"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
quarta-feira, 30 de junho de 2010
quinta-feira, 24 de junho de 2010
Fazendo Sexo: as fronteiras (não-)discursivas do corpo em Thomas Laqueur
Cynthia Hamlin
Em seu “Inventando o Sexo: corpo e gênero dos Gregos a Freud” (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001), o historiador Thomas Laqueur desconstrói 2.000 anos de diferença sexual, transitando no espaço ínfimo entre corpos de carne, sangue e sêmen, de um lado, e suas representações, de outro. Estabelecendo o que parece ser uma versão fraca da tese segundo a qual o sexo é construído por meio de categorias de gênero, Laqueur se afasta daquelas tendências do feminismo contemporâneo que esvaziam o sexo de todo conteúdo ao propor que as diferenças naturais são, na verdade, culturais, não havendo distinção entre elas. O que estou chamando de tese fraca do caráter socialmente construído do sexo repousa, em vez disso, na afirmação de que a concepção de corpo como algo privado, fechado e estável – e que fundamenta as noções modernas de diferença sexual – é efeito de contextos históricos e culturais. Assim, em lugar de negar o que chama de “abismo” entre representação e realidade ou da distinção entre “ver” e “ver como” que, em última instância, levaria ao desaparecimento completo do corpo, ele mantém a distinção fundamental entre este e sua construção discursiva. O movimento é sutil, mas importante, pois, além de estabelecer os limites da desconstrução na produção de conhecimento, abre a possibilidade de um movimento de reconstrução com base na (investigação da) dimensão material dos corpos.
Creio que isso pode ser melhor compreendido com a afirmação de Laqueur de que, embora sua preocupação no livro seja a de examinar as diferentes interpretações do corpo com base desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos (o que equivale a dizer que tudo o que se afirma sobre o sexo é contaminado por determinadas concepções de gênero), não tem interesse em negar a realidade do sexo ou do dimorfismo sexual como um processo evolutivo. Talvez essa última posição seja especialmente esclarecedora, pois marca sua diferença em relação a teóricas como Fausto-Sterling, MacKinnon e Butler (dentre outras). Embora Laqueur evite polemizar com essas autoras, eu acho a comparação irresistível.
A negação do dimorfismo sexual está intimamente associada à crítica pós-estruturalista dos dualismos, especialmente três deles: sexo/gênero, natureza/cultura; real/construído. Embora reconheça a validade da crítica, em particular no que diz respeito à relação de incomensurabilidade, de dominância relativa entre os termos de cada um dos pares e da invisibilidade da interdependência que se estabelece entre eles, acredito que, de um ponto de vista analítico, existem algumas vantagens em transformá-los de dualismos em oposições – exceto o par real/construído, que pressupõe a negação ontológica de fenômenos culturais. Mas não pretendo desenvolver esse argumento aqui. O que me interessa no momento é mostrar como a dissolução desses dualismos é feita com base numa elisão entre realidade e representação que impede qualquer movimento reconstrutivo na teoria feminista. Tal movimento, em minha modesta opinião, é fundamental para seus projetos emancipatórios, especialmente aqueles que implicam em transformações corporais mais “profundas” do que as possibilitadas pelo uso de roupas, cosméticos e mesmo exercícios e dietas - como o uso de drogas, cirurgias e, no limite, a criação de organismos totalmente novos por meio de tecnologias como o DNA recombinante (Soper, 1995).
Embora tanto Fausto-Sterling (2000) quanto Butler (1993) se esforcem por admitir a dimensão material dos corpos, a ênfase em sua dimensão ideológica ou simbólica não apenas erode a distinção entre o corpo físico e o corpo cultural, mas prioriza o segundo, transformando o primeiro em mero epifenômeno: “... nós literalmente, não apenas ‘discursivamente’ (isto é, por meio da linguagem e de práticas culturais), construímos nossos corpos, incorporando a experiência em nossa própria carne”, diz Fausto-Sterling (p. 20-21), e complementa, mais adiante: “[A] sexualidade é um fato somático criado por um efeito cultural” (ênfases da autora). Não se trata, aqui, de negar a necessidade do deslocamento das fronteiras biológicas, gerando um certo borramento entre seus limites com a cultura, mas de negar a prioridade conferida ao cultural que impede que o sexo seja concebido como algo mais do que aquilo “que a sociedade designa ou o que a sociedade faz dele” (Weeks, citado em Laqueur, 2000, p. 13). A este propósito, é interessante notar que tanto Butler quanto Fausto-Sterling tratam sexo e sexualidade como intercambiáveis, impedindo qualquer critica mais consistente àquelas abordagens deterministas que, pelo lado avesso, estabelecem a identidade entre anatomia, genes e hormônios, por um lado, desejo, identidade e práticas, por outro. Para ser justa, Laqueur também faz isso ocasionalmente, inclusive no ambíguo título de seu livro “making sex” (fazendo sexo), gerando eventuais escorregadas na falácia epistêmica, ou a confusão entre o real e a concepção que se tem do real ou, ainda, a dissolução da ontologia na epistemologia.
Parte do apelo do pós-estruturalismo, especialmente no que diz respeito ao colapso da distinção sexo/gênero, decorre de questões políticas: para Fausto-Sterling, sua manutenção exclui a possibilidade de qualquer crítica feminista às ciências biológicas; para Catherine MacKinnon (ainda que ela não possa ser considerada pós-estruturalista, num sentido estrito), a distinção deve ser abandonada porque o sexo (como o gênero) diz respeito a relações sociais “organizadas de tal forma que os homens possam dominar e as mulheres devem se submeter” (citado em Laqueur, 1992, p. 13); para Butler (1993), a recuperação do corpo material por parte do feminismo (em relação à biologia) implica na negação da associação entre feminilidade e materialidade (via o conceito de matrix, relacionado ao útero e às questões reprodutivas). Neste sentido, não deixa de ser irônico que a justificativa oferecida por Laqueur (Ibid. p. 15) para a manutenção da distinção entre o corpo material e o corpo como discursivamente construído seja também, embora não exclusivamente, de ordem política:
diferentes obrigações [éticas e políticas] decorrem do fato de o observador ver (ou tocar) e representar. Também é desonesto escrever uma história da diferença sexual, ou da diferença, de forma geral, sem reconhecer a correspondência vergonhosa entre formas particulares de sofrimento e formas particulares de corpo, não importa como o corpo seja concebido. O fato de que a dor e a injustiça são gendradas e que correspondem a sinais corpóreos de sexo é precisamente o que confere importância a uma descrição da construção do sexo. Além disso, houve claramente progresso na compreensão do corpo humano, em geral, e da anatomia e fisiologia reprodutiva, em particular.
Como afirma Tony Lawson (citado em Hull, 2006, p. 5), “posições políticas que não têm outra base que não suas vantagens estratégicas percebidas provavelmente serão desafiadas e questionadas mais cedo ou mais tarde”. É justamente por isso que a abertura que Laqueur confere ao conhecimento produzido pelas ciências biológicas e, como consequência, à distinção sexo/gênero, não me parece, ao contrário do que afirma Jurandir Freire Costa (2001), uma tentativa de continuar a falar desses termos de forma moralmente neutra, mas de trabalhar a desconstrução de forma a permitir o movimento de reconstrução teórica que estabelece as condições ontológicas daquilo que Butler chama de corpos abjetos.
Embora de forma alguma imune àquilo que Frédéric Vandenberghe (2010) já se referiu como “ontofobia”, vale ler o excelente trabalho de desconstrução efetuado por Laqueur. De maneira geral, seu livro deve ser compreendido como a tentativa de demonstrar que, de um ponto de vista histórico, nenhum conjunto de fatos relativos ao sexo determinou a forma como ele foi representado e compreendido e - no que poderíamos caracterizar como um pequeno passo em falso em direção à falácia epistêmica- nem engendra qualquer concepção particular de diferença sexual. Isso porque a própria forma como esses fatos são construídos (de um ponto de vista de sua representação) dependem de desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos. Diferentemente de Foucault, para quem epistemes são substituídas umas pelas outras, tornando-se incomensuráveis, para Laqueur, modelos sexuais distintos sempre coexistiram, embora a ênfase possa recair sobre um em detrimento de outros.
Para o autor, desde a Grécia clássica até o século XVII, dominou um modelo corporal de sexo único no qual as diferenças sexuais decorriam de um sistema hierárquico segundo o qual a mulher é um homem invertido – e menos perfeito. Mas isso não deve ser entendido como uma fundamentação biológica dos papéis sexuais – algo que só surge na modernidade: as próprias categorias sociais eram naturais, estando ambas no mesmo nível explanatório.
O modelo de sexo único fundamenta-se na teoria da causalidade de Aristóteles, em A Geração dos Animais, para quem o sexo era o signo de tipos distintos de causa: os machos representavam a causa eficiente (geram em outro, contribuindo com a alma); as fêmeas, a causa material (geram em si mesmas, contribuindo com o corpo). Embora isto aponte para uma divisão em dois sexos, inclusive do ponto de vista genital (assim como o pênis era peculiar aos machos, o útero era peculiar às fêmeas), uma economia dos fluidos e dos prazeres e até mesmo uma estética do pênis levam a um borramento das fronteiras do corpo - e dos genitais, em particular - transformando sua retórica na de um modelo de sexo único. Em relação à estética, por exemplo, a preferência dos gregos por um pênis pequeno e um prepúcio proeminente aparece claramente no drama e na arte: um pênis grande, associado aos sátiros, era considerado cômico (para um excelente artigo sobre as conceituações médicas acerca do prepúcio ideal na Grécia e em Roma antigas, veja o artigo de Frederick Hodges) . Segundo Laqueur, ao trazer esse tema cultural mais amplo para sua teoria da geração, Aristóteles progressivamente enfraquece a conexão pênis/macho, sugerindo que um pênis grande tornaria um homem menos masculino, dado que menos fértil porque tornaria o esperma excessivamente frio para possibilitar a geração.
A relação entre pênis pequeno e fertilidade (ou geração, que é, afinal de contas, o que está implícito em sua discussão sobre causalidade) também é sustentada por uma economia dos fluidos corporais segundo a qual a temperatura diferenciada de homens e mulheres (os homens seriam mais quentes não só do que as mulheres, mas também do que os escravos e os estrangeiros, o que aponta para o caráter social, relativo a status, da presença do calor vital). Isso faria com que os órgãos genitais destas fossem internos - ainda que homólogos aos masculinos. Os fluidos produzidos pelo corpo (sangue, suor, sêmen, leite e mesmo gordura) eram, em parte, convertíveis uns nos outros e um tipo de fluido era liberado sempre que havia excesso de outro e calor suficiente para convertê-los. Assim, os homens não menstruavam porque, sendo mais quentes, não dispunham do mesmo excedente nutricional que as mulheres; estas não menstruavam quando precisavam converter o excedente de sangue liberado pela menstruação em leite e os rapazes púberes podiam produzir leite, talvez por ainda não serem quentes o suficiente.
