quarta-feira, 30 de junho de 2010

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Fazendo Sexo: as fronteiras (não-)discursivas do corpo em Thomas Laqueur



Cynthia Hamlin

Em seu “Inventando o Sexo: corpo e gênero dos Gregos a Freud” (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001), o historiador Thomas Laqueur desconstrói 2.000 anos de diferença sexual, transitando no espaço ínfimo entre corpos de carne, sangue e sêmen, de um lado, e suas representações, de outro. Estabelecendo o que parece ser uma versão fraca da tese segundo a qual o sexo é construído por meio de categorias de gênero, Laqueur se afasta daquelas tendências do feminismo contemporâneo que esvaziam o sexo de todo conteúdo ao propor que as diferenças naturais são, na verdade, culturais, não havendo distinção entre elas. O que estou chamando de tese fraca do caráter socialmente construído do sexo repousa, em vez disso, na afirmação de que a concepção de corpo como algo privado, fechado e estável – e que fundamenta as noções modernas de diferença sexual – é efeito de contextos históricos e culturais. Assim, em lugar de negar o que chama de “abismo” entre representação e realidade ou da distinção entre “ver” e “ver como” que, em última instância, levaria ao desaparecimento completo do corpo, ele mantém a distinção fundamental entre este e sua construção discursiva. O movimento é sutil, mas importante, pois, além de estabelecer os limites da desconstrução na produção de conhecimento, abre a possibilidade de um movimento de reconstrução com base na (investigação da) dimensão material dos corpos.

Creio que isso pode ser melhor compreendido com a afirmação de Laqueur de que, embora sua preocupação no livro seja a de examinar as diferentes interpretações do corpo com base desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos (o que equivale a dizer que tudo o que se afirma sobre o sexo é contaminado por determinadas concepções de gênero), não tem interesse em negar a realidade do sexo ou do dimorfismo sexual como um processo evolutivo. Talvez essa última posição seja especialmente esclarecedora, pois marca sua diferença em relação a teóricas como Fausto-Sterling, MacKinnon e Butler (dentre outras). Embora Laqueur evite polemizar com essas autoras, eu acho a comparação irresistível.


quarta-feira, 23 de junho de 2010

Greve ou motim francês na Copa Mundial de 2010 – negócio de Estado, de mídias e de celebridades



Tâmara de Oliveira

No dia 20 de junho de 2010, a Copa da África do Sul foi palco de um fato que eu, enquanto desconhecedora da história do futebol, penso ser inédito : todos os jogadores da equipe de França, em pleno campo de treinamento público, anunciaram que recusavam treinar por causa da exclusão oficial de um dos seus companheiros – o internacional e pouco tranquilo Nicolas Anelka – alegando que o procedimento de tal exclusão fôra incorreto. Segundo o documento dos grevistas ou amotinados (porque eles apresentaram um manifesto escrito !), a FFF (Federação Francesa de Futebol) excluiu o jogador fundamentando-se apenas em rumores das mídias, sem que a eles próprios, testemunhas da altercação verbal entre o treinador (Raymond Domenech) e Anelka, tivesse sido dado o direito de apresentar sua versão dos fatos. Nova revolução francesa ? Agora protagonizada pelos cidadãos-jogadores de um futebol milionário ?!!!


domingo, 20 de junho de 2010

Nacionalismo, Futebol e Identidade Cultural



Fernando da Mota Lima


Como sabem os estudiosos da nossa história política e cultural recente, “Um dia na vida do Brasilino”, de Paulo Guilherme Martins, é uma fábula nacionalista publicada no outono de 1961. É assim que o próprio autor data muito anticonvencionalmente seu livreto. O texto está agora disponível na internet, como quase tudo. Passou a circular nela como edição comemorativa dos 41 anos do seu lançamento. Dado que retorna inalterado, é razoável supor que Martins se mantenha fiel à mesma ideologia, que a subscreva com a mesma convicção com que a escreveu no outono de 1961. O sentido ideológico da fábula é de uma transparência meridiana: o cotidiano do brasileiro, simbolizado na figura de Brasilino, é atravessado do primeiro ao último minuto pela dominação onipresente do imperialismo econômico e cultural. O processo de acelerada globalização disparado a partir de 1964, ano em que os militares impuseram às forças de esquerda uma derrota devastadora, tornou no presente o mote do nacionalismo e anti-imperialismo de esquerda inteiramente anacrônico. No entanto, a ideologia sobrevive aparentemente intocada.




quinta-feira, 17 de junho de 2010

Vida e Obra de Tom Bottomore


Tom Bottomore e William Outhwaite

Por William Outhwaite - Professor de Sociologia da Universidade de Newcastle, Inglaterra.

Artigo originalmente publicado em Idéias, Campinas, 5 (1) , pp. 155-72, jan/jun 1998. Agradecemos a Ricardo Antunes a permissão de reproduzí-lo no Cazzo.

