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Jonatas Ferreira
Poderíamos afirmar que a
analgesia e apatia que marcam a contemporaneidade são plenamente
compatíveis com uma cultura do consumo, dos gozos superficiais, da
agitação constante da vida e da extenuação dos recursos do planeta (Ferreira e
Silva, 2011).
No
Segundo Excurso da Dialética
do Esclarecimento, Adorno
e Horkheimer discorrem acerca do modo como a
cultura moderna impõe uma distância emocional que inviabiliza aquilo que
poderíamos chamar, com Benjamin, de experiência. Ali, analisando o significado moral da obra de Sade no mundo moderno, eles afirmam: “‘A
apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável
da virtude’, diz Kant, distinguindo essa ‘apatia moral’ (um
pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da
indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e
a determinação constituem a força da virtude” (Adorno e
Horkheimer, 1985, p. 93). E, no entanto, vivemos uma realidade de
excitação constante, em que uma infinidade de apelos sensíveis nos
solicitam diuturnamente e aos quais só podemos atender se não nos
comprometermos verdadeiramente com coisa alguma. Num certo sentido,
esse contexto cultural está diretamente ligada àquilo que Sennett
chama de “corrosão do caráter” e outros chamarão muito simplesmente de niilismo. Acredito que hoje
experimentamos o recrudescimento de um traço fundamental dos
processos de modernização, marcados que estão pela apatia e
analgesia.
Todas
essas evidências devem ser colocadas no contexto de
uma discussão mais ampla que diz respeito ao sentido do
sofrimento nas sociedades modernas e de uma reflexão acerca de
como, ou em que medida, o tratamento com substâncias psicoativas
interferem neste processo de significação. O uso de antidepressivos e ansiolíticos nos coloca sempre diante da perspectiva de um adiamento indefinido de tal processo na exata medida que podemos contornar os sintomas físicos da ansiedade, da depressão, do pânico e de muitas outras afecções. Ora, se a ideia de uma terapêutica para essas e outras formas de sofrimento é tão antiga no ocidente quanto a própria formalização da prática, de uma techné médica, como pode atestar a leitura de várias das obras que constituem o corpus hipocraticum (Conti, 2007), a forma como damos
sentido ao sofrimento sempre teve um papel fundamental na cultura ocidental. Weber, por exemplo, entende que o problema do sentido
do mal no mundo, ou seja, da existência do sofrimento e da morte, é
o núcleo sobre o qual as grandes religiões mundiais gravitam. Em
outras palavras, as grandes formações culturais que a história da
humanidade conhece estariam inextricavelmente relacionadas a processos de
significação do mal, do sofrimento humano. Do ponto de vista de sua
sociologia, portanto, uma constatação como essa evidentemente tem
uma importância considerável. Cassirer, outro exemplo relevante,
dedica um belo capítulo de seu A Filosofia do Iluminismo
(1951) a traçar uma linha de continuidade entre a forma como a
tradição judaico-cristã lida com o sofrimento e a sua tradução
em discurso e prática científicos, iluministas. Ali ele
constata que a maneira como a psicologia do século XVIII lida com a
questão do sofrimento é informada pela questão da teodiceia e por discussões religiosas mais específicas que remontam à Idade Média. Mais
contemporaneamente, se tomarmos a fenomenologia de Jan Patocka (1996)
como ilustração derradeira deste ponto, poderíamos mesmo
argumentar que aquilo que fundamentalmente caracteriza a cultura
ocidental é o fato de atribuirmos ou buscarmos significado para as
experiências que implicam em padecimento moral, existencial – no mais vivemos
confortavelmente na atitude natural dos fatos que, por não
constituírem um problema, não demandam a busca de significação ampla.
A forma como damos sentido ao sofrimento, ou, dito de um
modo mais religioso, à presença do mal no mundo, é evidentemente
histórica. Partimos aqui do pressuposto de que a mudança desse
significado ocorra sobre linhas mestras cujo entendimento deve ser
buscado. Porém, exemplifiquemos um pouco a variabilidade desse
conceito. Para isso, é necessário especificar a ideia ampla de
sofrimento numa noção muito mais precisa e relevante para o
argumento deste ensaio: a melancolia. A centralidade de tal noção
na estruturação de uma narrativa da subjetividade, ou seja, em uma
narrativa que confere significado ao sofrimento moderno como contraponto à possibilidade de liberdade individual, é uma das
hipóteses básicas deste ensaio. Digamos com todas as letras: se é inquestionável que a modernidade é marcada por uma metafísica da subjetividade que se legitima por um discurso racionalizador, não é menos verdade que essa razão sobre a qual o sujeito se constitui como entidade moral, epistemológica e técnica, precisa ser experienciada existencialmente. É esta a conclusão a qual Weber chega, para citarmos apenas um exemplo, quando fala da ansiedade que caracteriza a ética calvinista, sua insegurança com relação à salvação, como um dos fatores que o levam a abraçar a tarefa e o chamado de racionalização mundana. A tese weberiana, como veremos, está longe de ser original. Ora, parece-nos que é exatamente uma discursividade melancólica como núcleo simbólico, existencial da subjetividade que parece entrar em crise na
contemporaneidade com a possibilidade técnica de adiamento indefinido dos sintomas do sofrimento. Não parece fortuito que essa crise coincida com uma percepção cada vez mais hegemônica da realidade contemporânea como algo estruturalmente irracional.