Fatores sociais também aparecem claramente na forma como as relações (sexuais) entre pessoas do mesmo sexo eram concebidas. Relações entre homens mais velhos e rapazes púberes não eram consideradas perversas porque não havia inversão na ordem social. Fosse entre homens ou entre mulheres, não era a identidade sexual que importava, mas a diferença de status: o mollis e o cinaedus, o homem adulto efeminado; a tríbade, a mulher que adotava o papel ativo (masculino) na relação; o pathicus, aquele que era penetrado, eram moral e medicamente condenados porque invertiam de forma não-aceitável os lugares de poder e prestígio, e não porque portavam determinados marcadores corporais de sexo. De fato, o sexo entre e escravos nem chegava a ser reconhecido como tal por Aristóteles: “o escravos não têm sexo porque seu gênero não importa politicamente” (Laqueur, 1992, p. 54).
O modelo do sexo único, no qual o corpo paradigmático era o corpo quente, masculino, civilizado, exerceu influência significativa durante toda a Idade Média e o Renascimento e o ponto importante deste modelo é que ele não possibilitava uma diferenciação entre os sexos de ordem qualitativa, mas meramente quantitativa, no sentido de que os sexos eram classificados em função do grau de aproximação deste corpo paradigmático. Com efeito, a preocupação com o estabelecimento de distinções de ordem física era tão reduzida que, até o século XVIII, o termo testes (ou orcheis em latim) era usado de forma indistinta para testículos e ovários, o canal vaginal não era reconhecido como uma estrutura independente do útero e as trompas de falópio eram chamadas de vasos deferentes. Mas é importante não perder de vista que essa “falta de interesse” aponta para a dominância sócio-cultural atribuída ao corpo masculino.
Isso é interessante, se considerarmos que o Renascimento foi o período no qual as dissecações de corpos começaram a ser feitas de forma mais ou menos sistemática. Até mesmo artistas do porte de um Leonardo da Vinci pareciam tão impregnados pelo modelo do sexo único que representavam os órgãos internos femininos como se fossem a inversão perfeita da genitália externa masculina. As ilustrações retiradas do que é considerada a obra fundadora da anatomia moderna, a De humani corporis fabrica (1543), de Andreas Versalis, demonstra bem o papel da crença no modelo do sexo único na percepção do corpo. A vagina é “realmente” um pênis (à direita); o útero equivale à bolsa escrotal e, os ovários, aos testículos (ilustração da esquerda). Pelo menos até o “aparecimento” do clitóris – ironicamente, descoberto por um tal de Colombo (Renaldus, não Cristóvão) à época dos grandes descobrimentos.
Não que a descoberta do clitóris tenha servido para desestabilizar a hegemonia do modelo do sexo único, mas, dada a homologia estabelecida entre ele e o pênis, agora era preciso lidar com o “fato” de que as mulheres tinham não um, mas dois pênis! Apesar disso, como a análise de alguns casos de hermafroditismo efetuada por Laqueur sugere, apenas um desses pênis isomórficos realmente contava neste período: o interno. Diante de casos ambíguos, como em hermafroditas em que era impossível determinar se o que se via era um pênis pequeno ou um clitóris grande, os critérios sociais (aliás, como ainda hoje), assumem uma importância maior. Mas longe de concluir, como o fazem Fausto-Sterling, Butler, e mesmo Laqueur, que isso ilustra o caráter decididamente convencionalista do sexo, creio que isso pode ser compreendido em termos de que, onde as fronteiras naturais não existem ou não são claras o suficiente, as categorias tendem a ser política e culturalmente alocadas.
Seja como for, a emergência do modelo (moderno) de dois sexos ocorre em algum momento do século XVIII. Aqui, mais uma vez, é possível perceber uma série de escolhas semânticas que apontam para a elisão ocasional entre realidade e representação:
À medida que o próprio corpo natural tornou-se o padrão dominante de discurso social, os corpos das mulheres – o eterno outro – tornaram-se o campo de batalha para redefinir uma relação social antiga, íntima e fundamental: aquela entre o homem e a mulher. Os corpos femininos, em sua concretude corpórea, cientificamente acessível, na própria natureza de seus ossos, nervos e, mais importante, órgãos sexuais, passaram a suportar um novo peso de significado. Dois sexos, em outras palavras, foram inventados como a nova fundação para o gênero. (Laqueur, 1992, p. 150. Minhas ênfases).
Dois conjuntos de fatos explicam a emergência do novo modelo: um epistemológico e um político. De um ponto de vista epistemológico, o desenvolvimento da ciência não apenas possibilitou uma melhor distinção entre fato e ficção, ciência e religião, razão e crença (palavras do próprio Laqueur!), mas a mudança paradigmática (ou epistêmica) ocorrida neste período diz respeito à substituição de um tratamento hierárquico entre semelhanças por um sistema de diferenciação reduzido a um plano único: o natural. Assim, em lugar do modelo baseado na continuidade e hierarquização que caracterizava o sexo único, constrói-se um modelo baseado na discontinuidade e oposição (reducionista) que dividia o sexo em dois. Houve, entretanto, um contexto político que tornou essa mudança possível: o alargamento da esfera pública ocorrido entre os séculos XVIII e XIX que gerou novas lutas por poder e status, inclusive entre homens e mulheres. Não por acaso, contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau (este último, em particular), terminam por estabelecer o corpo como fundamento da sociedade civil ao subordinar as mulheres aos homens no contrato social em virtude de suas (in)capacidades reprodutivas.
Ao descrever como certos fatos, ou “o que eram considerados fatos” (aqui fala Laqueur, o realista), tornaram-se o fundamento de determinadas distinções sociais, Laqueur demonstra como essas distinções retroalimentam teorias científicas, reforçando o ciclo infernal de desigualdades. Sua análise da teoria freudiana da sexualidade feminina é particularmente instrutiva, na medida em que não apenas demonstra como o lugar de subordinação das mulheres é determinado em função de sua anatomia (anatomia é destino), mas também como o próprio Freud provê as ferramentas para o desmonte deste modelo ao propor que a libido não tem sexo. Esta é uma afirmação ontologicamente ousada a que Laqueur parece subscrever e que tem consequências importantes para a crítica do determinismo biológico. Afirmações ontológicas pressupõem um comprometimento em relação a determinadas propriedades atribuídas aos objetos. Mas isso Laqueur só faz de forma indireta. De fato, ao lamentar a omissão de “uma discussão sistemática da experiência no corpo”, ele parece reconhecer a necessidade de reconstrução - no sentido de afirmar claramente a que tipos de experiências esses corpos estão sujeitos em virtude de sua estrutura, para dar conta da crítica dos elementos excludentes do modelo de dois sexos. Neste sentido, parafraseando Bhaskar, talvez o que lhe falte seja a coragem de transformar sua cautela epistemológica em ousadia ontológica.
Bibliografia
BUTLER, Judith (1993). Bodies that Matter: on the discursive limits of sex. Routledge, Nova York e Londres.
COSTA, Jurandir Freire (2001). “O sexo segundo de Laqueur”. Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, 25 de março de 2001. Disponível em:
< http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/laqueur.html>. Acesso em 21 de junho de 2010.
FAUSTO-STERLING, Anne (2000). Sexing the Body: gender politics and the construction of sexuality. Basic Books, Nova York.
HULL, Carrie (2006). The Ontology of Sex: a critical inquiry into the deconstruction and reconstruction of categories. Routledge, Londres e Nova York.
LAQUEUR, Thomas (1992). Making Sex: body and gender from the Greeks to Freud. Harvard University Press, Cambridge (MA) e Londres.
SOPER, Kate (1995) What is Nature? Culture, politics and the non-human. Oxford, Blackwell.
VANDENBERGHE, Frédéric (2010) Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, UFMG/Iuperj.
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Greve ou motim francês na Copa Mundial de 2010 – negócio de Estado, de mídias e de celebridades
Tâmara de Oliveira
No dia 20 de junho de 2010, a Copa da África do Sul foi palco de um fato que eu, enquanto desconhecedora da história do futebol, penso ser inédito : todos os jogadores da equipe de França, em pleno campo de treinamento público, anunciaram que recusavam treinar por causa da exclusão oficial de um dos seus companheiros – o internacional e pouco tranquilo Nicolas Anelka – alegando que o procedimento de tal exclusão fôra incorreto. Segundo o documento dos grevistas ou amotinados (porque eles apresentaram um manifesto escrito !), a FFF (Federação Francesa de Futebol) excluiu o jogador fundamentando-se apenas em rumores das mídias, sem que a eles próprios, testemunhas da altercação verbal entre o treinador (Raymond Domenech) e Anelka, tivesse sido dado o direito de apresentar sua versão dos fatos. Nova revolução francesa ? Agora protagonizada pelos cidadãos-jogadores de um futebol milionário ?!!!
Tudo isso sendo apresentado ao vivo pelo Canal + ! Aquela rede televisiva francesa que sempre financia o cinema de vários países. Vimos estupefatos o capitão do time quase aos murros com o preparador físico, Domenech apartando esses dois galos de briga, o preparador físico jogar seu apito no gramado do campo enquanto ia embora, sendo logo acompanhado por um dirigente da FFF que declarou aos jornalistas que para ele bastava, sentia-se arrasado e que estava demitindo-se. Depois, após meia hora de conversa com os jogadores dentro do ônibus, Domenech aproximou-se dos jornalistas para ler o documento dos jogadores. Finalmente, o ônibus saiu lentamente, enquanto os jornalistas e o público presente ao treinamento-que-não-houve pareciam em estado de choque. Impressionante ! A assistir e nunca esquecer ! Não foi nenhum 11 de Setembro mas parecia um acontecimento impactante, desses que podem fazer tremer la République.