Tom Bottomore, que faleceu em fins de 1992 aos 72 anos de idade, era um dos sociólogos britânicos mais conhecidos e admirados. Seus diversos livros foram lidos por todos, de especialistas a estudantes de primeiro ano, como um guia infalivelmente confiável para a disciplina e sobre a bibliografia relevante. Ele trouxe para a Sociologia britânica a preocupação com a teoria social - especialmente, mas de forma alguma exclusivamente, marxista - e com o que veio a ser chamado de Terceiro Mundo. Colocou em prática sua abordagem internacional, em muitos anos de trabalho paciente, no desenvolvimento da Associação Internacional de Sociologia, da qual foi presidente de 1978 a 1982.

Nascido em 1920, Tom Bottomore foi educado na cidade inglesa de Nottingham, onde se interessou pelo socialismo como um possível remédio contra a pobreza das comunidades mineiras de carvão, a depressão econômica e o surgimento do fascismo. Foi membro do Partido Comunista por um breve período e, em consequência disso, a este expert em pensamento social norte-americano nunca foi legalmente permitido visitar os Estados Unidos (ele viajou para lá ocasionalmente enquanto morava no Canadá, mas se recusava a completar os questionários especiais requeridos pelas autoridades americanas com a finalidade, como ele certa vez colocou, "de me espionar").

Estudando economia enquanto engajado no serviço de guerra em Londres, Tom Bottomore foi designado para trabalhar no serviço de administração militar britânico na Viena do pós-guerra, cidade da qual ele veio a gostar muito e onde trabalhou na produção de estatísticas econômicas. De volta ao Reino Unido, estudou Sociologia na London School of Economics com o sociólogo evolucionista Morris Ginsberg, defendendo uma tese sobre teorias do progresso. Passagens do seu diário datando desta época mostram que tinha poucas ilusões a respeito do Estalinismo, mas que também estava impaciente com o anticomunismo radical de alguns dos professores da LSE: "Eu cheguei à conclusão de que muitos daqueles que gritam mais alto contra o comunismo estariam entre os primeiros a se acomodar a ele e a buscar posições na hierarquia" [1]. Ele não levava muito a sério Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, publicado em 1948: "Dêem-me críticas sérias acerca do sistema soviético a qualquer hora". Também é dele a piada imortal que diz que, embora seja possível construir o socialismo em um país, é aconselhável morar fora dele enquanto o processo estiver em curso.


terça-feira, 15 de junho de 2010

Desapropriação da Tamarineira

Há uns dois meses o Cazzo ecoou uma reivindicação de parte da sociedade civil pela desapropriação do Hospital Ulysses Pernambucano (a velha Tamarineira). Juntamo-nos aos amigos da Tamarineira por razões ambientais e humanitárias, ou seja, por desejar preservar e melhorar aquela área tão cobiçada, por reconhecer o trabalho psiquiátrico que ali se realiza, para dizer não à cobiça de alguns poucos e por acreditar que algo melhor pode acontecer no que diz respeito à intervenção psiquiátrica naquele espaço. No último dia 05, a Prefeitura do Recife mostrou a sensibilidade que esperávamos. É justo, portanto, que reconheçamos esta vitória e que estimulemos aqueles que se mobilizaram contra a venda da Tamarineira agora se mobilizarem pela melhoria das condições do HUP e pela transformação daquela área em um lugar verdadeiramente comunitário. Jonatas

Sobre a desapropriação, ir para:
http://www.recife.pe.gov.br/2010/06/05/joao_da_costa_e_populacao_comemoram_preservacao_da_tamarineira_172202.php

terça-feira, 8 de junho de 2010

domingo, 6 de junho de 2010

Israel, Davi e Golias



Luciano Oliveira - Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.


O mundo ocidental, do qual nós brasileiros fazemos parte, descende culturalmente tanto da fé de Moisés quanto da fé de Cristo. É a famosa tradição judaico-cristã. A prova a que Deus (ou Iavé) submeteu Abraão, os Dez Mandamentos ditados no Monte Sinai, os julgamentos de Salomão e tantas e tantas histórias que ouvimos na infância - ou vimos nas produções bíblicas de Hollywood, por que não confessar? -, da mesma maneira que o sangue escorrendo da testa de Jesus na noite que antecedeu o seu Calvário -, tudo isso faz parte da nossa sensibilidade e da nossa formação. Nesse sentido, somos todos um pouco judeus. E é nesse espírito que escrevo alguma coisa sobre os recentes acontecimentos no Mar Mediterrâneo, quando Israel, para reprovação mundial, atacou um barco em missão humanitária indo em direção a Gaza, para furar o bloqueio que o estado judeu lhe impõe desde que o grupo hamas chegou ao poder naquele território.