Ilustremos,
por enquanto, as diversas acepções que a melancolia ganhou ao longo
de alguns séculos na Europa para nos concentrarmos, em seguida, no
seu sentido moderno.
A palavra 'melancolia' deriva do grego, mais especificamente das palavras melaina e chole, cuja tradução seria "bile negra". Derivada do corpus hipocraticum, a teoria dos humores, em cujo contexto a melancolia é explicada, é uma teoria do equilíbrio entre o ser humano e o cosmos. Há um sentido ontológico nas noções de proporção e equilíbrio na antiguidade clássica que é traduzido quer sob a forma de ideal estético, moral, político ou como dietética e terapêutica. Por isso mesmo, os elementos básicos que ditam nossa saúde ou nossas enfermidades, os traços de nossa personalidade ou estrutura física, regulam também as estações do ano, as fases da vida. E isso por um motivo simples, o ser humano é parte da natureza - ou, mais propriamente, da physis. Deste modo, o sangue é associado tanto à primavera, quanto ao calor e a umidade, ou à infância dos seres humanos; a bile amarela é associada ao verão, ao calor seco e à vida adulta; a bile negra ao outono, ao frio seco, ao outono e ao ocaso de nossa vida; a fleuma à velhice, ao inverno, à velhice e à umidade fria (Conti, 2007, p. 16). Para a medicina grega, a melancolia é entendida como desequilíbrio nos humores em que prevaleceria a força da bile negra - quer esse desequilíbrio ou predomínio seja um traço de personalidade, uma afecção passageira ou uma doença - em cujo caso, o retorno a um estado de equilíbrio demanda a intervenção médica, uma dieta, medidas profiláticas. A influência da teoria dos humores prolonga-se dos gregos até a Idade Moderna.
Tomado geralmente como acedia,
como incapacidade do espírito em decidir, a visão prevalecente que
a Idade Média oferece da melancolia é que ela é um pecado:
tratava-se de um monstro que lança confusão, preguiça,
imobilidade, observa Evagrius Ponticus, “o solitário” (Ferguson,
2005, p. 7). O humanismo de Marsilio Ficino, por seu turno, no século
XV, retorna à visão positiva que Platão tinha deste sentimento.
“Aqueles sob a influência de Saturno tendem para a melancolia, e,
de acordo com Ficino, isto não é sempre um infortúnio. Revivendo
as visões de Platão, Ficino percebe a melancolia como um dom
intelectual, que por seu turno estimula dois outros frenesis divinos,
a poesia e a filosofia” (Ibid., p. 9).
No século XVI, Teresa de Ávila parece entender a melancolia como
espaço tanto de manifestação do divino quanto do diabólico no ser
humano. Para ela, seria necessário certa sutileza de espírito para
diferenciar o sofrimento melancólico da angústia provocada por Deus
quando este “incendeia o espírito” (Radden, 2000, p. 108). Esta
fineza de espírito é precisamente a capacidade de entender se somos
tomados por um sofrimento da alma ou da imaginação, ou seja, uma
dor presidida por Deus ou pelo demônio.