De fato, o que aconteceu mostra que a ideologia nacionalista sob o futebol não é um enjeu singular ao sentimento identitário brasileiro ou a um patriotismo raso de Dunga. Durante uma Copa do Mundo, os jogadores de futebol, por mais globalizados e milionários que sejam, representam um Estado-nação. E no caso atual da França, sua seleção é uma questão de Estado, ou pelo menos de governo, antes mesmo da Copa começar. Era engraçado ouvir jornalistas franceses ironizando a intervenção do governo da Costa do Marfim (ex-colônia francesa) sobre sua seleção, enquanto a Ministra e sua Secretária da França para os Esportes divergiam em público sobre o preço do hotel onde hospedavam-se os jogadores franceses. Ai, como pode ser divertido o olhar do ex-colonizador sobre si mesmo…Como ele pode ser burlescamente cego…
Depois do episódio do preço do hotel (discutido, representado e ridicularizado por mídias e humoristas durante uma semana inteira), a França começou sua participação na Copa como o mundo inteiro já sabia que seria : pessimamente. E o governo continuava presente : a) em solenidade oficial, para lançar um programa de educação pelo futebol na África do Sul financiado pelo Estado francês, a Secretária para os Esportes veio antes e sozinha, enquanto os jogadores chegaram depois, não sem tornar pública sua recusa em partilhar o estrelato de uma solenidade com uma Secretária cuja declaração sobre seus custos de hospedagem os tinha deixado « descontentes » (palavra oficial do capitão do time) ; b) no dia da bela derrota que o México lhes infligiu, a TV mostrou que a Ministra francesa para os Esportes estava no mesmo avião que levou os jogadores de volta ao hotel. Pois é, nesse big-brother real em versão francesa, telespectadores e internautas podiam acompanhar todas as intrigas, já sabiam por exemplo que os jogadores estavam de bem com a Ministra e de mal com sua Secretária…E um novo episódio, à origem da greve ou motim do dia 20 de junho e com ares de intermédio burlesco de drama, revelou que as mídias eram realmente um outro personagem central. L’Équipe, célebre jornal francês de futebol, estampou em sua manchete do dia 19 os palavrões que Nicolas Anelka teria dito a Domenech no intervalo do jogo França/México e que seriam, depois que correram o mundo a partir de L’Équipe, a razão de sua exclusão da seleção.
Mas o governo reafirmou sua centralidade enquanto personagem, dessa vez na pessoa do próprio chefe de Estado : da Rússia, onde estava em visita oficial, Nicolas Sarkozy teria declarado que não estava em seu papel julgar a qualidade do futebol da equipe, mas que confiava em sua ministra para que as conclusões e as medidas necessárias sobre o caso Anelka fossem tiradas e executadas, para que « a França do futebol pudesse novamente ser cheia de esperança». Para o leitor que ainda duvida da articulação entre futebol e identidade nacional francesa, preste atenção à frase acima : o presidente da república não fala de um esporte praticado num Estado-nação, mas de um Estado-nação que poussui um esporte como fonte de esperança nacional. Além disso, assume que a seleção francesa é um problema de governo ao designar uma ministra para resolver a confusão! Ora, considerando que a FFF não é instituição do Estado, qual o poder de uma ministra para particpar de uma decisão tão grave? Mas a verdade é que o jogador em questão foi excluído do time horas depois dessa declaração presidencial, oficialmente após uma enquete dos dirigentes com os dois diretamente envolvidos (Anelka eDomenech) e uma reunião do staff dirigente.
O capítulo posterior dessa ópera-bufa, com o qual começamos este post, foi iniciado pelo terceiro personagem central : os próprios jogadores, agora travestidos em cidadãos em luta ! Aqueles que não conseguiam jogar juntos, apresentando-se em campo como individualidades isoladas e perdidas, entraram em cena como grupo organizado de reivindicação, desafiando os discípulos de Alain Touraine e sua sociologia dos movimentos sociais ! Com efeito, o que mais chamou minha atenção no espetáculo ao vivo do Canal + foi o documento dos jogadores contra a exclusão de Anelka. Primeiro por ter sido lido serenamente pelo treinador: Domenech, aquele mesmo por quem a FFF justificara a exclusão de Anelka, apresentava-se como porta-voz dos solidários ao seu agressor ! Em segundo lugar, por alguns de seus conteúdos fundamentais :
Por este comunicado, todos os jogadores da equipe de França sem exceção querem afirmar sua oposição à decisão tomada pela Federação Francesa de Futebol de excluir Nicolas Anelka de seu grupo. Se nós lamentamos o incidente que se produziu durante o intervalo da partida França-México, nós lamentamos mais ainda a utilização de um acontecimento que pertence apenas ao nosso grupo e que é inerente à vida de uma equipe de alto nível.
(…………………………………………………………………………………………)
Consequentemente, e para marcar sua oposição para com as mais altas instâncias do futebol françês, o conjunto dos jogadores decidiu não participar da sessão de treino. Em respeito ao público que veio nos assistir a essa sessão, decidimos vir para encontrar esses torcedores que, por sua presença, trazem-nos uma sustentação sem falha.
No que nos diz respeito, somos conscientes de nossas responsabilidades, aquelas por vestirmos as cores de nosso país, mas também aquelas que nós temos para com nossos torcedores, por seus executivos, educadores, benevolentes e para com as inumeráveis crianças que olham os Bleus como modelos. No que nos diz respeito, não esquecemos nenhum de nossos deveres. Nós faremos tudo individualmente, com certeza, mas também num espírito coletivo, para que a França, terça à noite, reencontre sua honra por uma performance enfim positiva.
Deixo a singular atitude do treinador de lado (seu caso parece realmente psicanalítico) e concentro-me nos conteúdos mais sociologizáveis do documento. Para quem já estava acostumado com as controladíssimas entrevistas coletivas dos jogadores, o contraste é imediatamente significativo. De fato, o sentido de seu discurso era, até então, marcado pela subjetividade, melhor dizendo, por argumentos centrados nas emoções e sentimentos dos jogadores em relação às perguntas. Exemplo notável, já aqui sinalizado : quando perguntados porque não foram à solenidade com a Secretária dos Esportes, o único argumento do capitão foi o de que eles decidiram assim fazer porque ficaram descontentes com a declaração da Secretária sobre o preço do hotel. Argumentação cujo sentido era perfeitamente adequado ao que se diz aqui, no Brasil e no mundo sobre os grandes jogadores contemporâneos – os globalizados, aqueles que jogam em grandes times europeus e são, para cada país, as estrelas da Copa : são celebridades egocêntricas, incapazes de reflexão para além de seus caprichos de jovens enriquecidos, mimados e vestidos com o mesmo zelo das top-models internacionais – com quem aliás eles gostam de namorar, casar, divorciar, etc. Eis que de repente eles conseguem redigir um documento cujos conteúdos apresentam também sentido político, cidadão e, inevitavelmente, o sentido do respeito devido à representação que eles portam do Estado-nação ! Os meninos mimados e incompetentes da seleção francesa, aqueles que alguns jornalistas distinguiam sociologicamente em três bandos adversários bem urbano-globalizados (os provincianos X os da periferia das grandes cidades X os electrons livres), surgem como grupo político uníssono e implodem a FFF (diga-se de passagem, com uma sigla dessas até parece vocação). Que situação !
Mais tarde ficamos sabendo de um detalhe fundamental sobre o tal documento : ele teria sido redigido por um advogado ou conselheiro de um dos jogadores. Pois é : agentes empresariais, advogados, parentes e outros intermediários ; estamos bem no mundo dos negócios do futebol globalizado. Aquele que, com esta Copa, trará entre 600 e 900 milhões de lucros à Fifa, milhares aos jogadores e seus clubes, lucro ou déficit às transmissoras (dependendo se o país fica ou sai logo da Copa) e, certamente, milhões de déficit aos poderes públicos da África do Sul, segundo Le Monde em 21.06.2010. Mas os sentidos dos negócios e suas celebridades contemporâneas não ultrapassaram completamente sentidos anteriores do futebol, no caso os de uma Copa do Mundo : o do sentimento de identidade nacional e o de sua articulação com a ideologia do Estado-nação.
Na França, a estupefação ainda vívida, pois que ninguém consegue dizer se a seleção francesa vai ou não jogar amanhã, compõe-se, entre outras coisas, de duas orientações simbólicas bem sólidas no sentimento identitário e nacionalista do país : o pavor do ridículo, por ter-se transformado em motivo de riso mundial nesta Copa ; a demanda pela intervenção do governo, renovando a tendência estatizante da sociedade francesa, desde pelo menos Louis XIV até Nicolas Sarkozy. Com efeito, desde ontem podemos ouvir jornalistas, principalmente ex-jogadores/treinadores reconvertidos em jornalistas esportivos, declarando que a solução dessa ópera-bufa deve passar pela intervenção do governo, para garantir a presença da seleção ao jogo de terça-feira, pela honra da França.
E concluo com um convite à reflexão sociológica : a ação dos jogadores franceses poderia ser definida como greve ou como motim ? Por um lado, ela manifestou-se como suspensão voluntária de trabalho contratado, logo, a ação estaria perto de uma greve (embora sendo realizada por trabalhadores com salários milionários) ; por outro lado, um time de futebol é uma estrutura hierárquica, ela tem no treinador técnico seu comandante e na federação seu Estado-maior, logo, a ação estaria perto de um motim…Seja como for, vive la France ! Apesar de seu complexo de decadência, continua infatigável em produzir conflitos sociológica e politicamente impactantes.
domingo, 20 de junho de 2010
Nacionalismo, Futebol e Identidade Cultural
Fernando da Mota Lima
Como sabem os estudiosos da nossa história política e cultural recente, “Um dia na vida do Brasilino”, de Paulo Guilherme Martins, é uma fábula nacionalista publicada no outono de 1961. É assim que o próprio autor data muito anticonvencionalmente seu livreto. O texto está agora disponível na internet, como quase tudo. Passou a circular nela como edição comemorativa dos 41 anos do seu lançamento. Dado que retorna inalterado, é razoável supor que Martins se mantenha fiel à mesma ideologia, que a subscreva com a mesma convicção com que a escreveu no outono de 1961. O sentido ideológico da fábula é de uma transparência meridiana: o cotidiano do brasileiro, simbolizado na figura de Brasilino, é atravessado do primeiro ao último minuto pela dominação onipresente do imperialismo econômico e cultural. O processo de acelerada globalização disparado a partir de 1964, ano em que os militares impuseram às forças de esquerda uma derrota devastadora, tornou no presente o mote do nacionalismo e anti-imperialismo de esquerda inteiramente anacrônico. No entanto, a ideologia sobrevive aparentemente intocada.