Uma das histórias bíblicas mais fascinantes é a do combate entre Davi e Golias. Como a maioria - para não dizer a quase totalidade - dos meus leitores, não sei direito quem era Golias. Sabemos apenas que era um gigante, e que no combate entre ele e o pequeno Davi, nossa simpatia vai para o pequeno. Essa é uma verdade universal: numa briga entre desiguais, tendemos a simpatizar com a parte mais fraca, nem que seja por um sentimento inato de compaixão. A Bíblia, o livro dos livros, dá forma ao que é um dos arquétipos que nos definem como humanos. Acho que essa é uma das razões pelas quais tanta gente razoável e de boa vontade mundo afora, mesmo repudiando os ataques terroristas de que cidadãos israelenses são vítimas rotineiras, são capazes de compreender os atos homicidas - mas ao mesmo tempo suicidas, é bom lembrar - dos homens-bombas.


É por isso que acho desgastante e inútil discutir se Israel, exercendo um suposto direito de autodefesa preventiva, tinha ou não o direito de abordar o navio manu militari; e se tinha, se o fez de forma desastrada etc. etc. etc. Esse é um debate que não levará a nada. A realidade contra a qual se insurgiu o navio, e contra a qual se insurge de um modo geral a opinião pública mundial hoje em dia, é o pezão de Golias no pescoço de Davi! É o bloqueio da faixa de Gaza, um ínfimo pedaço de terra onde vive apinhada uma população de mais de um milhão de palestinos - e que vai se tornando cada vez mais um imenso favelão; é um muro de contenção ao terrorismo que sai fatiando a Cisjordânia e, na prática, engolindo faixas de terra que serão um dia subtraídas a um futuro estado palestino; é a política criminógena (para não dizer simplesmente criminosa, porque está se lixando para as repetidas condenações da comunidade internacional) da construção de assentamentos judeus nessa mesma Cisjordânia - os quais, dentro da mesma lógica expansionista, serão um dia anexados ao Grande Israel, como sonham alguns fundamentalistas judeus. Essa política do fait accompli - cara, aliás, a um certo Adolf do bigodinho à la Chaplin... - é odiosa e não pode ser tolerada.


Isso dito, é preciso resistir à tentação de considerar Israel um estado totalitário, e não se pode - pelo menos ainda não se pode - exagerar na retórica comparando a miséria crescente e o desespero dos cidadãos de Gaza à abominação extrema de Auschwitz! Por ser uma democracia, existe, no interior mesmo de Israel, uma parte importante da sua opinião pública que não concorda com a arrogância de Golias. E é dessa arrogância que nós, descendentes e continuadores da tradição judaico-cristã, estamos cheios. E porque somos parte dela, nos sentimos no direito de dizer o que achamos disso tudo. O nazismo foi derrotado pelas armas. Mas da obra funesta do nazismo só nos desfazeremos inteiramente no dia em que o estado de Israel não mais ousar explorar esse horror para fundamentar um auto-outorgado direito a ser tratado como um caso especial no meio das nações que habitam um mesmo mundo comum - para falar uma linguagem em que ressoa Hannah Arendt, uma judia maravilhosa que Benjamin Netanyahu algum me fará deixar de amar.


Um dia Israel precisará de um estadista. Não estou falando de guerreiros. Esses, Israel tem e já teve demais. Estou falando de alguém com grandeza e coragem para dizer aos seus concidadãos que o estado israelense não colocará mais como pré-condição para reconhecer um estado palestino o fim de atos terroristas contra cidadãos judeus. Há naquela região do mundo ódio e rancores longamente acumulados, suficientes em todo caso para alimentar ações terroristas durante um bom tempo, mesmo depois do reconhecimento da Palestina como estado soberano. Que competência tenho eu para dizer essas coisas? Enquanto expert em geopolítica, nenhuma! E daí? O mundo tem especialistas demais nessa matéria, e a minha impressão é a de que um excesso de expertise num conflito complexo como esse, cujo novelo é impossível de ser desfiado, talvez precise justamente de olhares “ingênuos” para encontrar uma saída. Os especialistas só vão entulhar os dois lados de boas razões para continuar insistindo nos mesmos argumentos, e o novelo corre o risco de tornar-se um nó górdio - que, como se sabe, não se desata, e só se corta pela espada!


Neste caso específico, especialistas discutindo com a maior seriedade do mundo a legalidade ou não da ação israelense me fazem lembrar o sinistro Dr. Fantástico do filme famoso de Kubrick: enquanto o mundo vai sendo destruído pela hecatombe nuclear, ele fica fazendo cálculos sobre quantos serão os sobreviventes e quantos anos eles terão de viver em cavernas antes de poder voltar à superfície de um mundo calcinado. Entre o saber de peritos em morte e a Bíblia, fico com o livro dos livros.