Aquilo que chamaríamos de
sensibilidade barroca em Teresa de Ávila é um passo decisivo para a
estruturação de uma ideia moderna de melancolia. Alguns elementos
poderiam sustentar essa afirmação: i. ela diferencia de modo pragmático aquilo que hoje denominaríamos comportamentos
neuróticos mais brandos daqueles que poderíamos chamar de casos
psicóticos mais graves. No tratamento destes últimos, recomenda a tolerância;
no tratamento daqueles primeiros, o uso da autoridade. ii. A
aceitação dessa autoridade é um elemento na cura na própria
trajetória religiosa desta extraordinária freira espanhola. O foco das considerações de Teresa de Ávila tem um caráter já fortemente psicológico, se o comparamos com a teoria dos humores. O que
chama atenção no seu Livro
da Vida,
por exemplo, é o fato de suas dúvidas, indecisões e sofrimentos
não poderem ser alividados pela voz da tradição, mas apenas por uma
experiência única e mística com a autoridade Divina. Isso que
chamamos de sensibilidade barroca virá a preparar uma virada moderna
que nos diz respeito mais de perto: diante do sofrimento, da
incerteza, a única promessa de resolução se encontra na graça de Deus. Como melancólica Teresa raciocina: sou fundamentalmente má.
E disso conclui: todo bem (me) é fundamentalmente Alheio, ou seja,
proveniente de Deus. Esta é a possibilidade de significação do
mal, do sofrimento no mundo. Se a resolução é aqui transcendente,
o problema coloca já a subjetividade como questão cultural central. A
acedia,
a tristitia,
portanto, não lhe são estranhas, mas um lugar de onde ela só pode
sair a partir da intervenção, da autoridade maior da Divindade:
E direi o que se passa comigo para que, no caso de ser
conforme à fé, possa ser de algum proveito ao senhor. E, se não,
tirará o senhor minha alma do engano, para que não ganhe o demônio
onde me parece que eu estou ganhando. […] Pois bem sabe meu Senhor
que não pretendo outra coisa com isso a nnão ser que ele seja
louvado e engrandecido um pouquinho por ver que, em uma fossa tão
suja e malcheirosa, fez um jardim de tão suaves flores (Teresa de
Ávila, 2010, p. 1o3).
Quando lemos Teresa de Ávila e comparamos com tudo o
que Benjamin falou acerca do conceito de acedia e da importância do
drama barroco alemão como indicadores de um processo de modernização
cultural na Europa, impossível não perceber a estatura intelectual
desse pensador alemão. A indecisão paralisante de Segismundo, de A
vida é Sonho, ou de Hamlet, aguardam, como em Teresa de Ávila
uma decisão, um corte transcendente. E essa caracteriza a solução
barroca, absolutista, para a questão política, cultural e
existencial que a modernidade implica. A partir do começo do século
XIX, o Romantismo levou adiante o namoro platônico entre melancolia
e sensibilidade artística, além de associá-las ambas ao próprio
frenesi da vida moderna. Apenas mais recentemente, isto é, com a
elaboração de um sistema de classificação de doenças mentais por
Emil Kraepelin, ela passou a ser considerada doença, com um conjunto
de sintomas delimitados, identificáveis: despersonalização,
impressão de que o mundo se tornou estranho, que o próprio corpo é
sentido como algo apartado do indivíduo etc (Radden, 2000, p. 261).
Em Kraepelin encontramos a base da psiquiatria estadunidense que hoje
prevalece como terapêutica no mundo e a tentativa de proceder a uma
classificação mais precisa das doenças mentais, o que conduziu a
uma definição mais precisa de um conceito demasiado amplo, como era
o de melancolia.
Acredito que o sofrimento, em particular a melancolia,
na cultura moderna é um lugar privilegiado para observar as
implicações existenciais, mas também políticas e sociais, que
decorrem do que podemos alternativamente chamar de empobrecimento da
experiência ou de radicalização do niilismo. Tal relação não é
fortuita. Ora, na psicanálise a melancolia e a morte apresentam uma
ligação estreita, oferecendo a meu ver perspectivas teóricas
auspiciosas de aprofundamento de uma tradição que podemos reportar
a Kant – sem aqui alimentar obviamente intenção de empreender
qualquer forma de genealogia. Refiro-me aqui muito especificamente ao
Luto e Melancolia, porém, é claro que o tema pode ser também
trabalhado através de textos como O Mal-Estar na Civilização.
Em oposição ao sentimento de luto, em que a perda de um 'objeto'
amado não compromete a integridade da individualidade, a melancolia
é aqui considerada uma patologia que consiste na dificuldade de
realização do trabalho de aceitação desta perda, dificuldade que
se manifesta como sentimento de auto-depreciação, rebaixamento de
si. Que o mundo perca suas cores e sabores é, para Freud, uma
decorrência natural de nossa experiência do desaparecimento de algo
especialmente valorizado, amado, quer esse algo seja um ideal, um
emprego, ou um ente querido. Preocupante para ele é que o trabalho
do luto seja postergado indefinidamente, que outros 'objetos' não
venham a substituir em um devido tempo de sofrimento aquele que é
centro de nosso investimento emocional.