Figura de mil faces, tal a variedade camaleônica com que se amolda a todos os grupos políticos, econômicos e culturais que a adotam, a ideologia nacionalista goza de excelente saúde repontando no discurso exaltado dos que defendem nossa particularidade lingüística, nossa integridade culinária, bastaria lembrar a hilariante apologia da broa de milho feita por um político de esquerda vindo do exílio, as políticas estatizantes como linha de resistência à dominação econômica imposta pelos Estados Unidos, nossa amada e ameaçada identidade cultural. Não se sabe bem o que seja, nossa identidade cultural, mas o fato é que todos os dias alguém aparece na mídia para defendê-la e não raro salvá-la. É tão viva e vigilante que ocupa lugar de destaque no seio da nossa política cultural dispondo de secretaria própria no Ministério da Cultura: a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural. O título soa um tanto paradoxal. Se celebramos a diversidade cultural, se o argumento da miscigenação cultural e racial tornou-se hegemônico na consciência brasileira, graças antes de tudo à obra admirável de Gilberto Freyre, como explicar a resistência imposta ao livre contato entre culturas em plena era da globalização? Como explicar a instituição de uma secretaria destinada a velar pela nossa identidade, além de a estimular com ações políticas concretas? Como explicar que até entre nós, entre brasileiros de uma região comum, acendam-se os ânimos de pernambucanos contra a invasão do carnaval baiano, que nos levantemos contra os sulistas, os baianos também, e portanto invalidemos um suposto princípio de unidade dentro da identidade nacional?
É também significativo o imenso prestígio político e intelectual de um ideólogo como Ariano Suassuna, defensor de uma noção de cultura e identidade cultural tão extremada que, perto dele, muitos dos nossos nacionalistas mais exaltados parecem cosmopolitas ou ainda entreguistas, se queremos usar um termo ancrônico, todavia ainda vivo na fala intransigente de Suassuna. Como ele próprio afirma sem meias medidas:
“Um prêmio chamado Sharp, ou Shell, Deus me livre! Não quero. Acho esses nomes feios. Não recebo prêmio de empresas ligadas a grupos multinacionais. Não sou traidor do meu povo nem estou à venda. (...) A globalização é uma arma que os países ricos têm para perpetuar a dominação sobre os pobres. O patrocínio de multinacionais nos eventos de nosso país é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais”.
Coerente com sua concepção extremada de nacionalismo cultural, antes de tudo regionalismo enraizado nas fontes da cultura rústica sertaneja, Suassuna abre fogo contra toda e qualquer expressão da cultura urbana de massas, assim como qualquer expressão da cultura erudita contaminada pelo livre circuito dos empréstimos culturais. Sendo assim, na entrevista citada dispara contra a bossa nova, o tropicalismo, o rock, Tom Jobim, Caetano Veloso etc. Para ele, globalização é apenas uma arma a serviço da dominação imposta pelos países do capitalismo central a países do tipo do Brasil. Para ele, os símbolos culturais americanos representam pura e simples dominação econômica e ideológica.
Ariano Suassuna fala todo o tempo pelo povo e em nome do povo. Infelizmente, o povo não parece nem um pouco interessado em seguir o enredo que escreve para a cultura e a identidade brasileira. Para desespero do nosso extremado ideólogo, os porteiros de condomínio querem mesmo dizer okei , não oxente. Nossos artistas primitivos, expressão da cultura rústica e pré-moderna celebrada por Suassuna, atendem alegremente ao convite que a cultura urbana de massas lhes acena. O povo brasileiro, não importando o sentido que desejemos atribuir a esse termo tão camaleônico como o nacionalismo cultural, persegue deslumbrado tudo o que o discurso salvacionista de Suassuna repele: o shopping Center, o consumismo desvairado, o lixo e o luxo da cultura americana, a língua inglesa disseminada em todos os poros da nossa sociedade, o batuque eletrônico da música sem fronteiras. Deixo Ariano Suassuna em paz com seu regionalismo intransigente e intolerante. Ele importa, para o meu argumento central, como evidência dos extremos a que pode chegar a ideologia que aqui me ocupa.
Se há um símbolo consensual na nossa indefinida e inapreensível identidade cultural, não duvido de que seja o futebol. Aqui vai uma ilustração que me parece mais persuasiva do que a mais refinada elaboração teórica que eu acaso pudesse acrescentar a este artigo. A seleção brasileira enfrentou a argentina na antevéspera do dia da Independência. Quatro horas antes do jogo ouvi vizinhos cantando festivamente o hino nacional. O fato me chamou a atenção o suficiente para que eu fosse até a varanda. De lá divisei grupos entusiasmados entoando o hino, alguns curiosamente perfilados em pose solene, como se tivessem a bandeira nacional tremulando à frente. Esta, aliás, não tremulava à frente desses grupos tomados de fervor nacionalista, mas tremulava em muitas das varandas e janelas que observei. Os jogadores brasileiros exibiram-se admiravelmente, venceram o jogo e a euforia atravessou sem exagero todas as nossas classes sociais de um extremo a outro do país.
Em contraste com esse espírito de autêntico orgulho nacional, de expressão de unidade cultural sobrepondo-se a divisões de classe e região, dois dias mais tarde vivemos o feriado que historicamente assinala nossa independência política. Preocupado em observar o fato cotejando-o com o precedente relativo à seleção brasileira, não deparei nenhuma expressão de autêntica e espontânea consciência nacional, nenhuma evidência coletiva de orgulho associado à nossa independência. A identidade cultural localizada por Mário de Andrade na inconsciência espontânea do povo parece emudecida durante o dia consagrado à independência política do Brasil. A julgar pela realidade visível, nosso sete de setembro é apenas um feriado qualquer que o brasileiro típico aproveita para desfrutar na praia ou dedicar ao lazer dissociado da memória histórica relativa à razão do feriado.
Mas o futebol compreendido como fator de unidade e identidade cultural justifica algumas ponderações que me parecem ainda mais relevantes do que tudo que acabo de anotar acima. Procedendo a um ligeiro exercício de imaginação sociológica, indago de mim para mim próprio qual seria a reação de um nacionalista empenhado na defesa de nossa identidade cultural se acaso vivesse na época em que o futebol começou a penetrar na nossa realidade cultural. Como sabemos, eis um fato importante para a maioria dos brasileiros, o futebol foi introduzido no Brasil por um inglês residente em São Paulo. Esporte de nacionalidade inglesa, o futebol chega à nossa terra no auge do colonialismo inglês, que de resto já dominava a economia brasileira há muito tempo. Ingressa no Brasil como esporte de elite, basta percorrer ligeiramente a iconografia relativa aos estádios de futebol nesse período inicial, e vai sendo gradualmente assimilado pelo povo. É um exemplo fascinante de assimilação cultural processado pela via do desnivelamento, como já nos ensinou Mário de Andrade. Se o jazz constituiu um exemplo de nivelamento, ascendendo de camadas negras socialmente marginalizadas para a elite, o futebol percorreu o percurso inverso.
Mas volto a nosso hipotético nacionalista paladino da identidade cultural. Seria razoável supor que no momento em que o futebol penetrava no Brasil ele reagisse indignado amparado no argumento da nossa autenticidade cultural, alegando provavelmente que o futebol não passava de um instrumento de dominação cultural imposto pelo colonialismo inglês. Falaria provavelmente em nome do povo, cuja integridade cultural precisaria ser por ele defendida, assim como no presente Ariano Suassuna e tantos nacionalistas e regionalistas generosos e abnegados o defendem. Infelizmente, o povo demonstra, mesmo quando tutelado politicamente, como é ainda fato no Brasil do século xxi, ser sujeito de determinados desejos e vontades. Assim, ignorando a alfândega cultural imposta por nosso intelectual nacionalista, foi se aproximando da bola de procedência inglesa, foi batendo bola aqui, mais adiante num terreno baldio, depois num campo de futebol e por fim chegou ao Maracanã, um dos palcos da universalidade futebolística. Como sempre ocorre em qualquer processo de empréstimo ou assimilação cultural, não adotou passiva ou mecanicamente o futebol. O que de fato fez foi adaptá-lo acrescentando-lhe sua ginga de corpo, seu modo próprio de assimilação. Sabem os entendidos, e neste assunto todo brasileiro é entendido, que nada afirmo aqui de original. Estou apenas repetindo com palavras próprias o que Gilberto Freyre e muitos outros intérpretes da cultura, nacionalistas ou não, já disseram bem antes de mim.
Mas o futebol representa no Brasil, além da unidade identitária acima argumentada, nossa maior fonte de orgulho nacional, até mesmo de arrogância nacional. Nem o avanço da globalização econômica e cultural, dissolvendo fronteiras e transportando jogadores através de nações, clubes e símbolos de paixão esportiva cada vez mais indeterminados, abala a estabilidade dessa potente raiz de orgulho e arrogância do brasileiro. O fato é que a globalização converteu a seleção brasileira numa autêntica legião estrangeira, como acertadamente observou Roberto Pompeu de Toledo. Os clubes competem agora em escala global e o jogador, apesar do costumeiro lero-lero nacionalista, quer antes de tudo fama e fortuna. Seu sonho é ir o mais cedo possível para a Europa, fazer vida e glória na Europa. Isso não anula o nacionalismo da torcida, que continua exaltando arrogante os triunfos da nossa legião estrangeira como se cada um daqueles heróis jogasse num clube nacional da nossa idolatria, mas confirma a prioridade objetiva da globalização do esporte.
Penso que as questões acima esboçadas merecem uma reflexão mais detida no momento em que o mundo inteiro acompanha a Copa do Mundo disputada na África do Sul. Ela constitui mais uma evidência da globalização que dissolveu as fronteiras do futebol. Quase todas as seleções competidoras têm de nacional apenas os símbolos estampados nas cores das camisas e no hino de cada seleção. Os jogadores e técnicos obedecem apenas ao critério do melhor contrato ou salário, acrescido da fama. Nossa legião estrangeira, que veste as cores do Brasil, é tão alheia ao cotidiano do nosso futebol que eu mesmo, apreciador deste esporte, desconheço vários dos atletas que nos representam. No entanto, a torcida brasileira, assim como a das demais nações, continua investindo paixão e sentimentos nacionais em símbolos globalizados pelo mercado. Esse fenômeno que no momento coloniza a imaginação das massas em escala global mais uma vez comprova o quanto a ideologia e a realidade objetiva se desencontram na história da cultura.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
Vida e Obra de Tom Bottomore
Tom Bottomore e William Outhwaite
Por William Outhwaite - Professor de Sociologia da Universidade de Newcastle, Inglaterra.
Artigo originalmente publicado em Idéias, Campinas, 5 (1) , pp. 155-72, jan/jun 1998. Agradecemos a Ricardo Antunes a permissão de reproduzí-lo no Cazzo.
