which it finds itself again so that, even in coming out, it remains in unity with itself. This being in unity with itself in another is the truly beautiful content, the ideal, of Romantic art.”
Enquanto Hegel via na ideia de reflexão romântica apenas um exercício de auto-validação e expansão, entretanto, creio que os Românticos de Jena viam a perspectiva de uma reflexão infinitamente produtiva e auto-produtiva.
Talvez devêssemos ter em mente uma imagem que era certamente familiar a Novalis, qual seja, Isis juntando os pedaços dispersos de seu marido morto, Osiris, o deus invocado em cerimônias mortuárias no Egito, e trazendo-o de volta à vida. E assim: “O ato de transcender a si próprio é o mais alto em todos os respeitos – o ponto de origem – a
gênese de vida” (Novalis, 1997, p. 64). Embora Novalis veja a reflexão como um “momento que vai da unidade à separação e de novo à unidade” (Forstman, 1977, p. 48), esse retorno é apenas o começo de uma nova viagem. O ser humano é uma viagem, meu irmão! E por isso o amor e o Eu são finais alternativos da fábula de Hiacinto. A abertura para a alteridade contida no amor não deve ser cancelada, fechada pelo Eu, como se essa abertura fosse de algum modo instrumental para a auto-consciência. É isso que aprendemos de Hiacinto. A reflexão é uma manifestação de uma estrutura ontológica necessariamente aberta à alteridade.
[por revisar]