“El em duelo hallamos que inhibición y falta de
interés se esclarecían totalmente por ele trabajo del duelo qua
absorbía al yo. En la melancolía la pérdida desconocida tendrá
por consecuencia un trabajo interior semejante y será responsable de
la inhibición que le es característica. Sólo que la inhibición
melancólica nos impressiona como algo enigmático porque no
acertamos a ver lo que absorbe tan enterramente al enfermo. El
melancólico nos muestra todavía algo que falta em el duelo: una
extraordinaria rebaja e su sentimento yoico [Ichgefül], un
enorme empobrecimiento del yo. En el duelo, el mundo se há hecho
pobre y vacío; em la melancolía, eso le ocurre al yo mismo. El
enfermo nos describe a su yo como indigno, estéril y moralmente
despreciable” (FREUD, 1917, p. 2)
Sob a auto-depreciação melancólica, existe em relação
ao objeto de investimento emocional um impulso agressivo que não
encontrou, por alguma razão, possibilidade de ser suficientemente
elaborado. Toda emoção intensa guarda em si contra-correntes que o
tornam fundamentalmente ambíguo e, para Freud, é importante que
essa ambiguidade seja reconhecida. O melancólico, todavia, é aquele
que não teve a oportunidade de elaborar a agressividade que
implicitamente sustenta com relação a um objeto decisivo de sua
afeição. Essa agressividade retornaria ao eu num impulso de
auto-destruição, de perda de significado que poderia, em última
instância resultar em uma ação suicida. A agressividade não
elaborada com respeito ao objeto de afeto retornaria na forma de tal
impulso.
“Sólo este sadismo nos revela el enigma de la
inclinación al suicídio por la cual la melancolía se vuelve tan
interesante y... peligrosa. Hemos individualizado como el estado
primordial del que parte la vida pulsional un amor tan enorme del yo
por sí mismo, y en la angustia que sobreviene a consecuencia de una
amenaza a la vida vemos liverarse un monto tan gingantesco de libido
narcisista, que no entendemos que ese yo pueda avenirse a su
autodestrucción. […] Ahora el análisis de la melancolía nos
enseña que el yo sólo puede darse muerte si em virtud del retroceso
de la investidura de objeto puede tratarse a sí mismo como objeto,
si le es permitido dirigir contra sí mismo esa hostilidad que recae
sobre un objeto y subroga la reacción originaria del yo hacia
objetos del mundo exterior” (Ibid, p. 4)
Neste ponto, não necessitamos responder da perspectiva psicanalítica à pergunta que propõe Freud, nomeadamente:
como um investimento libidinal de enormes proporções pode se
transformar em melancolia e, no limite, em impulso de
auto-destruição? Basta que afirmemos claramente que a hipótese que
oferecemos é precisamente o de que a própria constituição da
narrativa tipicamente moderna da subjetividade, em torno da qual a
psicanálise gira, é recorrentemente associada ao sentimento
melancólico. Se entendemos o sujeito moderno como uma questão
existencial, e não meramente ética ou epistemológica, diríamos
que mais que primordialmente uma experiência da ordem da razão, o
espelho sobre o qual a cultura moderna retorna sempre a subjetividade
é a melancolia. É desta perspectiva que ela se torna significativa,
ou seja, quando esse sentimento nos retorna o sujeito como questão,
mas também como possibilidade de resposta.
Uma conclusão semelhante Kant
encontra ao discorrer sobre o sentimento do sublime, na Crítica
do Juízo. O
sublime é originalmente um sentimento doloroso em que nos
confrontamos com nossa insignificância diante da evidência de um
mundo quase absoluto em sua infinitude. Sentir-se aniquilado é o
primeiro e doloroso momento do sentimento do sublime, e, no entanto,
é através dele que descobrimos nossa capacidade para transcender
nossa condição finita, é através desse desconforto que
encontramos a evidência estética de nossa disposição para a
razão.
Já em Kant, portanto, podemos compreender um elemento fundamental
daquilo que Freud considera ambíguo na melancolia, ou seja,
entendemos como o prazer pode estar associado ao sofrimento que o
sentimento do sublime desperta: esta dor nos retorna a evidência
estética do sujeito racional. Esta dor, este momento em que a língua
trava, que o dizível é colocado em questão, é a própria
experiência estética da centralidade do sujeito na vida moderna.