Tom Bottomore, que faleceu em fins de 1992 aos 72 anos de idade, era um dos sociólogos britânicos mais conhecidos e admirados. Seus diversos livros foram lidos por todos, de especialistas a estudantes de primeiro ano, como um guia infalivelmente confiável para a disciplina e sobre a bibliografia relevante. Ele trouxe para a Sociologia britânica a preocupação com a teoria social - especialmente, mas de forma alguma exclusivamente, marxista - e com o que veio a ser chamado de Terceiro Mundo. Colocou em prática sua abordagem internacional, em muitos anos de trabalho paciente, no desenvolvimento da Associação Internacional de Sociologia, da qual foi presidente de 1978 a 1982.
Nascido em 1920, Tom Bottomore foi educado na cidade inglesa de Nottingham, onde se interessou pelo socialismo como um possível remédio contra a pobreza das comunidades mineiras de carvão, a depressão econômica e o surgimento do fascismo. Foi membro do Partido Comunista por um breve período e, em consequência disso, a este expert em pensamento social norte-americano nunca foi legalmente permitido visitar os Estados Unidos (ele viajou para lá ocasionalmente enquanto morava no Canadá, mas se recusava a completar os questionários especiais requeridos pelas autoridades americanas com a finalidade, como ele certa vez colocou, "de me espionar").
Estudando economia enquanto engajado no serviço de guerra em Londres, Tom Bottomore foi designado para trabalhar no serviço de administração militar britânico na Viena do pós-guerra, cidade da qual ele veio a gostar muito e onde trabalhou na produção de estatísticas econômicas. De volta ao Reino Unido, estudou Sociologia na London School of Economics com o sociólogo evolucionista Morris Ginsberg, defendendo uma tese sobre teorias do progresso. Passagens do seu diário datando desta época mostram que tinha poucas ilusões a respeito do Estalinismo, mas que também estava impaciente com o anticomunismo radical de alguns dos professores da LSE: "Eu cheguei à conclusão de que muitos daqueles que gritam mais alto contra o comunismo estariam entre os primeiros a se acomodar a ele e a buscar posições na hierarquia" [1]. Ele não levava muito a sério Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, publicado em 1948: "Dêem-me críticas sérias acerca do sistema soviético a qualquer hora". Também é dele a piada imortal que diz que, embora seja possível construir o socialismo em um país, é aconselhável morar fora dele enquanto o processo estiver em curso.
A fim de continuar seus estudos em "sociologia, economia, filosofia e literatura" [2], Tom Bottomore recebeu uma bolsa da Fundação Rockefeller. Seu " passado comunista", no entanto, impediu que estudasse nos Estados Unidos, mas foi permitido que usufruísse da bolsa em Paris. Ele e sua futura esposa, Mary, viveram e trabalharam em Paris de 1951 a 1952. Tom continuou seus estudos em teoria marxista e em cooperativas de trabalhadores, assim como conduziu um projeto de pesquisa sobre o serviço público francês [3].
Sua coletânea de Marx, Selected Writings on Sociology and Social Philosophy, editada com Maximilien Rubel, data deste período (1956), e talvez continue sendo a melhor introdução a Marx em língua inglesa. Também publicou, em 1963, uma tradução editada dos trabalhos do jovem Marx (Early Writings). Retornando para a LSE, Tom foi secretário da Associação Internacional de Sociologia de 1953 a 1959, quando viajou extensivamente pela Europa e organizou uma conferência da UNESCO em Moscou, em 1958. Seu importante livro Classes in Modern Society foi publicado em 1955, com novas edições em 1965 e 1991. Uma viagem de seis meses à Índia fez com que seu livro Sociology tenha sido substancialmente dedicado a este país, mostrando uma grande sensibilidade em relação a questões de desenvolvimento global, de forma geral rara na Sociologia Britânica da época. A isto seguiu-se o excelente Elites and Society (Elites e Sociedade) (1964, segunda edição em 1993), que Tom descreveu em seu diário como sendo talvez seu livro preferido.
Entre 1965 e 1967, Tom ensinou na recém-criada Simon Fraser University, em Vancouver, Canadá. Embora gostasse de lá, eventualmente se irritou com o radicalismo do campus à época e foi desencorajado a ficar mais tempo devido a um desagradável clima de interferência política na universidade por parte de interesses comerciais, dentre outros. Seus programas de rádio, seguindo a tradição do radicalismo norte americano, foram publicados em 1967 com o título de Critics of Society. Neste mesmo ano, Tom retornou à Inglaterra e foi para outra nova universidade, a Universidade de Sussex, em Brighton, onde permaneceu, exceto por curtos períodos no Canadá, até se aposentar. Presidente da British Sociological Association de 1969 a 1971, também foi Vice-Presidente da Associação Internacional de Sociologia e diretor do seu conselho de pesquisa, em cujo papel desenvolveu importantes atividades de publicação.
Tom publicou muito: a uma coleção de ensaios sobre Karl Marx (1973) seguiu-se o seu Modern interpretations of Marx (1981), o livro Marxist Sociology (1975), seus ensaios em Sociology as Social Criticism (Sociologia como Crítica Social) (1975) e Sociology and Socialism (1984), um inestimável volume editado com Patrick Good intitulado Austro-Marxism (1978) e um brilhante livro introdutório, Political Sociology (1979, 2° edição em 1993). No início dos anos 70, trabalhou na tradução do Philosophie des Geldes de Georg Simmel, completada por David Frisby e publicada em 1978. Também retraduziu Finanzkapital, de Rudolf Hilferding (1991) e, comigo, retraduziu o ensaio clássico de Karl Lowith, Max Weber and Karl Marx (1982, 2a edição em 1993). Os anos 80 ainda testemunharam a finalização do seu notável Dictionary of Marxist Thought (Dicionário do Pensamento Marxista) (1983, 2° edição em 1991) e o início, em 1986, do nosso trabalho conjunto no Blackwell Dictionary of Twentieth Century Social Thought (Dicionário do Pensamento Social do Século XX), publicado logo após a sua morte.
Após publicar The Frankfurt School (1984), um pequeno livro grandemente admirado na Alemanha e no mundo de língua inglesa, Tom voltou-se cada vez mais para a sociologia econômica com Theories of Modern Capitalism (1985), The Socialist Economy: theory and practice (1989), e a obra de Schumpeter — em particular Between Marginalism and Marxism: the economic sociology of J.A. Schumpeter (1992). Ele também editou, com Robert Brym, uma importante coleção de ensaios sobre o capitalismo, The Capitalist Class (1989). Esta impressionante produção se acelerou com a aposentadoria de Tom da Universidade de Sussex em 1985, a qual pareceu acolher de bom grado: "Como é bom estar agora absolutamente livre". Uma coletânea de ensaios em sua homenagem, baseados em uma conferência organizada em Sussex por Gillian Rose que contou com a participação de ex-alunos e colegas, intitula-se Social theory and Social Criticism (1987).
No fim de 1986, veio um golpe devastador com a notícia da doença e morte de sua esposa, Mary. Em 1987, Tom gradualmente recomeçou a trabalhar, fazendo a primeira de uma série de visitas à Espanha. Nestes anos, viajou muito à Espanha e à Grécia, e ficou cada vez mais interessado no curso político do sul da Europa, dando início ao seu trabalho na revista Socialismo dei Futuro. No outono do mesmo ano, Brian Taylor e eu o entrevistamos para a revista Theory, Culture and Society (6, 2, 1989, p. 385- 402).
Após publicar estes diversos projetos, notadamente as novas edições de Elites and Society, Classes e Political Sociology, Tom começou a trabalhar em dois livros: um sobre o conceito de planejamento, tópico que sempre lhe interessou, outro sobre democracia socialista, que começou a escrever em outubro de 1992 e no qual trabalhou até sua morte súbita, no dia nove de dezembro. Este manuscrito, que teria sem sombra de dúvida se transformado em um dos livros mais importantes de Tom, exemplifica seu modo de escrever. O que nós encontramos, juntamente com pilhas de livros, revistas e cópias de artigos, foi um primeiro capítulo e as páginas iniciais de um segundo, escritas com apenas pequenas correções, terminando no meio da seguinte frase, particularmente dolorosa, talvez, para os seus leitores russos: Kautsky, Tom escreveu, "previu muito claramente o processo pelo qual a revolução bolchevique degeneraria numa ditadura de partido".
* * *
Tom Bottomore foi um acadêmico, professor, colega e amigo extraordinário. Sua influência pessoal e a de sua obra foi imensa e se espalhou pelo mundo, embora tenha sido marcada por restrições consideráveis. Tom nunca procurou fundar uma escola. Seus ex-alunos de pós-graduação permaneceram heterogêneos em suas orientações intelectuais e políticas; no fim de sua conferência de aposentadoria disse, com uma risada característica, que estava feliz porque nem todos nós nos tornamos marxistas. Uma nota em um artigo de novembro de 1949, escrita após ter conhecido um homem que havia exaltado exageradamente um colaborador, mostra que seu desdém pela condição de "discípulo" se estabeleceu cedo em sua carreira:
Desde a primeira conversa ficou evidente que o que ele quer é um discípulo (...) Choca-me cada vez mais saber, por um lado, o quão difundida é a condição de ‘discípulo’, por outro, o desejo de alguns em impor sua própria doutrina (...) De minha parte, decidi nunca levar minhas próprias crenças e teorias muito a sério e estar sempre pronto a admitir o erro, não pertencer a nenhuma organização de ideologia rígida, nunca me submeter ao dogma e escrever de forma evasiva, mas não obscura. Mas não viver à deriva; existem alguns valores fundamentais aos quais eu me apego, como o valor basicamente igual das pessoas, sua liberdade (portanto a oposição às hierarquias, ao despotismo).
Algumas vezes Tom sentiu o complexo de inferioridade característico dos cientistas sociais, mas a passagem seguinte (23/1/88) o retrata em um tratamento positivo desta questão:
Assisti a um excelente drama-documentário da BBC sobre Crick, Watson et al. e a descoberta da estrutura do DNA, o que me levou a reler The Double Helix e a refletir sobre quão pouco pode ser descoberto nas ciências sociais. Eu pensei nisto particularmente porque Watson estava morando cm Paris em abril de 1952, na época em que Mary e eu estávamos morando lá, e novamente em março de 1953, logo após a descoberta. E o que eu estava descobrindo? No máximo, um novo aspecto importante de Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que depois ajudei a difundir no mundo de língua inglesa. Mas pelo menos há um resultado positivo no reconhecimento da imperfeição das ciências sociais (e minha pequena contribuição a elas): nomeadamente que, assim como nas ciências naturais, o que importa é descobrir algum tipo de estrutura (como Marx, acima de todos, fez), mesmo que ela seja sempre mais vaga, dúbia, etc. Sem isto, tudo é reduzido ao jogo de palavras, aos comentários inteligentes, à exposição de uma ideologia, e assim por diante.
Eu acredito que Tom não afirmaria ter descoberto nenhuma estrutura completamente nova, mas seu trabalho consistia, acima de tudo, na ordenação e mediação de modelos conceituais e estruturas já existentes: entre teoria das classes e teoria das elites, entre o marxismo e (o restante da) Sociologia e, em particular, entre o marxismo e a realidade contemporânea. A capacidade de organização que pode ser observada, por exemplo, em seus verbetes belamente elaborados para os dois dicionários da Blackwell, também era central ao seu método de ensino: em uma série de movimentos ágeis mas sem pressa, o projeto meio formulado de alguém adquirira uma estrutura conceitual clara, acompanhada de seu aparato bibliográfico.
Tom era tudo, menos um marxista ortodoxo. Quando lhe perguntei, na entrevista para a Theory, Culture and Society se ele "acreditava" na dialética, respondeu que nunca havia realmente entendido o que o termo significava. Para ele, o marxismo era uma teoria sociológica e um projeto político, mas a eficácia de cada um deveria ser julgada no campo, na prática - incluindo, embora eu esteja certo de que ele detestava o termo, aquilo que Althusser chamava "prática teórica". Menos ortodoxa ainda, embora antecipada no marxismo neo-kantiano dos marxistas austríacos, era a insistência de Tom na distinção fato/valor. Era, em vários sentidos, um marxista austríaco honorário, atraído pela sua combinação de rigor econômico, sensibilidade política e abertura e flexibilidade teóricas. Embora simpatizasse com o trabalho de filósofos marxistas amigos, como Roy Edgley, István Mészáros e Roy Bhaskar, não se comprometeu com esta linhagem.
Hoje é difícil lembrar quão pouca teoria sociológica era estudada na Grã-Bretanha nas décadas imediatamente seguintes à guerra. O trabalho de Tom sobre Marx, iniciado nos anos 60, juntamente com o fantástico livro de Steven Lukes sobre Durkheim (1973), ou o livro de Giddens que veio a ser conhecido como a santíssima trindade de Marx, Weber e Durkheim, Capitalism and Modern Social Theory (1971), eram incomuns, no sentido de lidarem seriamente com a teoria social clássica. O marxismo, em particular, apesar do importante trabalho que vinha sendo feito em história marxista e em teoria literária, parecia ser encarado como pouco mais que a inspiração ou o ornamento intelectual do comunismo soviético. Foi obviamente a experiência em Paris no início dos anos 50 que ensinou a Tom que havia muito mais em Marx, tanto como objeto de estudo, quanto como um guia para a reflexão contemporânea (olhando para seus livros após sua morte, eu me surpreendi com a quantidade de textos marxistas franceses que recebiam um lugar de honra nos seus estudos, juntamente com o Marx-Engels-Werke).
Entretanto, a difusão e renascimento da teoria social marxista, que foi talvez o principal feito de Tom na Grã-Bretanha, era apenas a parte dominante de um impulso mais amplo em desprovincializar a Sociologia britânica, tanto nos seus recursos teóricos, quanto nas suas preocupações substantivas. Tom era provavelmente mais feliz quando trabalhava fora da Grã-Bretanha, e seu internacionalismo e Wanderlust prático e intelectual garantiram-lhe um lugar estratégico entre os grandes imigrantes que moldaram substancialmente a Sociologia britânica na segunda metade do século vinte: Norbert Elias, Ralf Dahrendorf, John Rex, Ilya Neustadt, Stuart Hall, Zygmunt Bauman e muitos outros. Na época em que retomou à Grã-Bretanha, em 1967, as portas intelectuais e políticas que havia se esforçado por abrir estavam amplamente abertas, representando um período de reconstrução teórica parcialmente inspirado pela situação política vigente. Tom era agora, como já havia sido na Simon Fraser, um agente de influência moderada e também radical que apontava as afinidades entre o marxismo e outras variantes de teoria social e que defendia o trabalho intelectual sério contra a acusação de elitismo.
No início dos anos 90, o pêndulo havia balançado mais uma vez, e uma das últimas aparições de Tom em público foi numa conferência organizada pelos estudantes da Universidade de Sussex sobre os prospectos do pensamento e da política radicais nos anos 90. Argumentando contra o título da sessão, "Pós-Marxismo e Democracia Social", Tom lançou uma defesa vigorosa do marxismo como uma teoria social que oferece uma análise do desenvolvimento e estrutura de classe do capitalismo e de algumas das pré-condições do socialismo, o qual continuou a enxergar como um projeto possível e desejável. Seus livros sobre democracia socialista e planejamento teriam, sem dúvida, desenvolvido este tema.
Neste sentido, enquanto o trabalho de Tom exibe uma consistência impressionante, seus efeitos devem ser entendidos a partir dos contextos históricos cambiantes, na Grã-Bretanha e alhures. Na parte seguinte deste artigo enfocarei sua concepção de socialismo, tal como desenvolvida do final dos anos 30 ao início dos anos 90.
* * *
Conforme mencionei anteriormente, a orientação política da juventude de Tom foi "influenciada pela pobreza que vi ao meu redor nas vilas de mineração, pela ascensão do fascismo e pela Guerra Civil Espanhola, pela aproximação óbvia de uma guerra mais geral e pelas práticas lamentáveis da classe dominante britânica, dentre outras". Para Tom, assim como para muitos outros de sua geração, o serviço militar, durante e imediatamente após a guerra, proporcionava uma oportunidade para a leitura e a reflexão: "Deve ter sido no período 1943/44 que eu realmente juntei a economia e o marxismo naquilo que mais tarde veio a ser a sociologia marxista". Em novembro de 1949 - Tom recordou - escreveu um ensaio sobre socialismo e federalismo, ao qual se seguiram discussões em Valence, na França, com os federalistas europeus. Ele escreveu, na época: "Quanto mais leio e descubro, menos tenho certeza de como o socialismo vai funcionar (dado o exemplo soviético) ou, caso venha a funcionar bem, se nos satisfaria. Portanto, seja modesto em minha defesa".
Num extrato de uma revista citada anteriormente, de novembro de 1949, Tom lembrou sua adesão a "alguns valores fundamentais (...) como a igualdade básica das pessoas, sua liberdade (portanto a oposição às hierarquias, ao despotismo)". No capítulo final da primeira edição de Elites and Society, livro que, como Ettore Albertoni escreveu, "centra sua análise no ponto no qual as tendências políticas deste século se entrecruzam", ele oferece uma crítica restrita, porém vigorosa, do anti-igualitarismo da teoria das elites. A democracia, ele observa,
(...) implica em que deveria haver um grau substancial de igualdade entre os seres humanos, tanto no sentido de que todos os membros adultos de uma sociedade devem ter, tanto quanto possível, uma influência igual naquelas decisões que afetam aspectos importantes da vida em sociedade, quanto no sentido de que as desigualdades de riqueza, de posição social ou de educação ou acesso ao conhecimento, não deveriam ser tão grandes a ponto de resultarem numa subordinação permanente de alguns indivíduos e grupos a outros em nenhuma das várias esferas da vida social, ou de criarem grandes desigualdades no exercício tios direitos políticos. (Elites and Society, 2a edição, 1993, p. 101).
O argumento para a igualdade baseia-se no fato de que as diferenças naturais entre os indivíduos são relativamente insignificantes, comparativamente às suas características e necessidades em comum, de que desigualdades sociais e naturais são distintas e, portanto, de que um compromisso com a igualdade ou com a desigualdade é uma questão de ideais sociais ou morais. Para os igualitaristas,
(...) a justificativa última para a nossa opção não é, em si, uma questão de fato, mas o argumento razoável de que a busca da igualdade é passível de criar uma sociedade mais admirável. Ao usar o termo 'nós', eu me refiro particularmente às pessoas que vivem nas sociedades do século XX; era difícil, em qualquer outra época anterior, formar uma concepção de sociedade igualitária prática e durável, dada a insegurança da vida econômica, a ausência de meios efetivos de comunicação, a inadequação da educação e a falta de conhecimento acerca da estrutura social e do caráter individual. O século XX é único no sentido de oferecer, pela primeira vez, a oportunidade de moldar a vida humana de acordo com os desejos humanos, sendo, por esta razão, tanto cheio de esperanças quanto terrível. (p. 102-103)
Conforme Michels e outros teóricos da teoria das elites enfatizaram, Marx não previu "a possibilidade de que, dadas certas circunstâncias, novas distinções sociais e uma nova classe dominante pudessem emergir na sociedade que sucedesse o capitalismo (...) e uma nova força foi dada às suas críticas com as experiências da União Soviética e dos países europeus que se encontravam sob o domínio de Stalin" (p. 107). Mas isto não exclui a possibilidade de uma sociedade igualitária mais descentralizada, que tentaria mitigar as tendências autoritárias e hierárquicas que resultam tanto do capitalismo quanto das economias coletivizadas e, de fato, do industrialismo em si (p. 108-111). Os teóricos da teoria das elites apoiam-se na noção de igualdade das oportunidades, mas isto é "auto-contraditório":
Igualdade de oportunidades, como a expressão é habitualmente empregada, pressupõe desigualdade, dado que 'oportunidade' significa 'a oportunidade de se ascender a um nível mais alto em uma sociedade estratificada'. Ao mesmo tempo, ela pressupõe igualdade, já que a noção implica em que as desigualdades embutidas nesta sociedade estratificada têm de ser contestadas a cada nova geração, de forma que os indivíduos possam desenvolver realmente suas habilidades pessoais; e cada nova investigação acerca das condições de igualdade das oportunidades, por exemplo, na esfera da educação, tem mostrado o quão forte e persuasiva é a influência das distinções de classe nas oportunidades individuais. Igualdade de oportunidades tornar-se-ia realidade apenas numa sociedade sem classes e elites, e a noção em si tornar-se-ia inútil, dado que as oportunidades iguais dos indivíduos em cada geração seriam uma questão de fato, e a ideia de igualdade de oportunidades significaria, não a luta para ascender a uma classe social mais alta, mas a possibilidade de cada indivíduo em desenvolver completamente aquelas qualidades do intelecto e da sensibilidade que ele ou ela apresentam como pessoa, numa associação irrestrita com os outros. (p. 177).