Não é fortuito que o Romantismo alemão, ao qual não
podemos deixar de associar o pensamento freudiano, e cujo débito
para com a Crítica do Juízo é
mais que conhecido, estrutura subjetiva e melancolia
encontram-se de modo tão evidente conectados. A contrapartida da
constituição de uma cultura de sujeitos, diante dos quais os
objetos são concebidos como infinitamente controláveis pela razão,
é precisamente, de acordo com a sensibilidade romântica, o
estabelecimento de um hiato intransponível entre esses dois mundos. O prazer do melancólico é o de, ao
lamber suas próprias feridas, encontrar a possibilidade de
estruturação de sua subjetividade como núcleo de estabilidade
existencial mínima. E essa privatização da vida social, esse
silêncio e inapetência que caracterizam o melancólico, são
aspectos fundamentais da vida moderna. Por tudo isso, parece-nos
sensata a argumentação que nos oferece Havey Ferguson (2005, p.
26):
A filosofia moderna, particularmente em Descartes, Kant
e Hegel, pressupôs a melancolia da vida moderna como condição
permanente, e incorporou isso em suas reflexẽos, e assim fazendo
domesticou o gênio subversivo que aderia a todo caso de 'pesar sem
causa' […]. A melanconlia moderna, enlutada, pesada e tonta como a
infinitude, também está carregada com a lucidez metafísica da
depressão.
Discorrendo sobre a importância da filosofia de
Kierkegaard na elaboração dessa relação estreita que existe entre
modernidade e melancolia, Ferguson (Ibid, p. 4) observa ainda:
Melancolia, para ele, era mais do que um humor, ou mesmo
uma peculiaridade de um temperamento específico; era, antes, uma
forma particular de existir como ser humanano. E, mais que isso, era
um modo de existir que ele passou a ver como mais apropriado às
condições da vida moderna. Havia, na visão de Kierkegaard, algo de
uma verdade única no auto-retiramento melancólico.
Em, O Conceito de Angústia, o próprio
Kierkegaard (2010, p. 45) nos propõe o seguinte:
O conceito de angústia
não é tratado quase nunca pela Psicologia, e, portanto, tenho de
chamar a atenção sua total diferença ao medo e outros conceitos
semelhantes que se referem a algo determinado, enquanto que a
angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da
possibilidade. Por isso não se encontrará angústia no animal,
justamente porque este em sua naturalidade não está determinado
pelo espírito.
Se Simmel nos diz que, diante da dinâmica caótica da
vida moderna, o indivíduo precisa constituir um núcleo duro de
subjetividade que lhe permita não ser digerido pela aceleração das
grandes cidades, afirmamos aqui, numa linha de raciocínio afim, que
a melancolia é o próprio investimento propiciador dessa narrativa
moderna que é a da subjetividade. Neste contexto cultural,
significar o sofrimento melancólico é um ato de enorme sentido
existencial, pois esse ato garante a própria reflectividade
narcísica sem a qual uma sociedade dos sujeitos parece
incompreensível.
Entre o moderno sujeito melancólico e o indivíduo
depressivo que encontramos na contemporaneidade, devidamente
estabilizado por antidepressivos e ansiolíticos, porém, há uma
diferença que deve ser observada. Ora, é precisamente o
investimento no sofrimento melancólico e na sua significação
que parece ser negado nesse segundo caso. Há aqui, no entanto,
uma contradição básica no fato de que esse processo de
significação seja entendido como algo, em Simmel ou na psicanálise,
como algo privado. E é precisamente este traço cultural que traz em
si, para além das possibilidades bioquímicas que se abrem diante de
nós, a perspectiva de emudecimento sobre a qual temos falado. Mas se
temos na melancolia moderna, núcleo de constituição de uma
narrativa da subjetividade, uma condição necessária ao
silenciamento do sofrimento, ela não é certamente condição
suficiente. A própria possibilidade de constituição de uma
narrativa é aqui um obstáculo – o que nos levará certamente mais
para perto de uma discussão sobre a questão da linguagem, da fala
neste contexto.
Antes de seguir adiante neste raciocínio, gostaria de
propor algo como um excurso acerca de duas matrizes culturais
decisivas na significação do sofrimento no ocidente. Isso nos
permitirá uma visão mais clara, não apenas daquilo que parece ser
colocado em questão no contexto daquilo que aqui chamamos de
medicalização do sofrimento, mas entender que tipo de elaboração
o mundo moderno, e em especial a constituição de um discurso da
subjetividade, produz acerca de seu significado. Esse passo parece
importante quando temos em mente precisamente o que parece ser o
esvaziamento da tarefa de significação e esgarçamento de um
contexto cultural marcado por aquilo que Foucault chama de 'analítica
da finitude' no célebre capítulo de As Palavras e as Coisas.