Tom reformulou esta mensagem igualitária em termos globais em "Capitalism, Socialism and Development", no livro Sociology as Social Criticism. Depois de questionar "até que ponto as políticas de desenvolvimento dos países comunistas poderiam (...) constituir uma alternativa real, no sentido de uma alternativa socialista, à expansão do capitalismo" (p. 67), e de levantar a questão de "como acessar o potencial socialista de sociedades nas quais a propriedade pública dos principais meios de produção e um certo grau de planejamento socialista são associados a um sistema político autoritário e frequentemente repressivo" (p. 68), Tom conclui nos seguintes termos:
Existem muitos caminhos para o desenvolvimento, assim como existem diversos caminhos para o socialismo. O que me parece ser a característica mais universal é a força da busca pela igualdade, que agora se ampliou de sua fonte nas sociedades capitalistas do século XIX para envolver a humanidade como um todo (...) Por trás da preocupação com o desenvolvimento e com as relações entre as nações pobres e ricas existe (...) o problema fundamental da igualdade humana; apenas na medida em que este problema é debatido em todas as suas ramificações, e as escolhas políticas são formuladas em relação a ele, é que políticas práticas e efetivas para o desenvolvimento global serão possíveis (p. 70 e segs.).
No ensaio final do livro, "The Prospect for Radicalism", originalmente escrito para o livro em homenagem a Erich Fromm acerca dos movimentos revolucionários de 1968 no Ocidente, Tom calmamente nota a fraqueza de qualquer visão positiva
(...) no pensamento radical contemporâneo. Se nós procurarmos a razão para esta fraqueza, dificilmente deixaremos de concluir que ela se deve à desilusão com o socialismo, que começou no final dos anos 30 e se intensificou com a versão soviética de socialismo, desde o final da guerra, passando pelos anos finais do terror estalinista, até a Realpolitik da ocupação militar da Tchecoslováquia. Pensadores radicais agora devem criticar tanto o capitalismo quanto o socialismo como formas existentes de sociedade, e eles quase sempre são tentados a dirigir sua crítica principal contra o industrialismo em si. A ideia de uma forma alternativa de sociedade torna-se fraca e nebulosa, dado que o que era antes um ideal - o socialismo - agora existe como uma realidade problemática. O que nós devemos fazer para remediar esta situação, coisa que alguns já estão fazendo, é repensar o socialismo, tanto em termos das instituições apropriadas para uma sociedade igualitária, quanto dos movimentos sociais e ações políticas que são capazes de gerá-la, sem que haja o desfiguramento sofrido em função da violência e da repressão. (p. 221).
Alguns anos mais tarde, num ensaio intitulado "Socialism and the Working Class", publicado em The Socialist Idea: a reappraisal (London: Weidenfeld & Nicholson, 1974) de Leszek Kolakowski e Stuart Hampshire, e mais tarde republicado em Sociology and Socialism (1984), Tom tirou algumas conclusões a partir de uma frase do Kritische gesellschafistheorie und positivismus, de AIbrecht Wellmer, segundo a qual "já que a história destruiu completamente qualquer esperança acerca de um 'mecanismo' de emancipação com base na economia" (Critical Theory of Society, New York: Herder & Herder, 1971, p. 121), então os processos estruturais são relativamente mais importantes. Foram três as conclusões de Tom. Primeiramente, "que o período de gestação de uma sociedade socialista será provavelmente muito mais longo que o previsto pelos primeiros socialistas, incluindo Marx". Em segundo lugar, que "as atividades dos intelectuais, dos críticos da sociedade e da cultura provavelmente tornar-se-ão mais proeminentes no movimento rumo ao socialismo".
'Em terceiro lugar (...) que não apenas não existe um 'mecanismo' de emancipação com base na economia, mas tal 'mecanismo' não existe de forma alguma. Nós temos que desistir do elemento, presente no marxismo e em outras teorias socialistas, que nos leva a conceber a transição do capitalismo para o socialismo como uma necessidade histórica. O socialismo é apenas um futuro possível. Todas as experiências do século XX mostram quão variados são os obstáculos que o movimento pelo socialismo deve enfrentar - a concentração de poder político em um partido ou burocracia (que se desenvolve mais facilmente onde existe propriedade pública de empresas de grande porte), a obsessão com o crescimento econômico que corrompeu o pensamento socialista em si, o rápido crescimento populacional e a concentração urbana, a grande desigualdade entre as nações e a extensão da rivalidade e do conflito que derivam dos sentimentos e interesses nacionais.
Pode ser que a palavra 'socialismo' tenha sido tão corrompida pelas suas associações com os regimes autoritários, com o planejamento centralizado, com a busca obsessiva de inovação tecnológica e crescimento econômico, que ela não seja mais adequada para descrever os objetivos dos movimentos de liberação no final do século XX. Mas até que um novo termo seja encontrado, nos temos que nos satisfazer com este, apenas tomando o cuidado de interpretá-lo sempre de maneira a exprimir adequadamente a ideia de liberação; isto é, a criação de uma ordem social na qual existe a máxima igualdade de acesso possível, por parte de todos os seres humanos, a recursos econômicos, ao conhecimento e ao poder político, e na qual a mínima dominação possível seja exercida por qualquer indivíduo ou grupo sobre qualquer outro. (p. 189 e segs.).
No ensaio introdutório ao mesmo volume, intitulado "On the Relatíon Between Sociology and Socialism", assumiu o mesmo tom cauteloso. Após examinar as relações históricas e conceituais entre Sociologia e socialismo, conclui que
(...) os dois pertencem a esferas bastante distintas. O socialismo, como pensamento e ação, deriva de interesses e valores políticos; a Sociologia, como uma forma de conhecimento, de valores científicos. No entanto, a Sociologia, como outras ciências (e especialmente as ciências sociais), é necessariamente desenvolvida em um meio impregnado de valores políticos e pode, legitimamente, ser guiada por uma visão socialista que tem um certo papel na definição tanto da imagem da sociedade e da natureza humana, quanto dos seus principais temas de questionamento.
Numa sociedade aberta, democrática e socialista, assim como em uma sociedade capitalista, a Sociologia teria um papel importante (e com toda probabilidade um papel mais importante) como instrumento de investigação crítica das relações sociais reais e dos seus desenvolvi¬mentos. Seu lema mais apropriado, como disciplina científica, seria o favorito de Marx: De omnibus dubitandum (p. 9-10).
Na época em que Sociology and Socialism foi publicado, Tom estava trabalhando em The Frankfurt School, embora estivesse claramente ansioso por "descer" a tópicos mais substantivos, como os que tratou depois em Theories of Modern Capitalism e The Socialist Economy. Neste último livro, reitera, com mais detalhes, suas críticas anteriores à maneira pela qual a teoria e a prática socialista tornaram-se excessivamente preocupadas com as questões econômicas:
Uma economia socialista é apropriada a uma sociedade socialista; a racionalização da produção, com a finalidade de se alcançar um fluxo crescente de bens materiais, não deve ter prioridade absoluta, independente de considerações a respeito de, por exemplo, condições e jornada de trabalho, meio ambiente e depredação de recursos naturais, ou se aquilo que é produzido altera de forma positiva a qualidade de vida e o nível da civilização. (p. 6).
Enquanto rejeita a afirmação de Schumpeter, em Capitalism, Socialism and Democracy, de que o socialismo é tão "indeterminado culturalmente" que só pode ser especificado em termos econômicos, enfatiza a diversidade dos socialismos possíveis. "O socialismo, assim como qualquer atividade ou forma de vida humana, é um fenômeno histórico, e ninguém pode fingir prever de maneira racional como ele vai evoluir (...)" (p. 7). No final do Capítulo l, no artigo The Nineteenth Century Vision", ele escreveu:
"Ao acessar a restruturação e reavaliação atual do socialismo, nós não precisamos adotar nenhuma de duas posições extremas: uma que se apega obstinadamente à ideia de uma transformação milagrosa da sociedade e da natureza humana 'no dia seguinte à revolução'; outra, que rejeita, juntamente com qualquer visão utópica, quase que o passado inteiro, com o intuito de se acomodar àquilo que parece possível, seja no longo ou no curto prazo. Nem devemos temer as reformas e posturas críticas que ocorrem agora, ou as interpretar como sintomas de uma crise profunda e talvez terminal. O socialismo, assim como o capitalismo, é um fenômeno histórico, sujeito a todos os tipos de mudanças e processos de desenvolvimento e decadência, e toda geração encontra novas situações, problemas e oportunidades - em grande parte herdados do passado, certamente - com os quais têm de lidar da maneira mais inteligente e resoluta possível. Ninguém pode prever exatamente que tipo de mundo os seres humanos habitarão daqui a cem anos, se eles ainda tiverem um mundo para habitar, mas ao menos nós podemos ter confiança, eu acho, em que a visão de socialismo do século XIX tornou-se uma parte duradoura dos acessórios da mente humana e em que a ideia e a prática do socialismo permanecerá efetiva por um longo tempo, não importa o quão modificada por novas experiências.
Tom não previu o colapso súbito dos regimes socialistas dos estados europeus quando escreveu em 1988 e no início de 1989, mas notou a conjuntura de sérios problemas económicos e políticos (p. 68) e a "possível (...) emergência de forças influentes pró-capitalistas que tendem à restauração, ou à restauração parcial, do capitalismo" (p. 72). Ele previu e esperou uma transformação mais moderada, que envolvesse a democratização política e a descentralização dos processos decisórios econômicos e na qual a propriedade dos recursos produtivos e a mistura precisa de mercados e planejamento pudesse ser elaborada de maneira prática e racional.
Tom não comentou sobre estas revoluções de 1989 em seu diário, embora tenha anotado, em junho de 1990, que pôde adicionar alguns comentários sobre estas mudanças à nova edição de Classes in Modern Society. Registrou que uma característica particularmente deprimente da situação atual era "a destruição do socialismo em grande parte da Europa do Leste (não apenas do stalinismo, que já estava vencido há muito, mas de qualquer tipo de socialismo democrático)". Numa análise de longo alcance sobre as estruturas emergentes das sociedades pós-comunistas, Tom escreveu:
Os movimentos nacionalistas c o retorno ao capitalismo são em grande medida compreensíveis como uma reaçâo contra quatro décadas (e mais tempo na União Soviética) de regimes autocráticos, stalinistas e neo-stalinistas, os quais fatalmente mancharam a ideia de socialismo. Mas o nacionalismo e o neo-capitalismo produzirão novos conflitos, ou restaurarão antigos, e nestas novas sociedades capitalistas a política de classes também ressuscitará. A transformação das sociedades do leste europeu (...) reintroduz (...) todos os problemas e conflitos que advêm de desigualdades de renda e riqueza, de dominação de classe, flutuação e inseguranças económicas e desemprego generalizado. (Classes, p. 97-98).
Como notou em The Socialist Economy, quando a restauração do capitalismo parecia apenas uma remota possibilidade, esta evolução destrói a noção marxista original de um movimento unidirecional e irreversível para o socialismo (Classes, p. 98; The Socialist Economy, p. 72): "Mas o principal elemento da obra de Marx era uma análise realista das origens do capitalismo e do seu desenvolvimento posterior, da origem do movimento da classe trabalhadora, dos conflitos crescentes entre as classes. E este é o tipo de análise que ainda deve ser efetuado, em novas condições." (Classes, p. 98). Termina o livro com o mesmo tom cauteloso de muitas das passagens citadas anteriormente:
(...) Existe, neste fín de siècle, uma confusão de imagens sobre o futuro. As demandas de grupos e indivíduos por maior igualdade de condições e por mais democracia, especialmente no sentido de uma maior participação em todos os processos de 'produção da sociedade', ainda são fortes. Mas serão estas demandas satisfeitas? A experiência dos países socialistas mostrou que o caminho para uma sociedade 'sem classes' não é nem direto nem tranquilo, e que as novas classes e elites, assim como os regimes ditatoriais, podem muito bem aparecer no caminho. Então, tornou-se relativamente fácil apresentar as vantagens de um capitalismo dinâmico e democrático, apesar de suas desigualdades e incertezas econômicas gritantes; e concomitantemente mais difícil esboçar, em termos que sejam apropriados para o tempo presente, a estrutura de um novo tipo de sociedade. A oposição de interesses de classes nas sociedades capitalistas - entre os proprietários de capital e os sem propriedade, os poderosos e os subordinados, 'aqueles que vivem na luz e aqueles que vivem na escuridão' - não mais se manifesta de maneira tão evidente nos conflitos de classes, e a expressão política futura destes interesses dependerá, mais crucialmente que antes, da forma em que uma alternativa para o capitalismo seja concebida e implementada, num processo gradual através do debate critico e à luz da experiência de políticas diferentes. Isto é necessário, acima de tudo, em relação à estrutura econômica de uma sociedade socialista. (p. 110-111).
Em um dos últimos trabalhos que completou, a segunda edição de Political Sociology, Tom conclui com as seguintes palavras:
(...) em toda teoria social científica existe um componente que Schumpeter chamou 'visão', mas que também poderia ser descrito como as ideias de fundo de um paradigma, que influencia na determinação do foco de atenção e na escolha dos elementos centrais de análise. A interpretação da política global que eu desenvolvi aqui deriva em parte de tal paradigma, no qual enfatizo a importância, ao longo do século XX, da oposição entre o capitalismo e o socialismo e, mais geralmente, entre aqueles processos e políticas que levam, ou ao aumento, ou à diminuição das desigualdades em suas diversas formas nas sociedades e no mundo como um todo. A importância desta oposição será enfatizada, eu acredito, se os movimentos socialistas do futuro forem capazes de expressar de maneira mais precisa, convincente e espirituosa, suas concepções de uma economia alternativa viável e de uma nova ordem social em escala mundial, como um ideal realístico que pode ser abordado gradualmente em circunstâncias variáveis. (p. 109).
A versão de socialismo de Tom não era, portanto, nem a de um fundamentalista, nem a de um realpolitiker; era cautelosa, falibilista e aberta a novos insights dos pensamentos feminista e ecológico. Seu socialismo era alimentado por um impulso igualitário que chamava a atenção de todos os que o conheciam como sendo um elemento central de seu estilo pessoal. Como muitos no Ocidente, ele era levado por uma preferência plenamente racional para o socialismo descentralizado baseado na autogestão, em detrimento de uma centralização estatal que apostava, mais do que poderia ser justificado, no sistema Iugoslavo e nos prospectos de uma revolução semelhante no Leste Europeu e na União Soviética. Mas ele nunca percorreu o caminho fácil, de muitos socialistas ocidentais, de descartar o "socialismo existente" como algo sem nenhuma relevância para seus projetos intelectuais e políticos. Nisto, assim como em muito mais, permaneceu completamente lúcido e honesto, comprometido com as vocações tanto da ciência quanto da política.
Notas
[1] Sou extremamente grato a Katherine, Eleanor e Stephen Bottomore por terem lido e comentado um rascunho deste artigo e por sua permissão em citar o diário pessoal de Tom.
[2] Diário, introdução à seçao 1949-50: Tom cultivou um grande interesse por filosofia, assinando dois periódicos filosóficos, e por literatura, especialmente pelos trabalhos de Robert Musil e Virginia Woolf.
[3] "La mobilité sociale dans la haute administration française", Caiher Internationaux de Sociologie, vol. 13, 1952.
terça-feira, 15 de junho de 2010
Desapropriação da Tamarineira
Sobre a desapropriação, ir para:
http://www.recife.pe.gov.br/2010/06/05/joao_da_costa_e_populacao_comemoram_preservacao_da_tamarineira_172202.php
sábado, 12 de junho de 2010
terça-feira, 8 de junho de 2010
domingo, 6 de junho de 2010
Israel, Davi e Golias
Luciano Oliveira - Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.
O mundo ocidental, do qual nós brasileiros fazemos parte, descende culturalmente tanto da fé de Moisés quanto da fé de Cristo. É a famosa tradição judaico-cristã. A prova a que Deus (ou Iavé) submeteu Abraão, os Dez Mandamentos ditados no Monte Sinai, os julgamentos de Salomão e tantas e tantas histórias que ouvimos na infância - ou vimos nas produções bíblicas de Hollywood, por que não confessar? -, da mesma maneira que o sangue escorrendo da testa de Jesus na noite que antecedeu o seu Calvário -, tudo isso faz parte da nossa sensibilidade e da nossa formação. Nesse sentido, somos todos um pouco judeus. E é nesse espírito que escrevo alguma coisa sobre os recentes acontecimentos no Mar Mediterrâneo, quando Israel, para reprovação mundial, atacou um barco em missão humanitária indo em direção a Gaza, para furar o bloqueio que o estado judeu lhe impõe desde que o grupo hamas chegou ao poder naquele território.
Uma das histórias bíblicas mais fascinantes é a do combate entre Davi e Golias. Como a maioria - para não dizer a quase totalidade - dos meus leitores, não sei direito quem era Golias. Sabemos apenas que era um gigante, e que no combate entre ele e o pequeno Davi, nossa simpatia vai para o pequeno. Essa é uma verdade universal: numa briga entre desiguais, tendemos a simpatizar com a parte mais fraca, nem que seja por um sentimento inato de compaixão. A Bíblia, o livro dos livros, dá forma ao que é um dos arquétipos que nos definem como humanos. Acho que essa é uma das razões pelas quais tanta gente razoável e de boa vontade mundo afora, mesmo repudiando os ataques terroristas de que cidadãos israelenses são vítimas rotineiras, são capazes de compreender os atos homicidas - mas ao mesmo tempo suicidas, é bom lembrar - dos homens-bombas.
É por isso que acho desgastante e inútil discutir se Israel, exercendo um suposto direito de autodefesa preventiva, tinha ou não o direito de abordar o navio manu militari; e se tinha, se o fez de forma desastrada etc. etc. etc. Esse é um debate que não levará a nada. A realidade contra a qual se insurgiu o navio, e contra a qual se insurge de um modo geral a opinião pública mundial hoje em dia, é o pezão de Golias no pescoço de Davi! É o bloqueio da faixa de Gaza, um ínfimo pedaço de terra onde vive apinhada uma população de mais de um milhão de palestinos - e que vai se tornando cada vez mais um imenso favelão; é um muro de contenção ao terrorismo que sai fatiando a Cisjordânia e, na prática, engolindo faixas de terra que serão um dia subtraídas a um futuro estado palestino; é a política criminógena (para não dizer simplesmente criminosa, porque está se lixando para as repetidas condenações da comunidade internacional) da construção de assentamentos judeus nessa mesma Cisjordânia - os quais, dentro da mesma lógica expansionista, serão um dia anexados ao Grande Israel, como sonham alguns fundamentalistas judeus. Essa política do fait accompli - cara, aliás, a um certo Adolf do bigodinho à la Chaplin... - é odiosa e não pode ser tolerada.
Isso dito, é preciso resistir à tentação de considerar Israel um estado totalitário, e não se pode - pelo menos ainda não se pode - exagerar na retórica comparando a miséria crescente e o desespero dos cidadãos de Gaza à abominação extrema de Auschwitz! Por ser uma democracia, existe, no interior mesmo de Israel, uma parte importante da sua opinião pública que não concorda com a arrogância de Golias. E é dessa arrogância que nós, descendentes e continuadores da tradição judaico-cristã, estamos cheios. E porque somos parte dela, nos sentimos no direito de dizer o que achamos disso tudo. O nazismo foi derrotado pelas armas. Mas da obra funesta do nazismo só nos desfazeremos inteiramente no dia em que o estado de Israel não mais ousar explorar esse horror para fundamentar um auto-outorgado direito a ser tratado como um caso especial no meio das nações que habitam um mesmo mundo comum - para falar uma linguagem em que ressoa Hannah Arendt, uma judia maravilhosa que Benjamin Netanyahu algum me fará deixar de amar.
Um dia Israel precisará de um estadista. Não estou falando de guerreiros. Esses, Israel tem e já teve demais. Estou falando de alguém com grandeza e coragem para dizer aos seus concidadãos que o estado israelense não colocará mais como pré-condição para reconhecer um estado palestino o fim de atos terroristas contra cidadãos judeus. Há naquela região do mundo ódio e rancores longamente acumulados, suficientes em todo caso para alimentar ações terroristas durante um bom tempo, mesmo depois do reconhecimento da Palestina como estado soberano. Que competência tenho eu para dizer essas coisas? Enquanto expert em geopolítica, nenhuma! E daí? O mundo tem especialistas demais nessa matéria, e a minha impressão é a de que um excesso de expertise num conflito complexo como esse, cujo novelo é impossível de ser desfiado, talvez precise justamente de olhares “ingênuos” para encontrar uma saída. Os especialistas só vão entulhar os dois lados de boas razões para continuar insistindo nos mesmos argumentos, e o novelo corre o risco de tornar-se um nó górdio - que, como se sabe, não se desata, e só se corta pela espada!
Neste caso específico, especialistas discutindo com a maior seriedade do mundo a legalidade ou não da ação israelense me fazem lembrar o sinistro Dr. Fantástico do filme famoso de Kubrick: enquanto o mundo vai sendo destruído pela hecatombe nuclear, ele fica fazendo cálculos sobre quantos serão os sobreviventes e quantos anos eles terão de viver em cavernas antes de poder voltar à superfície de um mundo calcinado. Entre o saber de peritos em morte e a Bíblia, fico com o livro dos livros.